Macroeconomia

Inovar-Auto foi mais que proteção temporária, e não é hora de ficar sem política automotiva

4 jan 2018

O Regime Inovar-Auto acabou no final de 2017. O encerramento já estava previsto no programa e deveria ser sucedido por uma avaliação dos seus resultados e definição de nova política para o setor automotivo. Ao longo do ano passado, houve longas discussões sobre o tema entre governo, empresas e trabalhadores, mas não foi possível chegar a um consenso sobre o rumo a seguir.

O governo espera ter uma definição sobre o tema até o final de fevereiro. Tomara que isso aconteça, pois o setor automotivo é hoje área de convergência de novas tecnologias de energia, automação, programação e sustentabilidade ambiental. As principais economias do mundo têm políticas diretas ou indiretas para o setor automotivo, na forma de metas de aumento da eficiência energética (Km rodados por unidade de energia consumida), redução de emissão de gases poluentes e utilização crescente de novos materiais e combustíveis renováveis. Não há por que ser diferente no Brasil.

O primeiro passo para pensar a nova fase do regime automotivo é ter um diagnóstico claro do que o Inovar-Auto alcançou nos últimos anos. Frequentemente, a análise de tal política se concentra no fato de a Organização Mundial do Comércio (OMC) ter condenado parte do programa, devido à adoção de cláusulas de conteúdo local.

Na prática, o Inovar-Auto foi muito além de requerer a internalização de algumas etapas da produção automotiva, estabelecendo, também, incentivos para pesquisa e desenvolvimento (P&D) e metas de aumento de eficiência energética. Essas duas últimas partes do programa explicam como, mesmo com aumento temporário da proteção contra importações, o parque industrial brasileiro se expandiu e se modernizou desde 2011.

Uma prova desse aumento de competitividade está no crescimento das exportações de veículos pelo Brasil no ano passado (57% até novembro), bem como no aumento da segurança e eficiência energética dos veículos nacionais. Se o Inovar-Auto fosse apenas um programa “voltado para dentro”, dificilmente isso ocorreria.

O Inovar-Auto foi desenvolvido no segundo semestre de 2011, após apreciação recorde do real devido à elevação dos preços internacionais das commodities. O gráfico abaixo apresenta a evolução da taxa de câmbio real efetiva estimada pelo Banco Central, com base no IPCA. O “vale cambial” ocorreu em meados de 2011. A partir de então, uma série de ações do governo brasileiro (exemplo: IOF sobre derivativos) e a subsequente mudança do cenário internacional (queda dos preços das commodities) empurraram a taxa de câmbio para cima. Hoje nossa taxa de câmbio real efetiva está aproximadamente 40% acima do verificado quando da criação do regime Inovar-Auto.

O Inovar-Auto tinha por objetivo promover o adensamento da cadeia automotiva do Brasil, incentivar pesquisa e desenvolvimento e aumentar a eficiência energética em um momento em que a especulação financeira e a apreciação cambial dela decorrente promoviam uma abertura rápida e significativa do mercado interno. Para atingir esses três objetivos, o programa criou uma alíquota adicional de 30 pontos percentuais do IPI sobre carros, que poderia ser reduzida a zero pelas empresas que se habilitassem no programa.

Para se habilitar, as empresas foram divididas em dois grupos: fabricantes já instalados no Brasil e novos entrantes no mercado brasileiro. No caso de empresas já instaladas, os veículos por elas produzidos deveriam cumprir uma meta de eficiência ao final do programa, em 2017, e realizar um mínimo de etapas do processo produtivo básico no País. No caso de novas empresas, a habilitação dependia da aprovação de seu projeto de investimento pelo governo, bem como do cumprimento das metas de eficiência energética fixadas para 2017.[1]

Além dos dois critérios mencionados acima, os fabricantes já instalados no Brasil também deveriam escolher duas das três metas abaixo: 

  1. Investir um percentual mínimo e crescente de sua receita antes dos impostos em P&D.
  2. Investir um percentual mínimo e crescente de suas receitas antes dos impostos em engenharia e capacitação de fornecedores.
  3. Adotar a certificação de eficiência energética do INMETRO para 100% de sua produção até 2017.

Com essas condições, fica claro que o Inovar-Auto não foi simplesmente um programa de aumento temporário de impostos, mas sim um programa de proteção temporária com metas de investimento, pesquisa e eficiência energética.

Uma vez habilitadas, as empresas participantes no programa poderiam compensar os 30 pontos adicionais de IPI via aquisição de insumos no mercado local, incluindo fornecedores do Mercosul. Para atenuar o impacto desse mecanismo sobre as importações, também foi criado um sistema de quotas de importação, tanto para empresas já instaladas no Brasil como para novos entrantes.

