Mandato dual para o BCB: apoiado pela teoria e evidência recentes
Foi aprovado recentemente no Senado Federal um dos vários projetos em discussão no Congresso Nacional que buscam elevar a autonomia operacional do Banco Central do Brasil. O substitutivo do PLP 19/2019 agora será discutido na Câmara – podendo eventualmente ser apensado ao PLP 112/2019, enviado pelo Executivo à Câmara no ano passado.
A ideia básica por detrás desse tipo de iniciativa é a de minimizar a possibilidade de que a política monetária também sofra dos ciclos políticos-eleitorais tipicamente observados na política fiscal, bem como evitar o problema conhecido na literatura como inconsistência intertemporal (o famoso “empurrar com a barriga”).
Embora a concessão de maior autonomia aos BCs venha sofrendo questionamentos há alguns anos, especialmente após a crise de 2008/09 – que trouxe uma sobreposição crescente das políticas monetária e fiscal em vários países que atingiram o Zero Lower Bound (ZLB) -, ainda assim os fatores apontados no parágrafo anterior parecem continuar justificando algum grau de autonomia operacional para os BCs. Talvez a persistência do quadro de ZLB e a própria situação de helicopter money que temos observado na prática neste ano de 2020, com a crise da Covid-19, aumentem o apelo para manter certa autonomia operacional da autoridade monetária, no sentido de manter ancoradas as expectativas inflacionárias de médio e longo prazos (em um contexto no qual vários trabalhos vêm apontando um peso crescente das expectativas na determinação da inflação corrente, como é o caso deste paper recente do BIS).
Contudo, mais liberdade deve ser acompanhada de mais responsabilidade – e também de maior transparência/accountability, já que estamos falando de uma política pública.
Nesse contexto, a principal novidade do projeto aprovado no Senado é que ele também ampliou o mandato formal do BCB. Para além da estabilidade de preços (inflação em torno da meta definida pelo CMN) e da estabilidade financeira, foram acrescidos os objetivos de suavização das flutuações econômicas e de promoção do pleno-emprego. O projeto aprovado ainda definiu uma hierarquia, com os novos objetivos devendo ser buscados sem prejuízo dos dois primeiros.
Embora alguns pesos pesados do establishment político/econômico suportem essa ampliação do mandato formal – como Armínio Fraga -, muitos analistas continuam “torcendo o nariz” para o duplo mandato, mesmo nessa versão “light” (com uma clara hierarquia dos objetivos e ainda dando liberdade ao BCB para definir numericamente o que é “pleno-emprego”). Alguns deputados vêm falando inclusive em excluir esses dois novos objetivos na tramitação do projeto na Câmara.
Eu fico impressionado como esse debate sobre autonomia/mandato é fortemente carregado de tintas ideológicas, em ambos os lados do espectro político. Mais à esquerda, muitos têm a visão de que aumentar a autonomia do BCB seria análogo a deixar “a raposa cuidar do galinheiro”. Do outro lado, mais à direita, o mandato dual é visto como necessariamente inflacionista e a independência total (autonomias operacional e política) da autoridade monetária como uma panaceia.
Contudo, o bom debate deve ser pragmático, “agnóstico”, suportado pela teoria mais recente - e ela evoluiu muito desde os primeiros trabalhos sobre inconsistência intertemporal e reputação/credibilidade, no começo dos anos 80 -, bem como pela evidência empírica mais atualizada.
Nesse contexto, é importante destacar, em primeiro lugar, que a inclusão da suavização dos ciclos ao mandato oficial do BCB apenas formaliza algo que já acontece na prática, como sugerem as várias estimativas da função de reação da autoridade monetária brasileira (“regra de Taylor”). O BCB, tal como a maioria dos bancos centrais mundo afora que adota o regime de metas de inflação, opera, na prática, naquilo que a literatura denomina como flexible inflation targeting, em que a “taxa de sacrifício” (custo em termos de atividade para desinflacionar uma economia) não é ignorada nas decisões de política monetária.
