Macroeconomia

Macroeconomia do coronavírus: tréplica a Oreiro

14 abr 2020

O economista José Luis Oreiro fez em seu blog um alentado comentário à minha coluna de domingo, 12/4, na Folha de São Paulo. Segundo Oreiro, ele encontrou erros lógicos no meu texto.

A minha coluna tratava de como fica o equilíbrio macroeconômico em uma economia que sofre supressão da atividade produtiva e de qual deve ser a política pública para estimular a manutenção do emprego, nos setores que mantêm a sua atividade mesmo com a supressão.

A coluna concluía que fazia sentido uma política pública de redução de salários de servidores públicos em contrapartida à redução média da jornada (muitos servidores em quarentena trabalham menos ou não trabalham). Oreiro afirmou que essa afirmação era de conteúdo ideológico e, adicionalmente, disse que eu cometi inúmeros erros lógicos no meu texto. A afirmação de Oreiro de que a recomendação que fiz era ideológica está certa. As demais críticas não procedem.

A conversa com Oreiro é difícil pois ele coloca palavras na minha boca. Às vezes considera que há uma dedução lógica onde não há. E, outras vezes, desconsidera hipóteses que explicitamente supus para fazer uma afirmação. Assim, há seletividade na forma como Oreiro lê meu texto. Essa seletividade acaba por distorcer meus argumentos. Assim, para continuar a conversa e responder a Oreiro, precisarei incialmente reproduzir todo o seu argumento. Segue o texto:

“Samuel considera uma economia composta por dois setores: O setor A que realiza atividades essenciais e o Setor B que realiza atividades não essenciais. Por simplificação assume-se que cada setor emprega metade dos trabalhadores, que toda a produção é realizada apenas com trabalho (não há capital) e, portanto, toda a renda gerada é constituída de salários. A folha de salários é igual em cada setor. Por fim, assume-se que cada trabalhador consome 50% de sua renda com produtos do setor essencial e 50% da sua renda com produtos produzidos no setor não essencial. A poupança do setor privado é igual a zero. Não está dito no texto, mas podemos inferir também que, inicialmente, o déficit do governo é igual a zero e, portanto, a dívida pública é também igual a zero. Consideremos, por fim, que o governo só pode financiar seus eventuais déficits por intermédio de venda de títulos públicos no mercado (para os trabalhadores de ambos os setores); ou seja, que o Banco Central não está autorizado a comprar títulos públicos.

Nesse contexto, ocorre um choque exógeno, a pandemia do coronavírus, que obriga o governo a adotar medidas de DS [distanciamento social] para os trabalhadores do setor não essencial. Imediatamente a produção do setor não essencial é zerada, o que implica na redução do consumo dos trabalhadores do setor essencial em 50%, devido ao choque de oferta no setor não essencial. Nesse contexto, se a renda dos trabalhadores não essenciais também for reduzida a zero, então eles não poderão comprar os bens produzidos pelos trabalhadores do setor essencial, reduzindo assim a demanda pelos bens essenciais em 50%. Teremos então um choque de demanda negativo no setor essencial, que fará com que a renda dos trabalhadores desse setor se reduza em 50%. Em suma, no cenário “laissez faire” no qual o governo fica sentado olhando a crise e não faz nada, temos uma contração de 100% da renda do setor não essencial e de 50% da renda do setor essencial, uma queda de 75% da renda da economia no período de duração das medidas de DS.

Agora consideremos que o governo introduza um programa de garantia de renda dos trabalhadores do setor não essencial, se dispondo a arcar com 100% da renda desses trabalhadores. Nesse caso, os trabalhadores do setor não essencial poderão manter inalterada a sua demanda por bens produzidos no setor essencial, anulando assim o choque de demanda. A produção do setor essencial será mantida intacta, de forma que a queda da produção ficará restrita ao setor não essencial. A queda da produção dessa economia hipotética durante a duração das medidas de DS será de “apenas” 50%, valor muito inferior ao que ocorreria no cenário de não intervenção do governo. Isso porque, embora o governo não possa fazer nada para conter o choque de oferta, ele tem os instrumentos necessários para anular o choque de demanda.