A compensação temporária do adicional de IPI por compras de insumos locais foi o maior alvo de protestos e posterior condenação no âmbito do Brasil na OMC, mas sua extinção já estava prevista pela própria legislação brasileira, para o final de 2017, como de fato aconteceu.

O Inovar-Auto também continha dois outros instrumentos, não condenados pela OMC, para incentivar P&D e eficiência energética. Em primeiro lugar, as empresas que investissem além do mínimo necessário em P&D e engenharia automotiva poderiam obter um crédito tributário adicional de 2 pontos percentuais, abatendo mais do que os 30 pontos percentuais de IPI. Em segundo lugar, as empresas que se comprometessem a aumentar a eficiência energética além do mínimo necessário, também poderiam obter mais 2 pontos percentuais de crédito tributário.[2] Com essas duas medidas, o Inovar-Auto estimulou a concorrência entre os produtores brasileiros com base em inovação e eficiência energética.

E quais foram os resultados? Como já mencionado, o recente aumento de 57% das exportações de veículos pelo Brasil já é um primeiro indicador de modernização e aumento da competitividade dos produtores brasileiros. Porém, esse movimento ainda é muito recente e precisa de melhor avaliação no futuro. A mesma conclusão vale para os resultados do Inovar-Auto sobre a produção e inovação nacional.

Como a maior parte das metas do programa foi estabelecida para 2017, somente a partir de agora será possível averiguar seu cumprimento efetivo ou não. Apesar da restrição inevitável de que um programa só pode ser completamente avaliado após seu fim, estudos preliminares do Inovar-Auto já apontaram alguns resultados em sentidos opostos.

Uma avaliação conservadora feita pelo Banco Mundial considera que o Inovar-Auto foi responsável por 51% do investimento e 52% do potencial de novos empregos gerados no setor automotivo do Brasil em 2013-17. Do outro lado, um levantamento dos gastos em inovação por parte do setor automotivo, em 2014, não demonstra elevação significativa do percentual do faturamento alocado em P&D após a introdução do Inovar-Auto.[3]

Quem está certo? Com base nos projetos iniciados em 2013-17, os dados indicam que o Inovar-Auto de fato resultou em mais capacidade e mais potencial de geração de emprego no setor automotivo brasileiro.

Já no caso da inovação as evidências são desfavoráveis, mas, como o programa tinha o prazo de seis anos (2017), avaliar seus resultados no meio do caminho (2014) é, por definição, preliminar. Além disso, cabe ressaltar que, como o cumprimento das metas de gastos em P&D era condição necessária para a obtenção de créditos tributários no âmbito do Inovar-Auto, o seu eventual descumprimento fará com que as firmas em questão tenham que devolver os recursos, com juros e multa ao Tesouro Nacional.

Em outras palavras, na questão da inovação, não foi dado um cheque em branco para as empresas, mas sim um incentivo temporário e condicionado ao cumprimento de metas objetivas que podem ser verificadas pelo governo.

Até agora, em contraposição aos dados da PINTEC 2014 sobre o setor automotivo, as empresas e os sindicatos de trabalhadores do setor têm apresentado dados individuais de novos investimentos, desenvolvimento de novos produtos e realocação de atividades de P&D, por parte de multinacionais, no Brasil.[4] Todas essas evidências ainda são anedóticas e precisam de maior sistematização para se obter uma conclusão definitiva sobre o impacto do programa na inovação automotiva do Brasil.

Olhando para frente, a definição ou não de uma nova política para o setor automotivo brasileiro envolve três áreas cruciais, sem relação direta com a proteção temporária adotada pelo Inovar-Auto entre 2012-17.

Em primeiro lugar, há a questão da eficiência energética. Vários países do mundo têm adotado metas de eficiência energética crescente, com redução da utilização de veículos movidos por combustíveis fósseis e grandes investimentos em veículos híbridos ou elétricos. No caso do Brasil, a ampla utilização de veículos flex, movidos por gasolina ou etanol, é uma área promissora de pesquisa e inovação para empresas localizadas no País.

O aumento de eficiência de veículos flex, bem como sua combinação com motores elétricos em veículos híbridos pode ser uma alternativa na corrida em busca de novas tecnologias de transporte no século XXI. Nesse sentido, o novo regime automotivo do Brasil pode e deve estabelecer novas metas de aumento da eficiência energética da frota nacional, bem como do desenvolvimento de veículos híbridos flex.

