Macroeconomia

Fatores institucionais e técnicos permitem algum otimismo sobre a solvência pública no Brasil

1 jun 2021

Apesar de números sobre dívida pública e sua tendência no Brasil serem preocupantes, incluindo o chamado "r-g", taxa de juros (incidente sobre a dívida) subtraída do crescimento do PIB, é possível nutrir algum otimismo, levando em conta questões institucionais e técnicas.

 

As dívidas públicas dos países como proporção de seus PIBs foram impulsionadas neste século por dois eventos: a grande crise financeira global, em 2008/2009, e a pandemia da Covid-19, em 2020. Em ambos os casos, volumosos pacotes fiscais para tentar amenizar o impacto econômico e social desses dois episódios causaram forte e veloz aumento do endividamento público.
 

Números organizados por Bráulio Borges, pesquisador associado do FGV IBRE, com base em dados do FMI (Fiscal Monitor abril/21), mostram que a média simples mundial (188 países) da relação entre a dívida pública bruta e o PIB saltou 26,2 pontos percentuais (p.p.) entre 2008 e 2020, de 42,8 p.p. para 69 p.p. O salto apenas de 2019 para 2020 foi de 10,4 p.p.
 

No caso do mundo rico (média simples de 30 países), a relação dívida bruta/PIB subiu 30,9 p.p. entre 2008 e 2020, sendo 12,9 p.p. de 2019 para 2020. Já no caso dos emergentes (158 países), o aumento de 2008 a 2020 foi de 25,4 p.p., e de 10 p.p. entre 2019 e 2020.
 

Como fica o Brasil nesse filme? Na verdade, não muito bem. O salto da relação dívida bruta/PIB brasileira de 2008 a 2020 foi de 36,7 p.p., de 61,4 p.p. para 98,1 p.p. O critério de dívida pública, por questões de comparabilidade, do FMI é diferente do adotado pelo Banco Central do Brasil, que chega a valores menores, mas com variação semelhante (88,8 p.p. em 2020 e 56 p.p. em 2008). De qualquer forma, o aumento da dívida bruta no Brasil em 2009-2019 foi bem superior ao do mundo (média simples dos países), dos emergentes e até das nações avançadas, nas quais o endividamento avançou mais. Já entre 2019 e 2020, o aumento da dívida bruta brasileira foi de 11,2 p.p., mais em linha com o mundo e os grupos de ricos e emergentes. A dívida bruta do Brasil pelo critério do FMI em 2020 (98,1% do PIB) estava 32 p.p. do PIB acima da média dos emergentes (66%) e 13,1% acima dos avançados (85%).
 

Esses números deixam claro que, no grande debate surgido desde a década passada sobre os limites de endividamento público dos países – em função justamente do salto ocorrido neste século –, o Brasil é claramente um caso que merece cuidado e atenção. Na verdade, não existe uma definição científica muito robusta de um limite a partir do qual a dívida pública de um país se torna preocupante. Os economistas Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart, em trabalho conjunto de base empírica, chegaram ao nível de 90% como limiar a partir do qual o crescimento econômico seria prejudicado de forma mais intensa, mas o trabalho foi criticado por erros de cálculo. De qualquer maneira, muitos países ricos têm hoje níveis bem acima de 90%, sem que se percebam perturbações macroeconômicas das quais os menos endividados estejam livres.  
 

Essa dificuldade em estabelecer um nível preciso a partir do qual a dívida pública se torna problemática não significa, por outro lado, que os países possam se endividar ilimitadamente – em especial aqueles que não emitem moedas de reserva e instrumentos de dívida considerados “portos seguros” para os investidores globais. A “hora da verdade” varia de economia para economia, e depende de um enorme número de circunstâncias, mas é fora de dúvida que de tempos em tempos determinados países ou grupos de países sofrem de desconfiança sobre a solvência pública, levando a crises de variadas magnitudes. No Brasil, nos dias de hoje, muitos analistas veem na empinada da curva de juros e na desvalorização excessiva do câmbio desde o ano passado, as digitais de um risco crescente de insolvência fiscal.
 

Do ponto de vista da evolução da relação dívida/PIB, um de seus principais condicionantes contábeis é o chamado “r – g”, isto é, a taxa de juros (incidente sobre a dívida) subtraída do crescimento do PIB. Se o r – g for zero, a relação dívida/PIB mantém-se estável com despesas primárias iguais às receitas. Se for negativo, permite até a estabilidade com algum déficit primário. Se for positivo, é necessário algum superávit primário para manter a estabilidade da dívida/PIB (o montante desse superávit depende do valor inicial da relação entre dívida e produto).
 

