Kurzarbeit: a origem dos programas de retenção de emprego em época de crise
O programa alemão Kurzarbeit[1] é uma iniciativa de seguro social pela qual os empregadores reduzem o horário de trabalho de seus funcionários em vez de dispensá-los, e o governo repõe uma parte da renda perdida dessas pessoas. O trabalhador recebe, pelo governo, 60% de seu salário pelas horas não trabalhadas, enquanto recebe, pelo empregador, o salário integral pelas horas trabalhadas. E, trabalhadores com pelo menos um filho recebem uma proporção maior (67%) das horas não trabalhadas. O programa geralmente é executado por um período máximo de seis meses consecutivos. Porém, essa duração máxima pode ser prorrogada por até 12 meses ou até 24 meses, em casos excepcionais, no mercado de trabalho geral.
Em um exemplo hipotético, se um trabalhador (sem filhos) recebe 10 euros por hora trabalhada, e tem uma jornada de trabalho de seis horas por dia, recebe 60 euros diariamente. Numa redução de 1/3 da jornada de trabalho, o trabalhador hipotético passaria a trabalhar quatro horas (em vez de seis) diárias. Receberia o salário integral pelas horas trabalhadas (10 euros para 4 horas, totalizando 40 euros) e 60% do salário pelas horas não trabalhadas (6 euros por cada hora não trabalhada, sendo duas horas nesse exemplo, o que totaliza 12 euros pagos pelo governo). Em vez de receber 60 euros por dia, numa jornada de seis horas, e em “situações normais”, passaria a receber 52 euros, numa jornada de 4 horas. O trabalhador com filhos receberia 53,40 euros.
Vale frisar que a proteção contra a perda de salário é fornecida até o nível de remuneração que representa o limite máximo para as contribuições para a previdência social. O limite de renda mensal é de 6,9 mil euros no oeste da Alemanha e 6,45 mil euros no leste da Alemanha.
Originariamente instituído na Alemanha por ocasião da crise de 2008/09, o programa foi muito bem-sucedido na ocasião, como instrumento de retenção de emprego. Justamente por isso tem servido de modelo para outros países europeus na crise atual, protegendo a renda dos trabalhadores, o que acaba minimizando os impactos negativos da crise recessiva na demanda agregada. Trabalhadores com a renda parcialmente garantida continuam gastando e consumindo, o que não ocorreria no caso de desemprego elevado e forte diminuição da renda. Como os trabalhadores não perdem seus empregos, têm menos incentivo para economizar, dado que a renda foi preservada, se não na totalidade, numa alta proporção. E as empresas retêm capital humano específico, evitando custos de recontratação e treinamento, por exemplo.
Na Alemanha, os funcionários podem trabalhar horas extras e “acumular crédito” de horas de trabalho, que podem ser “sacadas” durante períodos de crise. Somente após “zerar” esse estoque de crédito de horas trabalhadas que as empresas podem usar o Kurzarbeit. Também há a questão de compartilhamento de custos, pelo qual o empregador deve pagar 80% do total das contribuições para a previdência social devidas pelas horas reduzidas de trabalho. Isso é uma forma de que esse programa não seja o primeiro e único recurso de empregadores que precisam reduzir a produção.
A grande desvantagem do programa é o fato de reduzir a flexibilidade do mercado de trabalho, na medida em que ajude a manter trabalhadores em empregos que eventualmente desaparecerão, e aumentando a divisão entre trabalhadores em segmentos mais e menos protegidos.
Em 2009, na comparação com 2008, a taxa de desemprego da Alemanha praticamente ficou estável (aumento de 0,3 p.p.). Os demais países do G7 apresentaram aumentos do desemprego muito maiores. A média do aumento da taxa de desemprego dos seis países que compõe o G7 junto com a Alemanha foi de 1,9 p.p. (Gráfico 1). Dentre todas as 39 economias avançadas do mundo, a Alemanha foi o país que apresentou o menor aumento da taxa de desemprego na recessão de 2009. A média dos 39 países foi de aumento de 2,5 p.p entre 2008 e 2009, mais de oito vezes do crescimento na Alemanha.
