Macroeconomia

Linha de crédito do BC para o setor não bancário

26 mar 2020

O Federal Reserve (Fed) anunciou um amplo pacote de liquidez, incluindo a criação de linhas de crédito (facilities), para financiar empresas, consumidores, estados e municípios. A lógica é comprar empréstimos feitos pelos bancos, carregando os títulos no balanço do Fed, mas com risco coberto pelo Tesouro dos EUA, como explicou o Presidente do Fed, Jerome Powell, em entrevista nesta quinta.

Por aqui, Arminio Fraga e outros economistas fizeram proposta semelhante, mas com empréstimo por parte do Tesouro, em vez de pelo nosso Banco Central (BC). A iniciativa está na direção correta, reproduzindo o que o governo Lula fez na crise de 2008-09, quando o Tesouro emprestou recursos ao BNDES, para o BNDES dar assistência de liquidez ao setor não financeiro.

A proposta de Armínio tem a vantagem de ser para todo o sistema financeiro, não só via BNDES, mas ela me parece insuficiente e lenta diante da magnitude choque causado pelo Covid-19. Ontem argumentei que chegou a hora de o BC, não o Tesouro, entrar diretamente na concessão de crédito. A ideia está em artigo publicado na versão online da Folha de São Paulo de quarta. Hoje o artigo saiu na versão impressa e, diante de várias perguntas, escrevo este texto para detalhar o que pensei.

A ideia básica é o BC criar uma linha especial de crédito, a “Linha de Garantia de Emprego” (LGE), para comprar os empréstimos dos bancos para o setor não financeiro, destinados a financiar a folha de pagamento. O empréstimo teria como base a folha de pagamento da empresa pré-crise (digamos, em janeiro de 2020) e quem o contratasse teria que se comprometer a manter empregos por pelo menos um ano.

O empréstimo deve ser feito com taxa de juro zero, e o recurso creditado diretamente na conta dos trabalhadores da empresa, e nas contribuições trabalhistas dos empregadores. Isto diminui o risco de desvio de função, pois os recursos irão direto aos trabalhadores, INSS, FGTS etc. Depois volto a este tema.

O financiamento seria disponibilizado para financiar até quatro meses de folha de pagamento, com desembolsos mensais. A carência seria de pelo menos um ano, ou seja, só em abril de 2021 quem tomasse o empréstimo começaria a pagá-lo. Nos EUA o Fed pensa em carência de quatro anos, mas não sou tão heterodoxo quanto eles. E, completada a carência, o pagamento do principal ocorreria em 60 prestações fixas (lembrem que o juro é zero), dado que hoje débitos tributários já podem ser financiados em até cinco anos, mas à taxa SELIC.

Todos os bancos poderiam operar a linha do BC, que também seria aberta a instituições financeiras não bancárias, por exemplo os administradores das “maquininhas”, para agilizar sua implementação. Já apareceram propostas de mercado neste sentido, só que cobrando a taxa SELIC, via Tesouro e BNDES. Melhor fazer com taxa zero, via BC e todos os bancos comerciais, além das financeiras.

Os bancos e financeiras seriam os operadores da linha do BC, ganhando uma taxa de até 0,5% ao ano sobre o valor administrado (o Congresso decide). Essa “comissão” seria paga pelo BC, que depois poderia ser reembolsado pelo Tesouro. Caberia aos bancos conceder e administrar o crédito (registro, cobrança, etc), que, por sua vez seria securitizado e repassado ao BC, uma espécie de modelo Caixa-FGTS, adaptado para a crise.

O BC ficaria com o risco da operação e, caso houvesse perdas, caberia ao Tesouro cobrir o prejuízo, via emissão direta de títulos para a autoridade monetária, como já acontece hoje por fins de administração da liquidez (Lei 10.179 de 2001, governo FHC).

Mais especificamente, quando acabar a carência e começarem as amortizações pelas empresas, se houver perdas (provável), o Tesouro poderia emitir títulos diretamente ao BC para cobrir o prejuízo, com periodicidade semestral. Os títulos emitidos para esse fim iriam para a carteira livre do BC (aumento de ativo do BC e do passivo do Tesouro), tendo como contrapartida o aumento do patrimônio líquido do BC (aumento do passivo do BC e do ativo do Tesouro, que detém 100% do capital do BC).

