Política e Governo

Inevitável jogo da governabilidade

20 abr 2023

À espera da popularidade ainda não adquirida, não há como disputar quedas-de-braço sem força e sem apoio, vestindo punhos de renda. As circunstâncias não permitem esse luxo. Lula compra tempo e se posiciona estrategicamente.

Em qualquer lugar do mundo, a governabilidade é óbvia preocupação dos governos, sobretudo, num regime com real divisão de Poderes. Então, não admira que ao longo dos anos os governos brasileiros tenham cedido espaços na administração e compartilhado recursos públicos com o Legislativo.

Até aqui, não houve vencedor na corrida eleitoral que obtivesse ampla e segura maioria legislativa nas urnas – o que, tampouco, inibiria a transação de cargos e verbas. Coalizões, blocos parlamentares e alianças mesmo informais são inescapáveis. Não se compartilha poder “por boniteza, mas por necessidade”.

Bravatas e autoafirmação retórica do Poder Executivo em relação ao Legislativo, promessas abstratas de uma Nova Política” ou bobagens do gênero são, normalmente, contraproducentes. Criam calor e mobilizam fanáticos, mas tendem à frustração e à desmoralização. O Legislativo sempre terá frieza para dar tempo ao tempo: esperar que presidente da República perceba que ainda que possa muito, não pode tudo.  

Trata-se de um complexo jogo de poder. Assim como o Executivo deseja um Congresso subserviente, não há nada que mais agrade ao Legislativo do que um governo fraco. Há uma queda-de-braço, cujo equilíbrio não é natural: o que impede o avanço de um Poder é a força do outro. Como o gás, livre de limites o poder se expande. Sem habilidade e moderação, o conflito é lentamente semeado e o caos rapidamente colhido.

Dilma e Bolsonaro: temeridade e pretensão

Após proclamar em verso e prosa a “faxina” que teria feito no primeiro mandato, Dilma Rousseff foi para o enfrentamento com a Câmara dos Deputados, no segundo. Ignorou inúmeros sinais e avisos de fragilidade, crendo que bastaria convocar o povo às ruas – “a tropa do Stédile” --, abriu várias frentes simultâneas de conflito, dentro e fora do Congresso.

Quando decidiu compor, era tarde. Vários decibéis acima da coragem, foi temerária. Polêmicas à parte – se foi ou não um “golpe” --, o resto é história: Dilma sofreu um impeachment. Deveria ficar o exemplo do que não fazer.

Jair Bolsonaro, por sua vez, iniciou mandato na tola pretensão de ser uma espécie de Presidente Imperator – chefe de exércitos. Supôs que a efêmera força das urnas aliada à ilusória força que julgava ter com militares seria suficiente para impor uma “Nova Política” ao Congresso Nacional, ao Poder Judiciário, à Imprensa, aos governadores e à sociedade. Bastaram-lhe as primeiras denúncias dos negócios da família para que resolvesse compor.

Com temores do fantasma do impeachment, o ex-presidente buscou a blindagem do Congresso – sobretudo, da Câmara dos Deputados –, o que lhe custou, além do morder a língua, o controle orçamentário do governo e a perda de qualquer influência sobre a agenda legislativa. Governo fraco, arrastou-se como um dependente pelo menos até que as urnas da reeleição pudessem restituir-lhe as forças. O que, por fim, não ocorreu, como se sabe.

O movimento é sincrônico: a fragilização do então presidente correspondeu ao simultâneo fortalecimento dos chefes políticos do Legislativo. Arthur Lira e Davi Alcolumbre, respectivamente presidente da Câmara dos Deputados e ex-presidente do Senado Federal, ganharam força de tração no motor do tradicional patrimonialismo brasileiro.

Sem barreiras, esse poder se expandiu e fez com que se expandissem também as bases de Lira e Alcolumbre, favorecidas pela generosidade de emendas parlamentares liberadas pelo Executivo, sob o controle de parlamentares aliados.