Portanto, a ampliação do mandato nos termos colocados pelo projeto do Senado caminha no sentido de conferir maior transparência à política monetária, ao explicitar o “dirty little secret” dos BCs (como colocado por Frederic Mishkin). Ademais, a formalização do mandato dual reduz o espaço para que o peso atribuído ao coeficiente da atividade/hiato na função de reação possa, eventualmente e arbitrariamente, ser zerado - a depender do “estilo” de quem seja o ocupante de turno da presidência do BCB (minhas estimativas sugerem que esse parece ter sido o caso no Brasil durante boa parte do período 2016-2018).
Em segundo lugar, a evidência empírica recente sugere que o hiato do produto doméstico (variável não-observável que busca justamente estimar a posição cíclica da economia) é um importante indicador coincidente e antecedente da inflação doméstica. Forbes 2018 apontou que o hiato doméstico afeta sobretudo os núcleos de inflação de bens e serviços e a inflação dos salários (a inflação cheia doméstica, por sua vez, depende muito mais de fatores globais). Portanto, ao atuar para suavizar os ciclos econômicos, os BCs acabam aumentando a probabilidade de lograrem êxito em cumprir seu objetivo principal, que é o de manter a inflação oscilando em torno da meta.
Do ponto de vista teórico, há uma extensa literatura recente que busca comparar os vários arcabouços de política monetária em termos de impactos sobre o bem-estar das sociedades (aqui, aqui e aqui). Grosso modo, a maioria desses trabalhos converge para o seguinte resultado: as piores regras monetárias são aquelas que olham apenas para a inflação (ou seja, BCs “inflation nutters”), já que a “divina coincidência” (inflação na meta sendo sinônimo de pleno-emprego) é apenas isso, uma coincidência. Já as melhores regras são aquelas que se aproximam do regime de metas de PIB nominal (Nominal GDP Targeting), já que este tipo de arcabouço, por construção, abre espaço para uma maior flexibilidade para lidar com choques de oferta temporários (o que eleva ainda mais o apelo para esse tipo de regra em economias emergentes). Contudo, dadas as dificuldades operacionais de se implementar o regime de NGDPT – como a divulgação apenas em frequência trimestral do PIB e as várias e relevantes revisões das séries históricas das Contas Nacionais, tanto dos preços como dos volumes -, o second best, regra de Taylor/flexible inflation targeting, acaba sendo o “vencedor”.
Por fim, é importante lembrar que todos os argumentos colocados acima, teóricos e empíricos, suportando o mandato dual, ignoram a existência de histerese econômica (aqui um survey recente sobre esse tema feito por economistas do FMI). Sob a presença desse fenômeno – isto é, o ciclo afetando a tendência -, o apelo para que os BCs suavizem os ciclos econômicos ganha outra estatura. Atuar ativamente para suavizar os ciclos não somente melhoraria o bem-estar no curto prazo, como também impulsionaria o PIB potencial e o bem-estar no médio e longo prazos, por vários canais (sobretudo por meio da acumulação de capital humano, dentre outros).
A evidência empírica recente a esse respeito é cada vez mais abundante: i) Jordá, Singh & Taylor 2020, utilizando dados de 17 países ao longo de 125 anos, atestam a não neutralidade da moeda/política monetária em prazos bem longos, reforçando o argumento da histerese econômica; ii) Maffei-Faccioli 2020 chama a atenção para a presença não somente de histerese, mas também da super-histerese econômica (em que crises muito profundas não somente geram perdas permanentes de produto no nível, mas também alteram negativamente a taxa de crescimento do potencial); e iii) Furlanetto, Robstad, Ulvedal & Lepetit 2020 apontam que “demand-driven recessions lead to a persistent decline in employment and investment but leave labour productivity largely unaffected”.
Acesse neste link um material de uma apresentação interna que realizei no IBRE em meados deste ano sobre essa discussão.
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