Florestan Fernandes, questão racial e conservadorismo
Há dois meses a coluna comemorou os 100 anos de nosso economista mais influente, Celso Furtado, avaliando o papel da educação em sua obra. Hoje lembraremos os 100 anos do nascimento de Florestan Fernandes, um dos pais da sociologia brasileira.
A obra de Florestan é vastíssima, indo de textos mais antropológicos sobre os índios Tupinambás até análises sociológicas, com interface na ciência política, sobre o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Extrapola em muito os limites da coluna um olhar mais abrangente sobre a obra de Florestan. A coluna abordará a sua contribuição para a reflexão sobre o tema da discriminação racial. Provavelmente a área em que a contribuição do mestre foi mais marcante.
Na tese defendida em 1964 no concurso para a cátedra de Sociologia I da FFLCH da USP, “A integração do Negro na Sociedade de Classes”, Florestan apresenta a consolidação de suas pesquisas sobre o tema divulgada inicialmente em trabalhos conjuntos com o sociólogo francês Roger Bastide publicados uma década antes.
Fato pouco notado, e foco desta coluna, é a contribuição relativamente conservadora de Florestan Fernandes para o tema.
Quando se trata do tema da desigualdade ou da pobreza ou mesmo, em nível coletivo, do atraso econômico das nações, há dois enfoques possíveis, ou dois tipos de diagnóstico. A visão conservadora enfatiza fatores embutidos na pessoa, família ou na sociedade como explicação para a situação de pobreza ou carência.
A visão “progressista”, chamemos assim por falta de melhor denominação, enfatiza as relações e oportunidades às quais as pessoas estiveram expostas ou tiveram acesso.
Evidentemente, o fato social é sempre mais complexo do que as caracterizações e classificações dos estudiosos e certamente as duas narrativas do subdesenvolvimento das nações ou da pobreza das pessoas têm a sua parcela de verdade. E, normalmente, há poderosa interação e efeitos de reforço positivo entre os fatores. Após algum tempo, os fatores conservadores e progressistas se reforçam tornando imaterial a indagação da causa primeira.
Se é fato que o desenvolvimento da Coreia do Sul, por exemplo, é fruto de muito trabalho, parcimônia e poupança, ótimas escolas e de muita acumulação de capital, um processo inicial com fortíssima reforma agrária, homogeneizando o ponto de partida, foi essencial para a trajetória exitosa que o tigre asiático apresentou nas últimas quatro décadas.
Florestan foi um dos primeiros autores – e certamente o mais impactante – a olhar o tema racial no Brasil por uma chave alternativa à contribuição marcante de Gilberto Freyre. Florestan mostrou que, por detrás da suposta democracia racial – não que Freire tenha usado especificamente esse termo em suas principais obras – havia uma sociedade que cultivava (e cultiva) mecanismos, muitas vezes discretos e inconscientes (este é o foco de toda a literatura de racismo estrutural), de manutenção das desigualdades.
Argumentou, baseando-se em trabalho empírico coletado nos anos 50 em colaboração com Bastide, que, no processo de incorporação dos negros na sociedade moderna de mercado, estes não estavam preparados nem em condições de concorrerem com os brancos, em particular com os recém-chegados europeus. Florestan estudou o tema racial em São Paulo.
Ponto menos notado da contribuição de Florestan é que ele, na descrição dos fatores que levavam à perpetuação da desigualdade racial, enfatizou motivos e dinâmicas que hoje seriam consideradas conservadoras.
Empregando linguagem moderna, as dificuldades da comunidade preta em São Paulo eram motivadas, segundo Florestan, também por falta de habilidades não cognitivas (características como disciplina, perseverança, motivação, autocontrole, traquejo social, pensamento prospectivo, etc.) que, diferentemente, estavam presentes nos recém-chegados da Europa ou mesmo do Japão. Segundo Florestan:
No fundo de toda essa questão, está a natureza das reações dos negros e dos mulatos ao trabalho livre. Para o branco, que contratava os trabalhadores em termos puramente mercantis, o que contava era o rendimento do trabalho, a observância das cláusulas dos contratos e o nível de remuneração desse fator da produção. Para o negro e para o mulato, tudo isso era secundário, como meros atributos do homem que fosse livre para vender e aplicar sua força e trabalho. O que adquiria caráter essencial, no cerne de suas avaliações, era a condição moral da pessoa e sua liberdade de decidir como, quando e onde trabalhar.[1]
Resumindo:
Faltava ao liberto, portanto, a autodisciplina e o espírito de responsabilidade do trabalhador livre, as únicas condições que poderiam ordenar, espontaneamente, a regularidade e a eficácia do trabalhador no novo regime jurídico-econômico.[2]
Evidentemente como o recente trabalho de Karl Monsma aponta[3], o racismo explicito contra os negros e, principalmente, o racismo por meio da redução das oportunidades educacionais das crianças negras, deve ter contribuído em muito para perpetuar as desigualdades. Mesmo porque a escolarização formal é essencial para o desenvolvimento das habilidades cognitivas e das não cognitivas.
Mais recentemente, o sociólogo Jessé de Souza retomou a visão de Fernandes do tema:
O que os pais, ou figuras que os substituem, transmitem aos filhos, quer tenham consciência disso ou não, é toda uma visão de mundo e de “ser gente” que é peculiar à classe a que pertencem. O que a classe média ensina aos filhos é comer nas horas certas, estudar e fazer os deveres se casa, arrumar o quarto, evitar que os conflitos com os amigos cheguem às vias de fato, chegar em casa na hora certa, evitar formas de sexualidade prematuras, saber se portar em ambientes sociais etc. As famílias de classe média ensinam, portanto, os “valores” de uma dada “classe”, que são os valores da autodisciplina, do autocontrole, do pensamento prospectivo, do respeito ao espaço alheio etc.[4]
Na associação entre as características embutidas nas pessoas e as possibilidades dadas pelo entorno se estabelece a dinâmica que sustenta o racismo como uma força brutal de manutenção da desigualdade.
As políticas públicas e ações que afetam as possibilidades e permitem que os mais desfavorecidos tenham acesso às oportunidades naturalmente concedidas aos ricos e brancos – como, por exemplo, cotas e mecanismos de contratação em que as redes de conexão sejam menos importantes – precisam conviver com políticas públicas que transformem as pessoas por dentro e as preparem para o universo do trabalho. Não há outra maneira do que escola pública de qualidade. No centenário de Florestan Fernandes, sua mensagem conservadora é ainda mais necessária e verdadeira.
[1] Em a “Integração do Negro na Sociedade de Classes” de Florestan Fernandes (1978), coleção ensaios 34 da editora atica, volume 1, páginas 29 e 30.
[2] Fernandes (1978), volume 1, páginas 73.
[3] Veja de Karl Monsma 2016 “A reprodução do racismo. Fazendeiros, negros e imigrantes no oeste paulista, 1880-1914”, EduFSCar.
[4] Jessé Souza 2016, “A Ralé Brasileira: Quem é e como vive”, editora da UFMG, 2º edição Souza (2016), páginas 53 até 55.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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