Isolamento horizontal ou vertical? Os dois, sequencialmente
Para aqueles que estudam ou se interessam pelo tema das “reformas” (econômicas, fiscais etc.), a palavra “sequenciamento” é (ou deveria ser) bastante familiar. Há muitos trabalhos que mostram que vários fatores, como a posição cíclica da economia, o quadro das contas externas, o nível de informalidade, mediam/impactam os efeitos das reformas (gerando até mesmo efeitos contraproducentes em alguns casos).
O exemplo “clássico” é aquele associado à abertura comercial: uma abertura muito expressiva e rápida, em uma economia que sofre de forte fragilidade nas contas externas, pode gerar instabilidade macroeconômica adicional no curto prazo, embora em termos microeconômicos a abertura tenda a gerar vários benefícios, mais diferidos no tempo. Mas há outros exemplos: flexibilizar as regras trabalhistas em meio a uma recessão muito severa pode elevar ainda mais a taxa de desemprego, atrapalhando a própria retomada cíclica; promover uma maior competição bancária em meio a uma recessão pode comprometer a higidez do sistema financeiro; e por aí vai. Ou seja: em se tratando de “reformas”, a “ordem dos tratores altera o viaduto”.
Acho que esse conceito de sequenciamento também deveria ser levado em conta no que diz respeito às respostas que vêm sendo dadas à epidemia global do novo coronavírus. Até mesmo porque, como essa epidemia vem afetando os países em momentos distintos do tempo (ela teve início na China ainda no final de 2019, espalhando-se para uma parte da Ásia em um segundo momento e, mais recentemente, chegando ao Ocidente, primeiro na Europa e, em seguida, na África e na América), não se podem ignorar as informações valiosas já conhecidas sobre algumas características deste surto.
Com efeito, há uma curva de aprendizado, tanto sobre o vírus em si (contágio muito elevado; período de incubação de cerca de 14 dias; percentual expressivo de pessoas contaminadas assintomáticas; taxas de letalidade baixas para pessoas de até 50 anos de idade e sem comorbidades), como sobre o tratamento (aparentemente a hidroxicloroquina, sozinha ou combinada à azitromicina, tem uma eficácia elevada no tratamento dessa virose, dentre outros remédios ainda em testes). Também já se sabe quais estratégias de contenção da epidemia foram mais ou menos bem-sucedidas (China, Coreia do Sul e Cingapura, no primeiro grupo; Itália, no último) em controlar o espraiamento do vírus e, com isso, evitar uma sobrecarga dos sistemas de saúde.
Antes de prosseguir, eu peço licença para expor minha opinião particular sobre o dilema que tem se colocado no mundo todo e que, no Brasil, vem se politizando cada vez mais: salvar vidas ou preservar a economia? Eu sinceramente acho que um depende do outro, há uma relação de dupla causalidade. Ou seja: as políticas devem buscar preservar os dois, sem soluções de canto. No contexto atual, há que se tentar buscar minimizar perdas em ambos os fronts e as ações mais voltadas à saúde e aquelas mais voltadas à economia são complementares em vários aspectos.
Por exemplo: para adotar a estratégia de quarentena radical (isolamento horizontal) e minimizar o número de mortes (ao evitar um maior contágio e também uma eventual sobrecarga do sistema de saúde), é preciso sinalizar claramente para os agentes que sua situação econômica será relativamente preservada. Caso contrário, será difícil convencer boa parte das pessoas, sobretudo os mais pobres e informais, a ficarem confinados. Boa parte da população trabalha para viver e não dispõe de reservas financeiras para atravessar um período muito longo sem renda – e algo na mesma linha vale para boa parte das empresas. O confinamento por prazo muito longo também pode impactar negativamente a saúde mental das pessoas, tanto pela ansiedade com relação à questão material/financeira, como pela falta de atividade física, lazer, relações interpessoais etc. Ademais, o confinamento radical por vários meses pode gerar um colapso da economia – e recessões profundas e depressões também matam, por várias razões.
