Modelos keynesianos finalmente se tornam keynesianos nos resultados
Novos modelos mostram que, se houver impulso fiscal e se autoridade fiscal não elevar impostos e autoridade monetária não elevar juros, dívida no longo prazo, como proporção do PIB, não se eleva. Problema é a inflação.
Os modelos monetários básicos empregados pelos bancos centrais mundo afora são chamados de modelos dinâmicos e estocásticos de equilíbrio geral, DSGE na sigla em inglês. A base teórica para a construção desses modelos são modelos de indivíduos representativos. São chamados de Representative Agency New Keynesian models (RANK), ou modelo novo keynesiano de agente representativo.
Esses modelos incorporam algumas dimensões keynesianas. Em particular, todo o lado da produção desses modelos considera empresas em competição imperfeita, em que o produtor fixa o preço a partir de um markup sobre os custos de produção. Nesta decisão, a empresa considera não somente a situação corrente, mas também a expectativa que ela tem do comportamento futuro das condições da economia.
A dimensão keynesiana desses modelos é que eles atendem ao princípio da demanda efetiva. Este princípio, enunciado na Teoria Geral de Keynes, estabelece que o valor nominal do produto em uma economia monetária é dado pelas variáveis de gastos. As decisões de consumo, pelos consumidores, de investimento dos produtores e de gasto pelo setor público determinam o valor do produto nominal. São modelos determinados pela demanda, ou demand driven models.
A forma como o produto nominal será dividido entre mais produção real ou maior inflação dependerá da situação em que a economia estiver. Se houver desemprego aberto, uma elevação do gasto gera crescimento econômico com pequeno impacto sobre os preços. Diferentemente, se a economia estiver a pleno emprego, uma elevação dos gastos quase que integralmente redunda em aumento dos preços.
No entanto, os modelos RANK apresentam uma característica que os aproximam do modelo clássico: um choque positivo de renda aumenta muito pouco o consumo. Nos modelos RANK, os indivíduos têm um tempo de vida infinito e não sofrem restrições de crédito. Nessa estrutura, variações temporárias de renda não afetam expressivamente a escolha de consumo. As pessoas consomem em função de sua renda permanente, isto é, do que receberão ao longo de toda a vida, que é muito pouco afetada por ganhos transitórios de renda. Diz-se que o efeito-renda é quase desprezível nesse tipo de estrutura.
Isso faz com que a elevação do gasto público, um dos principais mecanismos de alteração da demanda agregada – e de fazer a economia crescer ao longo de um tempo e de gerar pressão inflacionária –, seja muito fraca nesses modelos. O aumento do gasto público causa um ganho de renda, mas as pessoas poupam a maior parte desse ganho, e, portanto, o ganho de demanda, o efeito multiplicador, é muito pequeno. Adicionalmente, as pessoas nesse tipo de estrutura, por viverem infinitamente, levam em consideração que no futuro – mesmo que seja um futuro distante – terá que haver elevação de tributos para reduzir a piora da dívida, fruto do maior gasto hoje. A antecipação da elevação dos impostos reduz a renda permanente da pessoa hoje e, consequentemente, reduz o consumo. Esse resultado é conhecido por equivalência ricardiana. O impacto sobre a demanda agregada nos modelos RANK é muito pequeno. Portanto, apesar de os modelos RANK terem Keynes no nome, a dinâmica que eles geram é de praticamente a de um modelo clássico, com fixação de preços pelos produtores. Quantitativamente, os efeitos keynesianos são pequenos.
Há dez anos mais ou menos, tem se desenvolvido uma literatura de Heterogeneous Agency New Keynesian (HANK) models. Nos modelos HANK, os agentes são heterogêneos: têm diferentes idades, diferentes riquezas e morrem em diferentes momentos. Em particular, é comum nesse tipo de estrutura haver uma parcela da população que não tem acesso ao crédito – maior em países mais pobres e maior em países mais desiguais. São indivíduos que vivem da mão para a boca, como se diz. Para essas pessoas, a demanda cresce muito quando há um ganho de renda. Porém, mesmo para os indivíduos que não sofrem restrição de crédito, a parcela da renda permanente que consomem é maior do que no modelo tradicional, pois esses indivíduos morrem, e esse fato reduz o horizonte de usufruto da renda. Há outros mecanismos possíveis – como algum tipo de irracionalidade na escolha de consumo ou a existência de riscos idiossincráticos não passíveis de serem segurados pelas seguradoras – que podem gerar uma propensão ao consumo da renda corrente maior do que nos modelos RANK padrão.