Como o governo financia o aumento de gastos para implementar o programa de garantia de renda? A resposta é simples, com a venda de títulos públicos aos trabalhadores dos setores essencial e não essencial, que agora são forçados – como decorrência das medidas de DS – a poupar 50% da sua renda, coisa que não fariam caso as medidas de DS não estivessem em vigor. A poupança do setor privado terá aumentado na mesma magnitude na qual o setor público reduziu a sua poupança. A poupança líquida da economia continuará sendo igual zero como era antes da pandemia de coronavírus. Como na economia hipotética de Samuel Pessoa não há capital, então também não há investimento de onde concluímos logicamente que a taxa de juros antes e durante a pandemia é igual a zero (obs.: no modelo de Samuel Pessoa a taxa de juros é determinada pela interação entre poupança e investimento).

Observe caro leitor que no exemplo utilizado por Samuel Pessoa o custo econômico da adoção do programa de garantia de renda do setor não essencial foi igual a zero. Isso mesmo, zero!!!!. Isso porque a riqueza líquida da sociedade não foi alterada: o aumento do endividamento do setor público foi a contrapartida necessária do aumento da riqueza do setor privado. A sociedade como um todo está tão rica (ou tão pobre) depois da pandemia como estava antes da pandemia.

Até aqui seguimos rigorosamente as implicações lógicas das premissas adotadas por Samuel Pessoa. No entanto, na parte final do seu artigo Samuel Pessoa afirma que garantir 100% da renda dos trabalhadores do setor não essencial é desnecessário e (sic) muito caro em termos do aumento do endividamento do setor público. Ele sugere que o governo só precisa garantir 50% da renda dos trabalhadores do setor não essencial, o que já seria suficiente para manter a demanda dos produtos do setor essencial.

Qual seria o ganho dessa medida para a sociedade como um todo? Para Pessoa, a vantagem dessa medida é que governo precisaria se endividar menos; mas o que ele desconsidera é que ao fazer isso a poupança forçada seria reduzida na mesma magnitude da redução da despoupança do setor público; de forma que o ganho para a sociedade dessa medida seria igual a zero. Se o custo econômico do programa de manutenção de 100% da renda dos trabalhadores do setor não essencial é igual a zero por que razão o governo deveria cobrir apenas 50% da renda? Notem ainda que, nas condições supostas por Pessoa, os trabalhadores do setor essencial teriam 100% da sua renda tanto no caso em que o governo cobre 100% da renda do setor não essencial, como no caso em que cobre apenas 50% da renda dos trabalhadores desse setor. A diferença entre o primeiro caso e o último é que a distribuição de renda e de riqueza entre os trabalhadores de ambos os setores não se altera no primeiro caso; mas sofre uma alteração profunda no segundo caso. Isso porque os trabalhadores do setor essencial terão um aumento na sua riqueza líquida (armazenada na forma de títulos públicos), mas a riqueza dos trabalhadores do setor não essencial não irá aumentar, pois eles terão uma queda de 50% na sua renda. Em suma, a argumentação de Pessoa de que o governo não precisa garantir 100% da renda dos trabalhadores do setor não essencial não se deduz logicamente de suas premissas.”

Nesse último trecho (em negrito), Oreiro afirma que eu tirei uma conclusão sobre o nível desejável de cobertura pelo governo da perda de renda de trabalhadores que não se deduz logicamente das minhas premissas.

Li essa passagem de Oreiro, voltei ao meu texto e me perguntei: onde exatamente eu escrevi que o fato de o governo não precisar garantir 100% da renda dos trabalhadores do setor não essencial é algo que se deduz logicamente das minhas premissas? Oreiro é tão cioso da consistência lógica que eu achei que eu tinha deslizado. Voltei ao meu texto. Lá se lê:

Note que não há necessidade de compensação total da perda de renda. Se as rendas dos trabalhadores do setor B forem compensadas em metade da queda da produção, já será suficiente para a manutenção da demanda pelos bens essenciais produzidos pelo setor A.”