A crise atual deve ter um impacto muito maior do que em 2009, na Alemanha e na maior parte dos países. O FMI estima uma queda do PIB alemão de 7,8% para 2020, contra um recuo de 5,7% em 2009. A crise financeira mundial de 2008/09 afetou principalmente o setor manufatureiro. A crise atual, com o distanciamento social e as medidas adotadas para combater a pandemia, impactou muitos setores, principalmente os serviços, com o fechamento temporário de diversos negócios. Com isso, foram feitas mudanças no programa alemão. A reposição do salário pelo governo das horas não trabalhadas passou a ter um aumento gradual: 60% nos primeiros três meses (iniciado em março), 70% (77% para trabalhadores com pelo menos um filho) durante o 4º ao 6º mês, e 80% (87% para funcionários com pelo menos um filho) a partir do 7º mês. A duração máxima do programa foi estendida para 21 meses. Além disso, a cobertura também foi ampliada para trabalhadores temporários (cerca de 2% do emprego total). Até junho, 12 milhões de trabalhadores estavam nesse programa, número muito maior do que na última recessão mundial. No pior momento da crise financeira internacional de 2008/09, 1,5 milhão de trabalhadores estavam inscritos no programa.
Para os empregadores, a mudança mais importante foi que suas contribuições para a previdência social foram dispensadas, e a exigência de esgotar os saldos das contas de hora extra de trabalho antes de reivindicar a entrada no programa também foi suspensa. Além disso, as empresas não precisam mais reduzir o horário de trabalho para pelo menos 30% de seus trabalhadores para se qualificarem para o Kurzarbeit, pois o limite foi reduzido para 10%.
O forte impacto da crise atual no mercado de trabalho não pode ser superado apenas pelo Kurzarbeit, pois também há “empregos marginais”, a maior parte de informais trabalhando no setor de serviços. Estes não fazem contribuições para a previdência social e, portanto, não são cobertos pelo programa. Nenhum governo do mundo, mesmo o de um país rico como a Alemanha, tem condições de “salvar” todos os empregos. Para as pessoas mais vulneráveis, com empregos “mais frágeis”, programas de ajuda financeira durante o período de crise podem ser mais bem-sucedidos do que programas de retenção do emprego. No Brasil, por exemplo, o auxílio emergencial, uma ajuda financeira de R$ 600 para os trabalhadores informais, foi nessa direção, complementando aqueles que já recebiam a ajuda do governo federal pelo Bolsa-Família e outros programas sociais.
Na esteira da experiência alemã, diversos países europeus criaram programas de retenção de emprego, similares ao original alemão, como forma de combater o problema do desemprego na crise atual. França, Itália, Espanha e Reino Unido, além da percursora Alemanha, têm quase 1/3 da força de trabalho da Europa, o que corresponde a 45 milhões de trabalhadores beneficiados por esses programas. Diferentemente de países da Europa, os EUA não criaram um programa desse tipo de retenção de emprego. Desde meados de março, já houve mais de 50 milhões de trabalhadores norte-americanos pedindo o auxílio-desemprego nos EUA.[2]
Sobre a questão de “empregos que eventualmente precisariam desaparecer”, vale fazer alguns comentários. Tome-se como exemplo uma rede de dez lojas físicas com cem funcionários, e em que todos os trabalhadores estão incluídos no programa de retenção de emprego. No pós-crise, suponhamos que a rede de lojas passe a diminuir o número de lojas físicas de dez para seis, para fortalecer o comércio eletrônico. Com isso, os 40 vendedores das quatro lojas físicas ficarão desempregados quando isso acontecer. Só que, nesse exemplo hipotético, os 40 trabalhadores que ficarão sem emprego num futuro próximo estão sendo beneficiados pelo programa governamental. Então, o governo ajudou a “manter artificialmente” por mais algum tempo esses empregos, que logo podem desaparecer. Quando o auxílio governamental acabar, o desemprego pode aumentar.