Ainda no aspecto legal e operacional, há doze anos, devido à crise financeira e parada súbita no crédito pós quebra do Lehman Brothers, o então governo Lula editou a MP 442, posteriormente convertida na Lei 11.882, de 2008. A medida ainda está em vigor e diz que:

Art. 1o  O Conselho Monetário Nacional, com o propósito de assegurar níveis adequados de liquidez no sistema financeiro, poderá:

I - estabelecer critérios e condições especiais de avaliação e de aceitação de ativos recebidos pelo Banco Central do Brasil em operações de redesconto em moeda nacional ou em garantia de operações de empréstimo em moeda estrangeira; e

II - afastar, em situações especiais e por prazo determinado, observado o disposto no § 3o do art. 195 da Constituição Federal, nas operações de redesconto e empréstimo realizadas pelo Banco Central do Brasil, as exigências de regularidade fiscal previstas no art. 62 do Decreto-Lei no 147, de 3 de fevereiro de 1967, no § 1o do art. 1o do Decreto-Lei no 1.715, de 22 de novembro de 1979, na alínea c do caput do art. 27 da Lei no 8.036, de 11 de maio de 1990, e na Lei no 10.522, de 19 de julho de 2002.

§ 1o  Nas operações de empréstimo referidas no inciso I do caput deste artigo, fica o Banco Central do Brasil autorizado a:

I - liberar o valor da operação na mesma moeda estrangeira em que denominados ou referenciados os ativos recebidos em garantia; e

II - aceitar, em caráter complementar às  garantias oferecidas nas operações, garantia real ou fidejussória outorgada pelo acionista controlador, por empresa coligada ou por instituição financeira.

§ 2o  Na ocorrência de inadimplemento, o Banco Central do Brasil poderá, mediante oferta pública, alienar os ativos recebidos em operações de redesconto ou em garantia de operações de empréstimo.

Traduzindo do “juridiquês”, lá em 2008, o governo Lula já autorizou o BC a entrar direto no combate a crises financeiras, via compra ou redesconto de títulos privados. Na versão brasileira, as perdas eventuais dessa atuação ficariam com o BC, o que na prática significa Tesouro, dado que nosso BC é uma “empresa estatal” 100% da União.

Nos EUA é diferente, pois o Fed não é exatamente do Tesouro, daí a necessidade deles de prever acerto de contas. De qualquer modo, nada impede que a medida de Lula & Mantega seja aperfeiçoada por Bolsonaro & Guedes para dar mais agilidade e eficácia à ação do BC.

Na crise de 2008 o BC acabou não usando o espaço aberto por Lula e Mantega, cabendo ao BNDES funcionar como emprestador de última instância para várias empresas não financeiras, via empréstimos do Tesouro, no que foi uma de nossas formas de “afrouxamento quantitativo”. Depois o mecanismo temporário Tesouro-BNDES se desvirtuou, indo muito além do necessário para combater a crise (atenção, isto foi autocrítica). Por isso, e por que precisamos de mais agilidade no combate aos efeitos econômicos do Covid-19, agora é melhor fazer assistência emergencial de liquidez com o BC no lugar do Tesouro, e todos os bancos e instituições financeiras no lugar do BNDES.

Agora passemos à parte mais difícil. Como evitar desvio de função? Mais especificamente, como evitar que quem não precisa de recursos para financiar a folha pegue o empréstimo e aplique os recursos no mercado financeiro à taxa SELIC? Já coloquei que o recurso deveria ser liberado na conta do trabalhador, do FGTS, do INSS, etc. Ainda assim pode haver desvio de função, pois uma empresa que não precise de ajuda poderia simplesmente pendurar sua folha no BC, por quatro meses a juro zero, utilizando o caixa assim liberado para fazer aplicações financeiras.

Como acontece em qualquer programa público, esse risco existe e precisa ser enfrentado, mas, dado que alguns irresponsáveis chegaram a cogitar colocar a vida de milhares (milhões?) de pessoas em risco para “não parar a economia”, creio que o eventual float (arbitragem) em financiamentos da folha de pagamento por quatro meses seria um preço pequeno a pagar para “não parar a economia”. Felizmente existem alternativas concretas para diminuir esse preço.

Além de assinar compromisso de manter empregos, todas as empresas que tomarem a LGE deverão fazer declaração de necessidade emergencial de liquidez e, posteriormente, apresentar a queda do seu faturamento e a evolução de suas aplicações financeiras durante o período de assistência por parte do BC. As informações podem ter sigilo bancário, mas, de posse delas, o BC e o Tesouro poderão avaliar quem pegou dinheiro sem precisar e, com isso, cometeu crime contra o sistema financeiro. Isso deve ser suficiente para assustar os oportunistas de plantão e garantir que os recursos cheguem a quem precisa. De qualquer modo, isso é uma coisa a ser feita mais à frente, pois agora é preciso de ação rápida para evitar o colapso econômico, sobretudo de micro e pequenas empresas.