Também em termos de r – g, dados compilados por Borges sugerem que a posição do Brasil é comparativamente desfavorável. Tomando o r – g anual nominal de 18 países desenvolvidos entre 1871 e 2017, encontra-se uma média de -0,6 p.p. ao ano. De 2001 a 2017, a média foi de -0,9 p.p. Já no Brasil, o r – g médio de 2001 a 2017 foi de +2,5 p.p., e o de 2001 a 2020 foi de +2,7 p.p. No caso dos países ricos, o cálculo do r – g foi feito pelo diferencial entre a taxa de juros nominal de longo prazo de títulos governamentais e o crescimento nominal do PIB da nação respectiva. Para o Brasil, usou-se o custo da dívida bruta do governo geral (DBGG) no critério do FMI e o PIB nominal (dados definitivos até 2018 e preliminares em 2019 e 2020).
 

De 2003 a 2013, época em que o Brasil foi beneficiado pelo chamado “superciclo” de commodities, o r – g do país caiu para a média de +0,8 p.p. ao ano, “querendo chegar perto de zero”, como nota Borges. Mas a economia estava superaquecida e operou com hiperemprego nesse período (com um breve interregno na virada de 2008 para 2009), ele acrescenta, levando a inflação para cima da meta e a um grande e crescente déficit em conta-corrente. Em outras palavras, o baixo r – g no período não era sustentável, embora tenha gerado forte redução da dívida/PIB (cerca de 17 p.p.), até mesmo por conta de o país ter mantido um superávit primário estrutural de cerca de 1,5% do PIB potencial na média daquele período (saindo de 3% em 2003 para zero em 2013).
 

O r – g brasileiro mostrou-se ainda mais desfavorável quando se toma a média de 2014 a 2020, atingindo +5,5 p.p. Por outro lado, o r – g em 2021 deverá ser bem negativo, de cerca de -5 p.p., refletindo a combinação entre uma Selic ainda baixa, mesmo que em elevação, e o alto deflator do PIB, além de um crescimento do PIB em volume relativamente robusto, entre 3,5% e 4% (ou até mais) segundo as projeções mais recentes. Em 2022 há a possibilidade de que o r – g ainda seja negativo ou próximo de zero, também por fatores circunstanciais. Assim, tem-se uma trégua no front da relação dívida/PIB, que este ano deve cair, apesar do déficit primário estimado em cerca de 3% do PIB. Porém, mirando-se o médio prazo, a tendência do Brasil de voltar a apresentar r – g significativamente positivo não tranquiliza em relação à solvência pública.
 

Ainda assim, é possível alimentar algum otimismo sobre essa questão a partir de duas frentes de argumentação. A primeira, do autor desta Carta, é político-institucional. Tendências sempre são extrapolações do já ocorrido, mas não necessariamente o futuro precisa repetir o passado. Como no dito do pensador franco-estadunidense René Dubos: “Tendência não é destino”. Em Cartas do IBRE recentes, temos chamado a atenção para o fato de que há hoje um posicionamento do sistema político brasileiro e de formadores de opinião pública sobre a questão fiscal inédito na história do país. O Brasil conta com um teto de gastos que sobrevive a todas as dificuldades de cumpri-lo, e a preocupação com as contas públicas revela-se em episódios recentes como o “orçamento paralelo” (para além da indignação moral) e a privatização da Eletrobras. Nesse segundo caso, o fato de a operação, para ser viabilizada, incluir a necessidade de um investimento público de R$ 30 bilhões na infraestrutura de distribuição de gás num momento de orçamento apertado tornou-se quase um empecilho. 
 

Em 2021, o setor público federal opera em estado de austeridade máxima, com risco de shutdown efetivo da máquina pública. Em 2019, foi aprovada dura reforma previdenciária. Os reajustes do salário mínimo nacional não superam a inflação já há 6 anos. Agora, há sinais de que uma reforma administrativa para valer pode caminhar. Aliás, de certa forma, ela começou já em 2013, quando a ex-presidente Dilma Rousseff regulamentou o Funpresp, o fundo de previdência complementar dos servidores federais, fazendo com que funcionários contratados a partir de então fossem regidos pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS), como os trabalhadores do setor privado.
 