Uma cilada para Lula

Espontaneamente, ninguém renuncia ao poder adquirido. Voltar atrás, nem pensar. Com poder, a legislatura passada terminou; com poder, esta legislatura começou. O quadro é de uma maioria congressual forjada pela força eleitoral do bolsonarismo e por recursos públicos endereçados em seu benefício.

Foi este o quadro encontrado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no seu terceiro mandato. Uma cilada das circunstâncias: expressiva parte do parlamento, senão a maioria, viciou-se no uso e abuso de recursos públicos. Um modo exclusivo de fazer política. Projetos e programas, políticas públicas são questões secundárias. A desintoxicação desse tipo de dependência nunca é fácil.

Acrescente-se a isso o fato de a vitória eleitoral de Lula ter-se dado por um triz: diferença de 2 milhões de votos, num colégio eleitoral de mais de 156 milhões de eleitores. Foram 38,6% dos votos totais, contra 37,2% de Bolsonaro. Legítimo, é óbvio. Mas, isso compreende dizer que 61,4% dos eleitores de 2022 não votaram em Lula. Por que se sentiriam responsáveis por sua sorte? Com Bolsonaro não seria diferente.  

Tudo somado, as condições ainda que não sejam exatamente precárias, demonstram a ordem de grandeza das dificuldades. Sondagem realizada pelo “Barômetro do Poder”, do Infomoney, com 12 consultorias políticas e analistas independentes, aponta que Lula teria, hoje, na Câmara, no máximo 224 votos alinhados a seu governo. Incertos seriam 141; 148 deputados e deputadas, de “oposição”. Ainda não houve um evento em que fosse possível testar esses números. Mas parecem coerentes.

Se os imprescindíveis 171 votos, que impedem a aprovação de qualquer processo de impeachment, estão em tese garantidos, também é verdadeiro que há ainda uma incômoda distância para os 257 votos necessários para a aprovação Leis Complementares, como é o caso do chamado “arcabouço fiscal”.

E uma mais significativa diferença para os 308 votos decisivos para alterações na Constituição, como é caso de uma Reforma Tributária. Esse quadro se dá ainda no período de lua-de-mel do governo. E após farta distribuição de espaços no ministério, primeiro e segundo escalões. O que será quando a paixão e o dinheiro acabarem? Na Câmara, Lula dependerá das boas graças de Arthur Lira.

Para superar essas barreiras numéricas – 257 ou 308 votos –, o Executivo precisará dar mais do que já tem dado. Mais cargos, verbas, liberação de emendas, concessões nas comissões temáticas do Congresso, nas relatorias de projetos – principalmente, das Medidas Provisórias.

Isso tudo num ambiente de aperto fiscal e de extrema voracidade fisiológica. No meio político, há um sarcasmo irreverente que parece ilustrar a situação. Fala-se do “parlamentar taxista”, aquele que “cobra por corrida”. Bandeira dois de 24 horas por dia.

Do arcabouço e da Reforma

Como fosse pouco, há mais agravantes: propostas como a do “arcabouço fiscal” e da reforma tributária são, por natureza, delicadas, pois mexem no bolso e nos privilégios de setores organizados capazes de despertar fortes reações de entes federativos e de outros lobbies, que naturalmente exercerão o direito de peticionar governos e parlamentos. Não seria exagero dizer que o clima será de leilão -- metaforicamente falando, é claro.

Chega-se assim à questão mais relevante: será mesmo possível manter e garantir a governabilidade – a capacidade de o Executivo governar – apenas pelo tradicional modelo de “presidencialismo de coalizão”?

Coalizões existem em todos os lugares do mundo, mas, no Brasil, há uma avaliação a respeito de sua qualidade que precisa ser considerada. Com recursos sempre finitos, é possível saciar o apetite de quem, neste momento, parece ter a fome e a força? Desconfio e lamento que a resposta seja não.

Claro que nem a aprovação do “Arcabouço”, nem da “Reforma” podem ser descartadas. Num país como o Brasil, o Executivo tem sempre muita força de mobilização e convencimento parlamentar. O mais provável é que sejam mesmo aprovados.