Escrever que “não há necessidade de compensação total da perda” e que “já será suficiente” é muito diferente de escrever que “decorre de minhas premissas que a compensação tem que ser parcial”. Oreiro usa um truque retórico interessante: diz que eu disse uma coisa para em seguida dizer que a coisa que ele diz que eu disse está errada. Ora, eu respondo aos meus leitores pelo o que eu realmente escrevi. Mostrei que pode haver compensação de 100% e mostrei que pode haver compensação de 50%. O que decorre logicamente do meu texto – é surpreendente que Oreiro, tão cioso da lógica, não tenha notado – é que qualquer compensação da renda entre 50% e 100% representa um equilíbrio macroeconômico. É isso que está implícito logicamente na minha coluna.

O texto de Oreiro segue:

“Mas a falta de consistência entre premissas e conclusões não para aí. No final do artigo Pessoa afirma que o governo deveria reduzir os salários dos servidores públicos para (sic) reduzir o ritmo de crescimento da dívida do governo. Ora, no exemplo de Pessoa a taxa de juros é igual a zero, logo o custo do crescimento da dívida é, por definição, igual a zero. Além disso, Pessoa esquece – e é aqui que temos o grande cochilo lógico – que parte significativa dos servidores públicos da União, Estados e Municípios trabalham no setor essencial: estamos falando de médicos, enfermeiros, assistentes sociais, policiais, soldados, cientistas, pesquisadores da área de infectologia; ou seja, o pessoal que está na linha de frente do combate ao coronavírus Logo, a proposta de reduzir os salários dos funcionários públicos é mexer na renda do setor essencial, a qual ele assumiu no início de sua argumentação que não seria afetada por essas medidas. Ao reduzir a renda de uma parte dos trabalhadores do setor essencial, o governo irá ampliar, ao invés de reduzir, a contração do nível de produção da economia como um todo.”

Primeira coisa que eu não entendi foi o motivo de Oreiro achar que, no meu exemplo, a taxa de juros é zero. No meu exemplo, após a política pública de compensação da renda, a taxa de juros será a mesma que vigorava antes. Em geral, como tem sido o caso no Brasil, ela é positiva. Como escrevi na coluna, “nessas circunstâncias, o Banco Central não deve nem subir nem reduzir a taxa de juros.” A determinação da taxa de juros não foi objeto da coluna. Não é possível tratar de tudo em 3.400 caracteres.

Mas também não reconheço meu texto em nada que ele escreveu no último trecho que citei. O que eu escrevi foi o seguinte:

“No mundo real, e para o setor privado, a compensação será certamente menos do que integral. Salários serão reduzidos e é possível que empresas quebrem. Nesse cenário, não faz sentido que o setor público garanta a integralidade dos salários dos servidores que não trabalham nos setores essenciais.”

Há três argumentos nesse parágrafo que Oreiro não notou. Estranho ele não ter notado se é tão atento à lógica. O primeiro argumento é que esse parágrafo se inicia com a afirmação “no mundo real”, o que deixa claro que eu relaxarei algumas hipóteses que foram adotadas até aqui. A segunda afirmação no parágrafo é que, no setor privado, “a compensação será certamente menos do que integral” em função da queda de salário e da falência de inúmeras empresas. Ou seja, até agora todo o argumento, como tão bem resenhou Oreiro, tinha por suposto que não haveria desemprego e que nenhuma empresa iria à falência. Nesse parágrafo, de forma explícita, relaxo essas hipóteses. E minha prescrição de compensação menos do que integral aos servidores se sustenta em um princípio de equidade, que, aliás, foi defendido por ele mesmo, em um contexto ligeiramente distinto, alguns parágrafos antes. Como ele mesmo escreveu:

“A diferença entre o primeiro caso e o último é que a distribuição de renda e de riqueza entre os trabalhadores de ambos os setores não se altera no primeiro caso; mas sofre uma alteração profunda no segundo caso. Isso porque os trabalhadores do setor essencial terão um aumento na sua riqueza líquida (armazenada na forma de títulos públicos), mas a riqueza dos trabalhadores do setor não essencial não irá aumentar, pois eles terão uma queda de 50% na sua renda.”

No caso que agora analiso, em que os trabalhadores do setor privado observarão perda de renda, a compensação integral dos servidores públicos produzirá “alteração profunda” da distribuição de renda. Mas, de fato, essa prescrição, como veremos, tem um conteúdo normativo.