Políticas macroeconômicas responsáveis e eficazes nas últimas décadas também contribuíram para eliminar fragilidades e criar mecanismos de defesa na área fiscal contra incertezas em boa parte derivadas do cenário internacional. Assim, com a expressiva acumulação de quase US$ 340 bilhões de reservas internacionais entre 2003 e 2018, o setor público tornou-se credor em dólares (a partir de 2006), o que faz com que desvalorizações da moeda nacional melhorem a situação patrimonial do Estado.
 

O r da equação r – g é função da taxa de juros externa, e das políticas monetária e fiscal domésticas, além de outros fatores mais estruturais (como demografia, que tende a derrubar o juro neutro em mais um tanto lá fora e aqui dentro na década atual). Mas a própria política monetária é dependente da fiscal (o juro neutro sobe com a percepção de risco), fazendo com que as expectativas fiscais sejam um forte determinante do r. Dessa forma, a postura mais madura do sistema político e dos formadores de opinião em relação à responsabilidade fiscal é um fator que deve contribuir para conter o r nos anos à frente.
 

A questão do g é mais complicada, porque depende sobretudo da produtividade, que vem tendo desempenho medíocre no Brasil há várias décadas. E, como comentado na Carta do IBRE de maio deste ano, se, do ponto de vista macroeconômico, a discussão fiscal melhorou no Brasil, em termos microeconômicos a situação ainda é muito precária. Temos um orçamento com enorme fatia de salários, benefícios e subsídios, e insuficientes recursos para custeio e investimentos, sendo que os últimos estão cada vez mais balcanizados em um volume crescente de emendas parlamentares. Ainda assim, a perspectiva de reforma administrativa e de alguma reforma tributária pode trazer avanços nessa frente.
 

Uma segunda linha de argumentação da qual se pode extrair algum otimismo em relação à evolução do r – g no Brasil é mais técnica, e vem sendo trabalhada em vários estudos e reflexões de Bráulio Borges. Há alguns pontos nos quais o economista vem insistindo há bastante tempo. O primeiro é de que o conceito de dívida mais relevante para se avaliar a solvência de emergentes é a dívida líquida, mais que a bruta. Quando se comparam países com base na dívida líquida, a foto do Brasil se aproxima bem mais de pares com características semelhantes e melhor rating (como México, Colômbia e Uruguai).
 

Borges também coletou farto material sobre a trajetória nas últimas décadas do deflator do PIB e da inflação ao consumidor no Brasil e em vários países. O caso brasileiro é discrepante por uma tendência de o deflator ser sistematicamente maior que a inflação varejista, mesmo quando se descontam variações dos termos de troca e outros fatores que tendem a não se repetir no futuro (como reajustes muito acima da inflação dos salários do funcionalismo). Ao usar dados nominais para a avaliar o r – g brasileiro, o economista embute esse efeito nas suas projeções. O mesmo não ocorre, porém, com muitos trabalhos com trajetórias mais pessimistas do r – g nacional, que se utilizam de dados reais no cálculo da equação, deixando de levar em consideração a tendência de o deflator do PIB ser sistematicamente maior que a correção monetária da dívida pública – o que é favorável à redução do r – g.
 

O terceiro ponto sobre o qual Borges vem insistindo é que a economia brasileira opera desde 2015 muito aquém do pleno emprego. Assim, olhando-se à frente, é possível imaginar um mix responsável de política monetária e fiscal que finalmente contorne esse entrave cíclico (porém persistente), recolocando a atividade e a arrecadação nos seus potenciais, o que seria positivo tanto para o resultado primário quanto para o r – g (em relação àqueles observados nos últimos 6 anos). Ainda assim, ressalta Borges, o Brasil tem pela frente uma necessária agenda de consolidação fiscal estrutural e, possivelmente, isso demandará, além de algum teto de gastos, o aumento da carga tributária, como forma de eliminar de vez a inquietação quanto à solvência pública. Os seus estudos – que incluem ainda outros fatores, como a taxa de câmbio e demografia – indicam, entretanto, que esse dever de casa talvez não seja tão penoso e difícil quanto julgam os mais pessimistas.


O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.

Esta é a Carta do Ibre de maio de 2021, publicada na revista Conjuntura Econômica do mesmo mês.

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