Em segundo lugar, temos a inovação em geral. Como apresentado acima, o Inovar-Auto estabelecia metas mínimas de gasto em P&D e um bônus para quem superasse tais metas, na forma de créditos tributários. Essa política não é necessariamente contrária às regras da OMC, desde que critério equivalente possa ser aplicado a importadores, via geração de crédito tributário mediante depósito de um percentual de seu faturamento em um fundo para financiar pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias no Brasil.

Em vez de desconto no IPI, o incentivo à inovação também pode ser implementado por uma penalização, via tributação adicional, sobre quem não investir o mínimo em P&D requerido pelo governo. Esse parece ser o principal ponto de disputa dentro do governo.

De um lado, o incentivo à P&D pode vir na forma de um “bônus”, dando um crédito tributário limitado para as empresas que investirem acima do percentual mínimo do seu faturamento estabelecido pelo governo. Essa foi a lógica do Inovar-Auto e essa parece ser a opção defendida pelo Ministério da Indústria e Comércio atualmente.

Do outro lado, o incentivo à P&D também pode vir na forma de um “ônus”, de um adicional de IPI, que poderá ser abatido somente se a empresa investir um determinado percentual do seu faturamento em P&D, acima do mínimo exigido pelo governo. Nesse caso, quem não investir em inovação no Brasil, seja fabricante nacional ou importador, acabaria pagando mais IPI. Esse parece ser a posição do Ministério da Fazenda, diante da forte restrição orçamentária do governo.

Os dois caminhos podem chegar ao mesmo lugar: incentivar a pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias automotivas no Brasil. O pior caminho é não ter nenhuma política de incentivo à P&D, como começou a valer a partir de 1º de janeiro de 2018.

Por fim, o terceiro item do novo regime automotivo é mais embrionário e motivo de disputa entre as próprias empresas do setor: a mudança no regime de tributação do IPI.

Mais especificamente, com base na visão da década de 1970, quando o automóvel era considerado um bem supérfluo, a tributação de IPI sobre carros varia de acordo com o combustível e a cilindrada do veículo no Brasil. A tabela abaixo apresenta as alíquotas vigentes e, em linhas gerais, a lógica é que “carros populares” (menor cilindrada) devem pagar menos imposto do que “carros de elite” (maior cilindrada). Além dessa distinção, também há um benefício para carros flex, em relação a carros movidos apenas a gasolina, acima de 1000 cilindradas.

As políticas automotivas no mundo têm se movido em direção a estimular carros mais eficientes e menos poluentes. A tributação do IPI no Brasil também deveria seguir na mesma direção, como aliás já é feito em produtos domésticos de linha branca (quanto mais eficiente o produto, menor é o imposto).

Apesar de necessária, a transição de cilindrada para eficiência/emissão na definição das alíquotas de IPI sobre automóveis deve ser feita de modo gradual, uma vez que os investimentos realizados no Brasil nos últimos anos foram baseados na estrutura tributária vigente há décadas. Nesse sentido, a adoção do novo regime automotivo no Brasil pode, também, incluir um incentivo para veículos mais econômicos e menos poluentes, com horizonte de tempo suficientemente longo (por exemplo: 2030) para que as empresas possam adaptar seus parques produtivos.

Por todos os motivos acima, fica claro que ter ou não ter política para o setor automotivo vai muito além do que simplesmente eliminar a proteção temporária e adicional dada pelo Inovar-Auto de 2012 a 2017.

Como manda a boa política industrial, o próprio regime Inovar-Auto já previa o fim do adicional de 30 pontos do IPI ao final de 2017, quando se esperava que a indústria automotiva brasileira já teria se modernizado e investido mais em inovação, bem como que a pressão temporária de apreciação do real já haveria se dissipado. Dois prognósticos que se mostraram corretos.

Agora, o rápido desenvolvimento tecnológico e integração do setor automotivo no mundo demanda uma nova estratégia por parte do governo brasileiro. Não ter política é ingenuidade ou ideologia em excesso. Tomara que nossas autoridades não caiam em tal armadilha.


[1] Ver Sturgeon, T., Chagas, L.L. e Barnes, J. (2016). Rota 2030: Updating Brazil’s Automotive Industrial Policy to Meet the Challenges of Global Value Chains and the New Digital Economy. Working Paper, The World Bank.

[2] Sobre os detalhes desses critérios ver: Sturgeon et all (2016).

[3] Sturgeon et all (2016) e estudo recente do Ministério da Fazenda com base na PINTEC 2014 do IBGE.

[4] Baseado em apresentações da ANFAVEA e do SMABC na FGV, em dezembro de 2017.

Comentários

fernando
Paulo Augusto Franke

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.