Também para evitar desvio de função, a LGE do BC deveria ter um limite de valor global e prazo definido. Como disse, sugiro financiar até quatro meses de folha de pagamento durante a crise. Se e quando isso se provar insuficiente, o governo (Planalto e Congresso) poderia avaliar se serão necessárias novas ações.

Qual seria o valor global? O governo sabe melhor isso, pois tem os dados da massa salarial por CNPJ, mas farei uma estimativa máxima. De acordo com o IBGE, em 2017 a remuneração dos empregados das empresas não financeiras e famílias correspondeu a 27% do PIB. Com base nesse percentual e utilizando o PIB projetado para este ano, já incorporando expectativa de recessão de 2% como estimou a FGV, o máximo a ser financiado, se todas as empresas pendurarem sua folha do BC por quatro meses, seria da ordem de R$ 300 bilhões. Na prática deve ser bem menos do que isso.

Por fim, um assunto que interessa mais aos economistas (afinal este é um texto no Blog do IBRE): qual será o impacto da LGE sobre a liquidez e dívida pública? A melhor forma de ilustrar essa questão é um exemplo numérico. Suponha que o BC financie $100 em folha de pagamentos. A sequência ocorreria da seguinte forma:

1)   As firmas procuram os bancos e obtêm $100

2)   Ao conceder crédito, os bancos criaram $100 de depósitos à vista (sim, a moeda é endógena).

3)   Como as reservas bancárias continuam as mesmas, os mais $100 de depósitos à vista reduzem o encaixe monetário (reservas/depósitos à vista) dos bancos. Em condições normais, os bancos precisariam vender uma fração do valor que acabaram de criar em títulos para o BC, de modo recompor suas reservas.

4)   Mas não estamos em situação normal. Devido à crise, na minha proposta, os bancos venderão todos os $100 criados ao BC. Ao fazerem isso, a base monetária sobe em $100, via aumento das reservas bancárias (o BC compra o empréstimo dados às empresas não financeiras e credita a reserva dos bancos em valor correspondente).

5)   Na sequência, a liquidez criada pelo BC pode ser excessiva para as condições de mercado. Sejamos conservadores e assumamos que todos os $100 criados serão excessivos à SELIC vigente e precisem ser esterilizados pelo BC. Como fazer isso?

6)   O BC vende $100 de títulos públicos livres em sua carteira ao mercado, retirando $100 de circulação. Se os depósitos voluntários no BC já tivessem sido criados, como Dilma propôs no longínquo ano de 2016 e já ocorre no Fed, a esterilização monetária também poderia ser feita via captação de recursos pelo BC, mas isto é detalhe.

7)   No final do processo os títulos públicos em circulação no mercado aumentam em $100, como se o Tesouro tivesse emitido para emprestar aos bancos, só que de modo muito mais rápido e via BC, como a situação exige.

8)   E, mais importante, caso a iniciativa dê certo, pois este é o objetivo, a economia não cairá tanto e o BC não precisará esterilizar $100 com operações de mercado aberto. Se isto ocorrer, digamos que o BC esterilize apenas $80 dos $100 iniciais, a alternativa BC-Bancos terá custado menos em termos de emissão de dívida pública do que a alternativa Tesouro-Bancos.

Tudo acima é obviamente uma sugestão. Os especialistas do BC e dos bancos sabem desenhar melhor a operação do que eu. O importante para a economia não é o detalhe técnico, mas sim usar os instrumentos disponíveis para combater a crise agora, mas com registro e transparência, para sabermos quem foi beneficiado, em quanto, depois que o pior passar.

No mais, toda a operação descrita acima seria mais simples se o financiamento fosse dado à taxa SELIC, pois isto diminui a possibilidade de arbitragem de taxa de juro. O problema é que mesmo a SELIC reduzida de hoje pode ser muito para as empresas em necessidade, que já estão demitindo milhares de trabalhadores.

E, caso a SELIC já estivesse em zero, também haveria menos risco de desvio de função via arbitragem de taxa de juro, mas isto é outra história, para um texto específico. Melhor deixar a SELIC onde o Copom achar necessário para controlar a inflação, pois não devemos exigir muito de nossos ortodoxos no momento em eles estão sofrendo de Keynesianismo pós-traumático.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

 

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Joicy Keilly F...

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