No artigo The risk of 9 million - zombie jobs in Europe, de Katharina Utermo?hl, Selin Ozyurt e Ludovic Subran, de meados de junho deste ano, os autores chamam de “zombie jobs” empregos de setores “atrasados” (“late bloomer sectors”), como por exemplo construção, varejo, acomodações e serviços de alimentação. Reino Unido, Itália e Espanha apresentam muitos trabalhadores nesses setores. Alemanha, menos, relativamente. Quase metade dos 115 milhões de trabalhadores da União Europeia pertence a esses setores, sendo essa uma grande preocupação relacionada aos programas de ajuda dos governos europeus, pois quando esses auxílios terminarem, pode aumentar o número de pessoas desempregadas.
Os autores do artigo The risk of 9 million - zombie jobs in Europe também fizeram um levantamento sobre as diferenças entre os programas europeus. De maneira geral, há reposições de proporções diferentes dos salários feitas pelos governos. Na França, no programa “Cho?mage partiel / activite? partielle”, o Estado repõe 84% do salário líquido (70% do salário bruto), com 100% para os que recebem salário mínimo. Na Itália, 80% do salário mensal pré-lockdown. Na Espanha, até 70% do salário original nos primeiros seis meses, depois 50%. No Reino Unido, 80% do salário pré-lockdown mensal até agosto, que será reduzido para 60% em outubro.
O Reino Unido já começou a transição. Desde 01/07/20, as empresas começaram a ter flexibilidade de trazer funcionários de folga de volta ao trabalho em horário parcial, como parte do plano do governo de reabertura da economia. As empresas têm flexibilidade para decidir as horas e os turnos de seus funcionários, sendo responsáveis ??pelo pagamento de seus salários durante o trabalho, com o governo continuando a pagar 80% dos salários pelas horas em que não trabalham. Até o final de junho, o programa ajudou a proteger mais de 9,3 milhões de empregos durante a pandemia, com mais de 25 bilhões de libras (US$ 32 bilhões) gastos no programa para apoiar os salários.
A partir de agosto, o nível de subsídio do governo fornecido pelo programa será gradualmente reduzido para refletir o retorno das pessoas ao trabalho. As empresas serão solicitadas a contribuir com uma (pequena) parcela também. Os indivíduos continuarão recebendo 80% do salário para cobrir o tempo em que não puderem trabalhar. E o governo também anunciou que as empresas que não precisam mais das subvenções do Coronavirus Job Retention Scheme (CJRS), tendo as reivindicado anteriormente, têm a opção de devolvê-las voluntariamente.
Os programas de retenção de empregos na Europa, como o primeiro de todos, o Kurzarbeit na Alemanha, estão desempenhando um papel muito importante no momento, pois sem isso a recessão atual poderia ser ainda pior. Porém, somente esse tipo de ajuda não resolve todos os problemas da grave crise, o pior momento para a economia pós Segunda Guerra Mundial. A recessão atual é muito mais profunda do que a de 2008/09, com efeitos possivelmente permanentes sobre diversos setores, especialmente do segmento de serviços (hotéis, restaurantes, comércio etc.). Justamente por isso, imagina-se que muitos dos empregos salvos pela política governamental possam ser considerados “empregos zumbis”. Sendo assim, na medida em que ocorra descontinuidade dos programas, o desemprego possivelmente aumentará. Uma solução mais definitiva para o problema do desemprego virá somente com uma economia mais robusta e dinâmica.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Sobre o Kurzarbeit, o Federal Ministry of Labour and Social Affairs da Alemanha divulgou uma publicação, no final de maio deste ano, Questions and answers relating to short-time work (Kurzarbeit) and skills development, com informações relevantes sobre o programa. O FMI também divulgou um relatório Kurzarbeit: Germany’s Short-Time Work Benefit, em meados de junho de 2020.
[2] Entre 21/03/20 e 11/07/20, de acordo com dados do Unemployment Insurance Weekly Claims Report.
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