Macroeconomia

A moeda comum do Sul (Sur): Um desvio desnecessário

6 fev 2023

Precisamos de foco e eficiência no debate público, promovendo iniciativas que permitam o desenvolvimento sustentado do país. Desviar o foco para a adoção de uma moeda comum com a Argentina não parece se alinhar a esse objetivo.

Muita atenção tem sido dada, nos últimos dias, ao debate sobre a criação de uma moeda comum no Mercosul (o chamado Sur)[1]. Tal ideia ganhou tração após entrevista do ministro da Economia argentino, Sergio Massa, ao periódico inglês Financial Times[2], além de artigo publicado pelos presidentes de Brasil e Argentina, Lula da Silva e Alberto Fernández, no jornal argentino Perfil[3], no qual defenderam o início de discussões para a criação de uma moeda comum na América do Sul. A lembrança de que o ministro da Fazenda brasileiro, Fernando Haddad, e seu secretário-executivo, Gabriel Galípolo, também defenderam tal tese em 2022 (portanto, ainda antes de suas posições públicas atuais) ajudou a dar mais peso ao debate.

Em seu artigo do ano passado[4], Haddad e Galípolo sustentaram a criação de uma moeda sul-americana como forma de impulsionar a integração regional, fortalecendo a soberania monetária dos países da América do Sul ao reduzir a necessidade de acesso à moeda forte (por exemplo, o dólar americano) para operacionalizar as suas trocas financeiras e comerciais. Não era claro, em seu argumento, se a nova moeda substituiria as moedas nacionais, ou se consistiria em um instrumento paralelo para a cotação e liquidação do intercâmbio entre os países.

Massa, em sua entrevista ao Financial Times, sugeriu que os estudos em curso avaliavam a criação de uma moeda comum entre Brasil e Argentina, traçando paralelo com o Euro – ou seja, ao final seria introduzida uma divisa única entre os países, substituindo tanto o Peso Argentino como o Real. Haddad e Galípolo não rechaçavam tal entendimento em seu artigo de 2022, ao dizer que as que nações “teriam liberdade para adotá-la domesticamente ou manter suas moedas”. Estava feita a confusão.

A teoria das áreas monetárias ótimas, desenvolvida a partir do trabalho seminal de Mundell (1961)[5], estipula uma série de requisitos que, quando cumpridos, aumentam as chances de que uma moeda única possa gerar benefícios líquidos ao países que optem por abrir mão de sua independência fiduciária. De maneira geral, é necessário que os países-membros possuam: (i) forte integração comercial; (ii) forte integração bancária; (iii) diversificação das estruturas produtivas; (iv) livre mobilidade de fatores produtivos, como capital e trabalho; e (v) convergência dos ciclos econômicos, com implicações sobre as políticas monetária e fiscal. Não é difícil afirmar que Argentina e Brasil não atingem tais requisitos.

Em termos de comércio, as trocas entre Brasil e Argentina não representam uma parcela relevante do intercâmbio externo de ambos os países. Segundo dados do WITS (2020), as exportações argentinas para o Brasil responderam por 14,4% das trocas daquele país com o mundo no ano de referência, ao passo em que as exportações brasileiras para a Argentina responderam por 4,0% de nossas vendas externas. É importante notar que essas proporções têm, de fato, se reduzido com tempo: em 2010, eram de, respectivamente, 21,2% e 9,2%.

Se, no comércio, parece haver pouca substância, a situação fica ainda pior ao analisarmos os outros requisitos. A integração bancária entre os países é praticamente inexistente, com pouquíssimos bancos que atuam de forma relevante em ambos os lados da fronteira. Pode-se dizer que existe alguma diversificação produtiva, ainda que clusters sejam mais relevantes (e, nesse caso, com destaque absoluto para a cadeia automotiva), e é seguro afirmar que a competividade externa é, no mínimo, questionável. A mobilidade de fatores produtivos é limitada, o que se tipifica pela existência de estruturas aduaneiras entre ambos os países. E, por fim, os ciclos econômicos não são exatamente correlacionados, fato evidente pelas grandes divergências inflacionárias e cambiais entre ambos os países.

Diante isso, é difícil conceber um cenário no qual uma moeda única possa existir, sem gerar enormes desequilíbrios e atritos. Há um longo caminho a ser percorrido em termos de sincronização das economias, e mesmo o Euro, depois de muito anos em operação, ainda enfrenta desafios relevantes que, vez por outra, trazem de volta o debate sobre fragmentação e saída dos países periféricos do bloco monetário comum. A ideia sugerida pelo Ministro da Fazenda argentino é nada mais do que uma miragem.

Excluída a possibilidade de uma moeda comum, voltemos à outra opção para o Sur. E, de fato, Haddad e Galípolo têm ressaltado, nos últimos dias, que o propósito desse novo instrumento monetário seria apenas de fomentar as trocas comerciais e financeira bilaterais, sem a função de ser uma moeda fiduciária. A criação da moeda aumentaria os fluxos entre os dois países, e seria particularmente relevante neste momento em que a Argentina enfrenta severas restrições de acesso a dólares no mercado internacional. Nas palavras de Haddad, proferidas em Buenos Aires, a moeda comum seria um mecanismo para “incrementar o comércio porque a Argentina é um dos países que compram manufaturados do Brasil e a nossa exportação para cá está caindo”.