Contudo, sempre convém lembrar que os recursos são escassos. E mais, o que virá após isso? Mantidas as condições presentes, os custos serão elevados e crescentes. Dirigido pelas hábeis mãos de Arthur Lira e Davi Alcolumbre (que mantém seu poder mesmo depois que deixou a presidência do Senado), o Congresso Nacional tende a endurecer a negociação e retirar do Executivo tudo e mais um pouco.

Popularidade estratégica

Entrar nessa queda-de-braço com forças mirradas implica em aceitar seus custos, admitir derrotas ou correr altos riscos.

Dividir as tropas do adversário, cooptando parlamentares individualmente, estimulando rachas e a formação de novos blocos parlamentares são medidas clássicas. Embora o governo negue se envolver com eventos dessa natureza – e não poderia ser de outro modo –, movimentações nesse sentido já têm ocorrido. O sistema é arguto e reage. É preciso cautela.

Para adquirir a musculatura e se fortalecer nesse tipo de embate, Lula sabe precisar de aditivos na popularidade. Suas ações vão, preferencialmente, na direção do fortalecimento de sua aprovação pessoal e de seu governo. Até porque a situação econômica concreta da maior parte da população exige, a receita tem sido focar a ação do governo na maioria da população, os mais pobres. Políticas públicas de amplo raio e forte impacto.

Adquirir apoio de setores cuja renda se localiza entre 0 e 5 salários-mínimos é o caminho mais rápido. Mais que isso: usar e abusar de gestos simbólicos de preocupação com os pobres e demonização dos ricos. Tanto Lula quanto o PT já acionaram esse botão: anabolizando e expondo o Bolsa Família, maldizendo os juros e o Banco Central – até porque há eco nesse tipo de crítica.  

Os gestos de pouca atenção ao mercado são claro e natural posicionamento estratégico. A busca de popularidade não é mero populismo – lugar-comum, com pouca precisão conceitual, que alguns economistas adoram repetir.

É uma óbvia escolha de políticas públicas a favor de quem o elegeu. Paralelamente, expandido sua ação nesse campo, acessa, inclusive, os pobres que preferiram Jair Bolsonaro. A maturação de um processo assim é lenta. Por enquanto, Lula compra tempo.

Haveria outros meios, como por exemplo, elevar o nível republicano das relações Executivo/Congresso; agir como um Estadista acima dessas mesquinharias, propor a reforma política e outras mudanças institucionais?

Em tese. No entanto, as condições gerais precisam ser mais favoráveis. Ou menos desfavoráveis, talvez. Fácil falar, mas as circunstâncias – de apoio parlamentar e social – não permitem grande elevação de espírito. O inevitável desgaste com a classe média é efeito colateral.

É verdade que Lula erra sob vários aspectos. Principalmente, ao desprezar a interlocução com setores sociais democráticos, médios e de elite, e não promover o governo politicamente amplo, como prometeu. Falta-lhe mais e melhores operadores políticos, um estado-maior de conselheiros, um projeto moderno que envolva o país.

Falta-lhe também melhor política de comunicação menos estreita e mais inteligente; pragmática, não ideológica. Tenho escrito fartamente sobre tudo isso – fica aqui o meu “jabá”.

Mas, à falta dos músculos da popularidade ainda não adquirida, não há como disputar quedas-de-braço sem força e sem apoio, vestindo punhos de renda. Até porque as circunstâncias não permitem esse luxo, não seria agora que Lula usaria Black Tie.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Comentários

Leonardo
Davi Alcolumbre presidente do senado?? Há mais de dois anos já nao é..
fernando.dantas
O autor esclarece que o sentido mais amplo está correto e foi intencional, isto é, Alcolumbre mantém grande poder no Senado. Porém, efetivamente, houve no texto o engano de não registrar que ele é ex-presidente do Senado, e não presidente hoje. Dessa forma, o autor agradece a sua correção. O texto já foi ajustado. Saudações cordiais.
Fernando Cássio
Excelente visão, diagnóstico e posicionamento das peças, nesse xadrez que retrata a execução da política interna. Esperamos que a governança e a governabilidade tenham a mesma solidariedade ao tempo, cujo paciente chamado Brasil, aguarda ansiosamente ........

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