Por outro lado, não se pode tratar a doença atual como uma “gripezinha” e deixar que as pessoas morram e/ou sejam contaminadas por um vírus para o qual ainda não se descobriu uma vacina e que pode deixar sequelas severas, físicas e psicológicas, para aqueles que sobreviverem (já deixando de lado questões mais filosóficas, morais e mesmo religiosas sobre qual seria o valor da vida humana – prefiro me abster desta discussão).
Voltando à questão do sequenciamento, de tudo aquilo que já foi observado nas últimas semanas e que tem sido discutido por vários analistas[1], acho que a estratégia “ótima” (ou mais adequada, condicional ao conjunto de informações conhecido até o momento[2]), envolve o seguinte faseamento:
- Determinar o isolamento horizontal (isto é, a quarentena de boa parte da população) por cerca de três semanas, de modo a conter o espraiamento do vírus (lembrando que seu período de incubação é aproximadamente 14 dias – algo que fico mais claro depois que o surto chegou à Itália);
- Paralelamente a isso, atuar para reforçar e expandir a capacidade dos sistemas médicos, construindo hospitais de campanha com a ajuda das Forças Armadas, convocando as empresas do setor real para produzirem ventiladores mecânicos e outros equipamentos, treinando médicos, enfermeiros e mesmo voluntários para lidar com a situação de “guerra”, acelerando a produção dos medicamentos que já se mostram promissores no combate ao novo coronavírus, bem como dos testes para identificar o vírus nas pessoas. O isolamento horizontal, além de “achatar a curva” epidemiológica, também compra tempo para essa preparação do sistema médico;
- Passada essas três semanas de lockdown, iniciar, gradativamente, um phasing-out do isolamento horizontal, transitando para o isolamento vertical, mantendo confinados apenas os grupos mais vulneráveis (pessoas mais velhas e/ou com comorbidades). Em paralelo a isso, iniciar a testagem em massa na população, de forma aleatória (e não somente daqueles que manifestam algum tipo de sintoma). Essa testagem envolve dois tipos de exame, o de anticorpos e o genético, de modo a poder identificar claramente quem são aqueles suscetíveis (que nunca foram contaminados por esse vírus), aqueles infectados (assintomáticos e doentes) e aqueles que já adquiriram alguma imunidade ao novo coronavírus. Vale notar que algumas estimativas para o Reino Unido sugerem que cerca de metade da população já pode ter sido contaminada pelo novo coronavírus, o que significa dizer que muitos já podem ter adquirido imunidade (e que a taxa de letalidade seria menor do que aquelas que têm sido divulgadas).
Naturalmente, o desenho da política econômica deve ser feito para lidar com os efeitos gerados por cada uma dessas fases. Portanto, em um primeiro momento, os governos, além de mobilizarem recursos humanos e financeiros nas ações ligadas à saúde pública, também precisam atuar como compradores, garantidores e emprestadores de última instância de famílias e empresas – tentando “congelar”, ao máximo, a situação financeira/patrimonial destes agentes durante a quarentena –, além de assegurarem o fornecimento de produtos essenciais durante o período de lockdown (alimentos, remédios, materiais de higiene e limpeza, energia, telecomunicações e segurança pública). Esse tipo de ação do Estado é crucial para que o forte choque negativo de demanda associado ao distanciamento social não acabe se transformando em um choque negativo de oferta em um segundo momento (quebradeira geral de empresas), o que, por sua vez, pode alimentar um loop infinito (quebra de empresas gerando desemprego, levando a nova queda da demanda, gerando mais quebradeira de empresas etc.), levando, assim, à depressão econômica.
Em um segundo momento, após o lockdown radical, a política econômica precisa complementar as ações descritas no parágrafo anterior com medidas de estímulo, monetárias, fiscais e parafiscais, de modo a “manter as luzes acesas” e tentar restaurar, o quanto antes, o quadro de atividade econômica observada antes do sudden stop real.
Fica evidente, a partir do que foi descrito acima, que é preciso, dentre outras coisas, coordenação entre os vários tipos de política e os vários níveis de governo, além de tempestividade na adoção de várias das ações descritas acima. Nesse contexto, faço um apelo aos políticos brasileiros: deixem de politizar esse tema e cooperem entre si.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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