Macroeconomia

A luta de classes, o moto perpétuo pseudo-keynesiano e o exemplo enganoso do Japão

17 abr 2019

No século XIX, a luta de classes ocorria no chão de fábrica e nas ruas. Tempos de greves, manifestações e cavalaria dispersando violentamente os trabalhadores.

A luta de classes tinha um princípio básico. Os recursos são escassos e, para reduzir a desigualdade e construir uma sociedade mais justa, era necessário tirar de quem tem.

A tradição marxista-leninista era muito cética quanto à capacidade de haver melhoras significativas nas injustiças de uma economia de mercado por meio incrementais, isto é, tributando e transferindo serviços públicos de qualidade. Melhor expropriar e estatizar.

Sabemos que esse caminho deu errado. O melhor que o século XX legou para o século XXI foi a experiência do estado de bem-estar social.

Nas sociedades modernas, a maior parte do conflito distributivo ocorre no interior do orçamento do Estado.

Um movimento curioso foi o caminho que o conflito distributivo tem percorrido nos últimos tempos. Se, antigamente, a explicitação da limitação de recursos e a necessidade de tirar de uns e transferir para outros era o tema da disputa, agora movimentos mais ou menos identificados com aquelas bandeiras passadas tomaram caminhos que minimizam a restrição de recursos.

Aqui em nosso quintal é comum o pensamento econômico abarcar entendimentos do funcionamento da economia que estabelecem enorme espaço fiscal para o Estado. Com base em leitura extremada da contribuição de Keynes, constrói-se narrativa de que a economia opera quase sempre com ociosidade.

A ociosidade permite que o governo gaste sem ter recursos: o banco central simplesmente emite e transfere recursos ao Tesouro, que os gasta. O gasto estimula o crescimento e o aumento do emprego e da renda. De quebra, o déficit público se reduz, pois a receita de impostos sobe.

O moto perpétuo das contas públicas garante o crescimento permanente. Não há escassez e o desenvolvimento somente não é atingido pois algum interesse mesquinho do capital, inconfesso e difícil de ser compreendido, impede.

Mais recentemente tem se popularizado em departamentos pouco conhecidos da academia americana a modern monetary theory (MMT).

Uma leitura rápida e preliminar dessa literatura indica haver paralelismo entre as prescrições de política econômica heterodoxas e as da MMT. Ambas veem enorme elasticidade na capacidade de gasto do setor público, sem que a restrição de recursos da economia seja testada.

O importante a reter é que as duas correntes correm na direção contrária da forma como a luta de classes foi historicamente travada no século XIX: minimizam a restrição de recursos em vez de explicitá-la.

Uma evidência empírica que tem sido recorrentemente levantada para justificar a ausência de restrição ao gasto ou sua elevada elasticidade é a ausência de inflação no Japão.

O argumento parece ser o seguinte: o Japão tem enorme dívida pública. O seu BC promoveu fortíssima expansão de balanço e não há sinais de inflação. Adicionalmente, em que pese toda a expansão monetária, os juros reais são muito baixos. Assim, o Japão comprovaria essa enorme elasticidade do gasto público.

Mas a experiência japonesa não se presta a esse objetivo. Os juros reais negativos como um caso de equilíbrio (vigente no Japão) constituem um fenômeno real que já fora previsto no clássico Theory of Interest, de Irving Fisher, publicado em 1930. O modelo de Fisher é a teoria de juros ‘mainstream’.

Juros é o preço intertemporal. Se ele for maior do que um, os juros serão positivos; se o preço entre o presente e o futuro for menor do que um, os juros serão negativos.

As pessoas demandam e ofertam fluxos futuros de renda. O balanço entre essa oferta e demanda estabelecerá a taxa de juros.

No frigir dos ovos, há somente duas maneiras de adquirir um fluxo de renda futuro: ter algum ativo real – casa para alugar, arrendamento de terras, fábricas, participação acionária em alguma empresa, título de renda fixa associado a negócio produtivo, como debêntures de infraestrutura – ou ter uma participação sobre a receita de impostos futuros, por meio da aquisição de um título de dívida pública.

Em uma sociedade em que a população se reduz, a oferta de ativos reais que possam garantir uma renda futura entra em queda: haverá menor demanda futura por apartamentos para alugar, estradas, portos, aeroportos, trens, etc.

A demanda também cai, pelo menor crescimento populacional. Entretanto, essa tendência à queda da demanda por fluxos de renda futura é contrabalançada pelo envelhecimento e pela grande incerteza individual, associada a ele, sobre gastos futuros com saúde e tempo de sobrevida na inatividade.

Há uma demanda por seguro, que será ainda maior se não houver um Estado de bem-estar social suficientemente generoso para ofertar publicamente este seguro contra os riscos da velhice.

Nesse caso, é perfeitamente possível que, em equilíbrio, o juro real seja negativo. Fisher esperaria que assim fosse.

O Japão é a sociedade mais envelhecida que há. A razão de dependência – população com 65 anos ou mais como proporção da população entre 20 e 64 anos – é de 47%. O gasto do setor público com previdência é de 10% do PIB. O Brasil gasta 14% do PIB com 13% de razão de dependência. A norma internacional sugere que o Japão, em função da demografia, deveria gastar uns 18% do PIB.

Dado que o Estado é muito avarento na oferta de seguros públicos, a população precisa poupar muito, mesmo com juros negativos.

De fato, a taxa de poupança por lá é da ordem de 28% do PIB e a taxa de investimento está em torno de 24% do PIB. Ou seja, o Japão é um país velho, que investe muito para uma nação de população declinante, mas que poupa ainda mais. Exporta 4% do PIB de poupança todo ano.

Mais impressionante ainda é que, nos últimos 30 anos, o PIB per capita cresceu 0,9% ao ano, próximo do crescimento americano.

É uma sociedade extremamente envelhecida – com uma fenomenal capacidade de crescimento (dada as circunstâncias) e de poupança – e, mesmo assim, consegue investir internamente quase ¼ do produto. Evidentemente, o retorno desse investimento não será muito elevado. Mal deve cobrir a depreciação. Mesmo assim ele ocorre, pois há muita demanda por fluxo de renda futura.

Adicionalmente, a dívida pública tem que crescer: há muita demanda por fluxos de renda futura; é muito difícil ofertar tudo com investimento reais, e resta, portanto, ao Estado suprir essa demanda.

Assim, é verdade que o setor público japonês apresenta uma restrição muito elástica. Mas a fonte da elasticidade não está nos recônditos da teoria monetária que foram esquecidos pelo saber convencional.

Está na capacidade de um povo que apresenta um nível educacional, disciplinar, de trabalho e de poupança inaudito.


Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de abril de 2019.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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