Macroeconomia

Liquidez excessiva sem inflação – o caso americano

11 nov 2019

Após a crise das hipotecas tóxicas – crise do subprime – que estourou com a quebra do Lehman Brothers em setembro de 2008, os bancos centrais do mundo desenvolvido elevaram muito a liquidez nas economias. Apesar da grande expansão da liquidez, a inflação não surgiu.

Alguns analistas argumentam que a ausência de inflação após toda a enxurrada de liquidez indica que os princípios da teoria monetária se alteraram.

Para a coluna, o aumento da liquidez é um fenômeno perfeitamente compreensível em função da queda dos juros reais. A queda dos juros reais, por outro lado, é um fenômeno real e não monetário. Associa-se: à queda do crescimento potencial das economias, que está ligada à queda da taxa de crescimento do progresso tecnológico; ao envelhecimento da população e à elevação da percepção de risco que o acompanha; à natureza do progresso técnico, que reduziu o requerimento de poupança necessário para uma unidade de investimento; entre tantos outros motivos.

Essas mudanças estruturais reduziram a demanda por empréstimos e elevaram a oferta de recursos no momento presente em troca do recebimento de um fluxo de renda no futuro. O balanço entre oferta e demanda reduz o juro. Dependendo desse balanço é perfeitamente possível que o juro de equilíbrio seja negativo. Ou seja, juro real negativo é uma possibilidade teórica. Sabemos desse fato desde, pelo menos, a publicação do clássico de Irving Fisher, Theory of Interest.

Quando o juro se reduz muito, a demanda por moeda se eleva. No limite, quando o juro é nulo, a demanda por moeda cresce muito. O juro nominal pago pelo papel moeda em poder do público também é nulo. Em um mundo ideal, em que o custo de armazenamento da moeda seja muito baixo, a demanda por moeda, quando a taxa de juros nominal tende a zero, cresce ilimitadamente: qualquer quantidade de moeda ofertada será demandada.

A economia americana, no entanto, tem operado com juros nominais superiores a zero. Por que motivo, então, toda a expansão de moeda não produziu inflação por lá? Isto é, por que motivo os bancos não emprestam para o setor privado toda a liquidez que eles possuem, em vez de manter boa parte dela parada na sua conta corrente no banco central norte-americano?

O primeiro motivo é que não há muita demanda do setor privado por tomar crédito. Como vimos, fatores estruturais têm reduzido a demanda por crédito nas economias centrais.

Mas há outro motivo para que os bancos mantenham quantidade bem maior de reservas em suas contas correntes no banco central americano. O motivo é que, após a crise, o banco central americano, Federal Reserve (Fed), mudou a sua operação do mercado de reservas bancárias.

Até a crise, o mercado de reservas bancárias americano operava em um regime de restrição. As reservas que excedessem aquelas que os bancos comerciais tinham que deixar no BC não eram remuneradas. Assim, os bancos, ao escolherem a quantidade de reservas que iriam carregar em sua conta corrente no banco central, sopesavam dois custos. A possibilidade de carregar menos reservas do que o necessário e, portanto, ser obrigado a pedir empréstimo ao banco central para pagar suas contas, e, neste caso, pagar taxa de juros 1 ponto percentual acima dos juros do mercado interbancário; e a possibilidade de ver sobrar reservas na sua conta corrente no banco central, e ficar com o dinheiro parado (sem remuneração) por um dia.

Assim o sistema operava com poucas reservas e o banco central diariamente dava liquidez ao sistema por meio de operações de mercado aberto, em geral colateralizadas (com títulos como garantia). De manhã, o banco central leiloava a compra de títulos públicos dos bancos comerciais em troca de reservas. A operação era desfeita na manhã do dia seguinte, antes do novo leilão. O Fed estabelecia a quantidade de recursos. O banco central estimava a quantidade de reservas que iria leiloar em função da necessidade do sistema bancário, calibrando para que os juros no mercado interbancário efetivamente praticados ficassem em torno da taxa básica de juros decidida pelo comitê de política monetária do Fed, conhecido por FOMC.

Durante a crise, o Fed comprou no mercado quantidade gigantesca de títulos, tanto papéis do Tesouro quanto ativos estruturados de hipotecas. Adquiriu esses títulos com emissão de reservas. Assim, o ativo do banco central cresceu muito com os títulos adquiridos, e seu passivo também. As reservas, que em 2006 foram na média de US$ 9,3 bilhões, subiram para US$ 1,0604 trilhão em 2010 e US$ 2,6431 trilhões em 2014.

Nesse período pós-crise, a taxa básica de juros era zero e não havia custo aos bancos em carregar reservas. Por outro lado, não havia muita demanda por empréstimos. A economia estava machucada, se recuperando da maior crise desde 1929.

Adicionalmente, o Fed resolveu remunerar as reservas excedentes às compulsórias. A taxa da remuneração era dada pela banda superior da variação da taxa básica de juros, 0,25%, quando o limite inferior da banda era 0%. A instituição da remuneração das reservas explica que, mesmo com a elevação da taxa de juros, as reservas não tenham sido empregadas para aumentar os empréstimos ao setor privado.

Evidentemente, se houvesse muitas opções rentáveis de aplicação dos recursos, os bancos seriam mais agressivos na concessão de crédito, reduzindo as reservas. Mas o fato de as reservas serem remuneradas contribuiu para retê-las na conta corrente dos bancos comerciais no Fed.

Como caminhará a operação da política monetária nos próximos anos não está claro. O Fed voltará a trabalhar em um regime de reservas restritas ou manterá o atual regime com muitas reservas? No primeiro caso, como vimos, o banco central opera injetando liquidez diariamente no sistema; no segundo caso ele opera enxugando a liquidez, isto é, remunerando as reservas.

O importante a reter é que o fenômeno de um juro real muito baixo e as alterações na operação da política monetária explicam perfeitamente o suposto paradoxo de reservas amplas e ausência de inflação. Não será necessário os estudiosos de teoria monetária reescreverem os livros textos.


Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de novembro de 2019.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

 

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