E o terceiro argumento no meu parágrafo, que ele também não notou, é que eu circunscrevo a compensação menos do que integral aos “servidores que não trabalham nos setores essenciais”. Pelo que eu entendi, Oreiro considera que 100% dos servidores trabalham nos setores essenciais. Não me parece ser o caso. Se esse fosse o caso, a minha afirmação não estaria “logicamente errada”, ela somente não seria relevante, pois, neste caso, servidor público do setor não essencial formaria um conjunto vazio. Assim, a seguinte passagem de Oreiro em seu texto não se aplica:

Além disso, Pessoa esquece – e é aqui que temos o grande cochilo lógico – que parte significativa dos servidores públicos da União, Estados e Municípios trabalham no setor essencial: estamos falando de médicos, enfermeiros, assistentes sociais, policiais, soldados, cientistas, pesquisadores da área de infectologia; ou seja, o pessoal que está na linha de frente do combate ao coronavírus.

Eu nada esqueci. Como vimos, afirmei explicitamente: “Nesse cenário, não faz sentido que o setor público garanta a integralidade dos salários dos servidores que não trabalham nos setores essenciais”. É irritante gente que diz que a gente escreveu algo que a gente não escreveu. Quanto trabalho! Se ele acha que 100% dos servidores públicos trabalham no setor essencial, não me oponho. Mas isso não indica que eu cometi um cochilo lógico.

Ou seja, até aqui não cometi nenhum erro lógico. Mas há uma afirmação de Oreiro que é procedente, se despida da retórica agressiva:

“Em suma não há justificativa de ordem econômica para a redução dos salários dos servidores públicos. Creio que a sanha de Pessoa e outros economistas do mercado financeiro contra os servidores públicos é de natureza estritamente ideológica.”

A afirmação de que “não há justificativa de ordem econômica para a redução dos salários dos servidores públicos” é correta. O que eu mostrei na coluna, e segue das hipóteses de meu modelo simplificado, é que qualquer esquema de compensação de 50% até 100% é justificado em termos puramente econômicos, na economia hipotética que construí. Assim, quando, a partir de um princípio de justiça distributiva entre o setor privado e o setor público, eu defendi a compensação menos do que integral, eu não me baseei em uma justificativa econômica. Eu fiz uma afirmação de conteúdo moral, ou que encerra um juízo de valor, ou ideológico. Oreiro está certo nessa observação.

O que temos então: qualquer compensação entre 50% e 100% é o que sai do modelo simplificado que eu construí na coluna. A minha sugestão de que a compensação seja menos do que integral encerra um juízo de valor – segundo Oreiro, porque eu sou do mercado financeiro e odeio os servidores. O que Oreiro não notou foi que a opinião dele, de que a compensação seja integral, também encerra um juízo de valor, talvez devido ao fato de Oreiro ser servidor público.

Aqui aparece a dificuldade de conversar com gente que tenta desqualificar o outro. Eu posso pensar o que eu penso sem ser por eu ser do mercado financeiro ou por odiar servidores; e Oreiro pode pensar o que ele pensa sem que o motivo seja ele ser servidor público e, portanto, estar defendendo o próprio salário. Homens de boa-fé podem ter opiniões divergentes sem ser necessariamente por estarem defendendo seu próprio bolso. Quando Oreiro leva a conversa por esse campo a torna muito difícil.

Oreiro termina sua crítica à minha coluna afirmando que para o mercado financeiro “é necessário criar uma narrativa de que os servidores públicos são uma casta privilegiada, para desviar o foco do debate público sobre medidas de reforma tributária como, por exemplo, a cobrança de imposto de renda sobre lucros e dividendos distribuídos, a criação do Imposto sobre grandes fortunas e o aumento do IPTU e do ITR. O discurso de ódio aos servidores públicos é a grande “arma de distração de massas” no debate econômico brasileiro.”

Esta acusação não se aplica a mim. Já escrevi três colunas sobre esse tema: na minha coluna na revista Conjuntura Econômica em novembro de 2015 (file:///C:/Users/Admin/Downloads/60594-127646-1-PB%20(13).pdf), na minha coluna da folha de 8 de abril de 2018 na Folha de SP, bem como no que escrevi criticamente ao regime tributário especial do Simples, em 10 de fevereiro de 2016.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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