Excesso de mortes é maior em microrregiões mais pobres
A pandemia trouxe grandes impactos sobre o mundo, e o Brasil foi especialmente afetado por esta. Como se vê no Gráfico abaixo, em termos de mortes diárias relativas à população, o Brasil tem permanecido nas primeiras posições, acumulando atualmente cerca de 150 mil registros de mortes por Covid-19.
Como se sabe, a distribuição espacial de casos e mortes no país não foi homogênea. O Gráfico abaixo a evolução destas séries acumuladas ao longo do tempo por grande região. Este mostra que o Norte e o Centro Oeste foram as mais afetadas, a primeira no início da pandemia e a segunda em seu momento final. Já o Sudeste e Nordeste apresentam proporções semelhantes de mortes em relação à população, enquanto a Região Sul se mostra como a menos impactada em mortalidade, apesar de um número de casos proporcionalmente maior do que na primeira.
No entanto, a evidência sobre a heterogeneidade socioeconômica de seu impacto na mortalidade no Brasil ainda é um campo em aberto e concentradas principalmente na dimensão de cor/raça. Batista et al. (2020) analisam variação da taxa de letalidade da doença no Brasil considerando variáveis socioeconômicas, tendo encontrado que discrepâncias entre as características reportadas nas notificações de SRAG para a COVID-19 dos pacientes de raça branca para aqueles de raça preta e parda, sendo a maior a proporção de óbitos em destes últimos, mesmo por faixa etária, por nível de escolaridade, e em município de IDHM elevado. Já Bruce et al. (2020) encontram que os indivíduos negros têm menos probabilidade de receber tratamento intensivo do que seus homólogos de diferentes raças, mesmo depois de levar em consideração características observáveis, como sintomas, comorbidades e efeitos fixos hospitalares e epidemiológicos semanais, além de maior probabilidade de morrer devido a infecções respiratórias, sendo a diferença exacerbada nas semanas críticas da pandemia, quando a demanda por cuidados de saúde aumenta.
Neste artigo, usamos dados administrativos do DataSUS para estimar a relação entre a mortalidade devido ao COVID-19 e a pobreza em um nível de microrregiões no Brasil. Nós utilizamos uma metodologia de triple-differences, a fim de expurgar efeitos espúrios de covariadas em nossa análise.
A estratégia de identificação se baseia estimar o excesso de mortalidade de hospitalizados no Sistema Único de Saúde seguindo a especificação abaixo:
Em que temos o excesso de mortalidade (diferença de óbitos em 2020 em relação à média de 2018-19) dos hospitalizados na microrregião i do Estado uf no período t, sendo preditos por uma variável identificando o nível de PIB per capita em 2017 (podendo estar no terço inferior ou superior, representados respectivamente por Q1 e Q3, tendo o nível intermediário como referência), que interage com o período t, que assume valor 1 se for posterior ao início da pandemia (ou seja, a partir de abril). São adicionados efeitos-fixo de Estado, mês, e as covariadas adicionadas são relativas ao tamanho da população, percentual de idosos, e uma dummy de urbano/rural.
A metodologia apresentada reproduz aproximadamente a abordagem de Brandily et al. (2020) na França. No entanto, enquanto os autores interagem o nível socioeconômico com uma variável de nível de infecção do departamento (nível de agregação acima do município, unidade de análise do trabalho), mantendo fixo o mês de referência (abril). No caso deste artigo, a variação do excesso de mortalidade observada será em relação ao período pré pandemia para cada nível de PIB per capita. Como testes de robustez, o efeito-fixo de Estado, além das variáveis de controle, serão substituídas por um efeito fixo de microrregião, controlando por todas as características invariantes no tempo destas.
O uso da métrica de excesso de mortalidade será usada para todas as causas. Isso se deve ao alto nível de subnotificação do país, como mostrado no Gráfico abaixo, que compara o percentual de testes de Covid-19 entre países selecionados. Como se vê, mesmo ao final de julho apenas cerca de 5000 em cada 100 mil habitantes havia sido testado no Brasil.
A tabela abaixo mostra os resultados das regressões. Como se vê, após o início da pandemia, o excesso de mortalidade dos hospitalizados no SUS cresceu 10% a mais nas microrregiões de PIB per capita baixo em relação aos intermediários, em ambas especificações. Naquelas de alto nível de renda, por outro lado, a diferença não foi estatisticamente significativa. O resultado mostra, portanto, que de fato houve um maior aumento de mortalidade em localidades mais pobres.
Tabela 1: Resultado das regressões de excesso de mortalidade
(1) |
(2) |
||
Interação Pós Pandemia e Nível de PIB per Capita |
Baixo |
0.1*** |
0.103*** |
(0.032) |
(0.032) |
||
Alto |
0.006 |
0.008 |
|
(0.032) |
(0.032) |
||
Efeito Fixo |
Mês |
Sim |
Sim |
Estado |
Sim |
Não |
|
Microrregião |
Não |
Sim |
|
Controles |
Sim |
Não |
Fonte: Elaboração própria com dados do DataSUS e IBGE
Uma das hipóteses necessárias para a validade de tal análise são as chamadas “tendências pré paralelas”. Ou seja, pode-se atribuir à pandemia tal aumento apenas caso, anteriormente a esta, o excesso de mortalidade das microrregiões estivesse seguindo uma mesma tendência entre os três grupos analisados. O Gráfico abaixo, portanto, apresenta a média ao longo dos meses do excesso de mortalidade para cada agregação de microrregiões.
Como se vê pelo Gráfico acima, de fato até o mês de abril pôde se observar tendências próximas de excesso de mortalidade entre microrregiões de PIB per capita baixo, médio e alto. A partir de maio, no entanto, tal variável cresce consideravelmente no primeiro grupo, não sendo acompanhado em igual proporção pelos outros dois.
Este artigo evidenciou, portanto, que, no Brasil, moradores de microrregiões mais pobres sofreram de aumento de mortalidade até 10% maior em relação aos demais após a pandemia. Diversas são as hipóteses para se explicar tal fenômeno, como a má distribuição de equipamentos hospitalares, a maior dependência de interação e transporte público, além da segmentação presente no mercado de trabalho, com maior informalidade em microrregiões menos prósperas.
Código para regressões
https://github.com/Insper-Data/Data-Micro/blob/master/Script_1.R
Referências bibliográficas
Batista , Amanda; Bianca, Antunes; Faveret, Guilherme; Peres, Igor; Marchesi, Janaína; Pedro Cunha, João; Dantas, Leila; Bastos, Leornado; Carrilho, Leonardo; Aguilar, Soraida; Baião, Fernanda; Maçaira, Paula; Hamacher, Silvio; Bozza, Fernando. “Análise socioeconômica da taxa de letalidade da COVID-19 no Brasil”. Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS). Nota Técnica 11 – 27/05/2020,
Brandily, Paul and Brebion, Clement and Briole, Simon and Khoury, Laura, A Poorly Understood Disease? The Unequal Distribution of Excess Mortality Due to COVID-19 Across French Municipalities (August 25, 2020). NHH Dept. of Economics Discussion Paper No. 15/2020, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3682513 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3682513
Bruce, Raphael and Firpo, Sergio and França, Michael and Meloni, Luis, Racial Inequality in Health Care During a Pandemic (September 11, 2020). Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3691313 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3691313
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
Deixar Comentário