Os temas não são totalmente novos. Mas recentemente a formulação teórica dos modelos gerou formas reduzidas analiticamente tratáveis – o leitor pode imaginar a complexidade de lidar teoricamente com modelos de agentes heterogêneos e conseguir uma forma reduzida agregada – e, mesmo assim, com realismo suficiente para tratar de temas de política econômica.
No fascículo de setembro da melhor revista acadêmica mundial de economia, a Econometrica, foi publicado o paper “Can deficits finance themselves?”.[1] Os autores constroem um modelo HANK e mostram que, se houver um impulso fiscal e se a autoridade fiscal não elevar os impostos e a autoridade monetária não elevar a taxa de juros, a dívida no longo prazo, como proporção da economia, não se elevará. O ganho de produto – e, com ele, o ganho de receita – e o choque inflacionário, fruto do crescimento da demanda, reduzem a dívida. Ou seja, estaríamos em uma situação em que quase vigora a moto perpétuo: o governo aumenta seu gasto e não há no longo prazo aumento da dívida pública. Neste caso, temos o autofinanciamento do título do artigo. Para termos moto perpétuo, o impulso fiscal precisaria se repetir indefinidamente, causando aceleração permanente da inflação.
Vale lembrar que há dois canais para o financiamento do setor público. O primeiro é o ganho de produto gerado pelo impulso fiscal e o consequente ganho de receita que advém de um produto maior. O segundo é a depreciação da dívida pública que se segue da elevação dos preços, fruto do choque inflacionário gerado pelo aumento de demanda. Evidentemente, esse segundo canal de financiamento do setor público não opera se a dívida pública for indexada.[2]
Como os autores explicitam, e como ocorre no modelo keynesiano básico, o efeito será mais forte quanto menor for a resposta dos produtores ao aumento da demanda na forma de elevação de preços. No frigir dos ovos, os resultados do modelo são absolutamente padrão. A novidade é que, finalmente, podemos dizer que conseguimos colocar boa parte da Teoria Geral, um livro escrito em 1936, em uma estrutura formal que gera os resultados imaginados pelo pai da macroeconomia. Se o “Keynesian” na sigla RANK era quase que um abuso de linguagem, o mesmo não ocorre nos modelos HANK.
Em um paper ainda não publicado que faz par com o artigo da Econometrica[3], os mesmos três autores investigam em mais detalhes os impactos inflacionários da política fiscal. As simulações sugerem que, para uma calibração que reproduz as condições da economia americana, o efeito financiamento por receita que segue do crescimento fruto do impulso fiscal responde por ½ do financiamento total. A outra metade vem da corrosão da dívida que se segue da elevação da inflação.
O segundo trabalho da trinca tem um bônus, que é uma discussão sofisticada trazendo uma versão moderna da teoria quantitativa da moeda (TQM). A teoria quantitativa da moeda reza que há uma relação fixa entre a quantidade de moeda e os preços. Se a quantidade de moeda dobra, os preços dobram. A versão moderna da TQM considera a moeda no interior da restrição orçamentária do setor público. Assim, passa a haver uma relação fixa entre dívida pública e gasto público. Se há uma elevação do gasto não financiada por meio de elevação – em algum momento no futuro – do superávit primário, os preços se elevam para que a dívida, como proporção da economia, não se altere. A versão moderna da TQM é chamada de Fiscal Theory of The Price Level (FTPL). A crítica a essa formulação é a mesma crítica da TQM. Ela não consegue gerar um mecanismo de como os preços se elevam. Parece que mecanicamente há uma relação entre moeda e preços, ou entre dívida e preços.
Diferentemente, a versão HANK dos modelos novos keynesianos gera efeitos inflacionários da mesma ordem de grandeza dos modelos da FTPL, mas com um mecanismo bem descrito pela dinâmica dos modelos. O velho e bom equilíbrio entre oferta e demanda agregada gera a dinâmica do crescimento econômico e da inflação.
Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de dezembro de 2024.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Escrito por George-Marios Angeleto, Chen Lian e Christian K. Wolf, na Econometrica de setembro de 2024, volume 92, fascículo 5, páginas de 1351 até 1390.
[2] Ver a discussão no paper à página 1366.
[3] De George-Marios Angeleto, Chen Lian e Christian K. Wolf, “Deficits and inflation: HANK meets FTPL”, NBER wp nº 33102, de novembro de 2024.
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