A princípio, a ideia parece ter mérito. Há, no entanto, diversas controvérsias e desafios, teóricos e práticos, que dificultam tanto a implementação do Sur como a aderência ao seu objetivo de maximizar o comércio bilateral.

A principal questão, em nossa opinião, está na premissa de que a fraqueza da demanda argentina por produtos brasileiros está associada à indisponibilidade de moeda forte para o pagamento das trocas comerciais. Sob este racional, desconsideram-se outros fatores (que podem ser) muito mais relevantes para explicar o deslocamento dos produtos brasileiros no mercado argentino: (i) a preferência por fornecedores com melhor custo-benefício, notadamente a China; e (ii) o longo ciclo de boom-burst em nosso vizinho do sul, que passa por longo processo de empobrecimento[6], aumento do risco soberano e incerteza nas “regras do jogo comercial” (corralitos, câmbios múltiplos, taxação das trocas transfronteiriças e diversas outras medidas ad hoc).

Note-se, ainda, que se o problema estivesse na carência de dólares, existiria a opção de operar as trocas entre os países na moeda bilateral mais forte, evidentemente o Real, fato inclusive já previsto, nas regras do Mercosul, através do Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML). Os custos transacionais seriam marcadamente reduzidos, sem conversão intermediária (ao dólar ou ao Sur), e, ao menos regionalmente, as propriedades desejáveis de uma moeda fiduciária (meio de troca, unidade de conta e reserva de valor) estariam garantidas.

É sintomático que as operações executadas pelo SML representem um percentual muito baixo das trocas comerciais feitas com os países do Mercosul, e, em específico, com a Argentina: em 2020, somente 4,2% das exportações brasileiras para a Argentina foram executadas em Reais via SML. Há evidente preferência dos países do bloco pelo uso de moeda forte nas transações comerciais, e não vemos como a criação do Sur poderia mudar isso.

A tese de Haddad e Galípolo, de que o Sur “forneceria aos países as vantagens do acesso e gestão compartilhada de uma moeda com maior liquidez” é, no mínimo, contestável. A liquidez advém não somente da oferta, mas também da demanda pela moeda. Alguém, podendo escolher entre dólares americanos e o Sur, optaria pelo segundo? Tudo leva a crer que os custos associados à criação da nova moeda superariam, por muito, os seus benefícios: sem demanda relevante pelo Sur, a hipótese de aumento dos fluxos comerciais com a Argentina cairia por terra.

Se o argumento da demanda parece fraco, a situação também é complicada se pensarmos pelo lado da oferta, ou seja, o que seria necessário para viabilizar este novo meio de troca entre Brasil e Argentina. Para além dos custos financeiros e institucionais (com legislação transnacional, negociações de arcabouço legal e constituição de câmaras de compensação bilateral), seria necessário fornecer algum tipo de lastro à nova moeda, além de se definir as cotações bilaterais (frente ao Real, ao Peso Argentino e ao dólar americano) e a sua regra de evolução no tempo (câmbio flutuante, câmbio fixo, crawling peg ou outro mecanismo qualquer de ajuste nos preços relativos nominais).

De acordo com Haddad e Galípolo, os aportes iniciais seriam realizados pelos países na proporção de suas participações no comércio regional, o que sugere um maior peso relativo do Brasil. Quais seriam os ativos utilizados: SDR´s, reservas internacionais ou fundos constituídos em moeda nacional? Estaríamos transferindo recursos brasileiros, denominados em moeda forte, para o Sur? Isso seria interessante sob a ótica brasileira, com benefícios que superem os custos e as incertezas envolvidas? É difícil dizer.

Além disso, quais seriam as regras de conversibilidade? Em evento de grandes movimentos relativos das cotações, haveria alguma regra de suavização ou compensação? Quem atuaria para defender a moeda, o Banco Central do Brasil, ou Banco de la Republica Argentina ou uma terceira instituição, ainda inexistente? Seria possível mitigar riscos de contágio cambial, seja do Sur para as moedas nacionais ou no caminho inverso? Resulta evidente que os desafios à operacionalização da moeda são tão relevantes quanto às dúvidas sobre a sua aceitação. Uma profusão de perguntas sem respostas, que demandarão discussões longas e exaustivas.

Em conclusão, ao jogar luzes sobre o Sur, desviamos dos temas que são realmente importantes para a condução da política econômica brasileira no presente momento. Precisamos de foco e eficiência no debate público, promovendo iniciativas que permitam o desenvolvimento sustentado do país. A adoção de uma moeda comum com a Argentina não parece se alinhar a esse objetivo.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 


[1] Este artigo foi originalmente publicado como Destaque BRCG. Disponível em https://brcg.com.br/destaque-brcg/

[5] A Theory of Optimum Currency Areas. The American Economic Review, Sep., 1961, Vol. 51, No. 4 (Sep., 1961), pp. 657-665. Disponível em https://www.jstor.org/stable/1812792

[6] Entre 2015 e 2020, a renda real per capita argentina caiu mais de 38%, enquanto as importações da Argentina oriundas do Brasil recuaram quase 34% nesse mesmo período (N.A.)

Comentários

Adriana Sollery
Parabéns pelo artigo.

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