A morte de Floyd, a onda de levantes populares e a busca por um diagnóstico
O mundo inteiro chocou-se com o vídeo de oito minutos no qual o policial branco Derek Chauvin pressionou com o joelho o pescoço do cidadão negro George Floyd, ambos norte-americanos, até que este último morresse, em Minneapolis, a principal cidade do estado de Minnesota. O fato, ocorrido em 25 de maio, levou a uma onda gigantesca de protestos, que se iniciaram nos Estados Unidos, mas acabaram por se estender para os mais diversos países. A grande maioria das manifestações foi pacífica, mas, como sempre ocorre em situações desse tipo, aconteceram também demonstrações, basicamente nos Estados Unidos, que degeneraram em arruaças e saques.
A onda de ativismo antirracista contagiou o mundo, levando a muitas outras ações, como a derrubada de estátuas (ou a tentativa de fazê-lo), em diversos países, de negociantes de escravos, líderes racistas ou comandantes da Confederação nos Estados Unidos, que lutou para preservar a escravidão durante a Guerra Civil.
A enorme onda global de manifestações atreladas à morte de George Floyd retomou, de certa forma, a série de protestos que sacudiu os mais diferentes países e culturas a partir de 2018. Em lugares tão diferentes como França, Equador, Líbano, Chile, Bolívia e Irã, massas de pessoas foram às ruas manifestar sua “malaise” com a situação dos seus respectivos países. O estopim variou de lugar para lugar. Paris foi a pioneira nessa fieira de movimentos populares, com os “coletes amarelos” que ocuparam os espaços públicos após o anúncio do aumento do preço dos combustíveis em novembro de 2018. No Líbano, os protestos começaram em outubro de 2019, contra a proposta de imposto em ligações feitas por aplicativos de mensagens. O fato gerador do levante popular equatoriano, em outubro de 2019, também foi de cunho econômico: corte nos subsídios aos combustíveis. No Chile, os protestos foram inicialmente uma reação à elevação do preço das passagens do metrô de Santiago, também em outubro do ano passado.
A escala e a difusão global dessas manifestações foi uma surpresa geral e colocou na ordem do dia a busca por explicações convincentes – o que se reforça agora com a onda mundial de protestos contra o racismo. Não à toa, desde 2018, muitos artigos, seminários e entrevistas têm tentado dar conta do fenômeno, que também ocupou grande espaço nas mídias sociais. Afinal, o receio da deflagração de novas insurgências é grande. Nenhum governante gosta de encarar um levante popular, como os que ocorrem desde 2018, em seu próprio país.
O caso chileno, a partir do final do ano passado, foi emblemático. Poucos dias antes da eclosão dos protestos, o presidente Sebastian Piñera se vangloriava em alto e bom som de que o Chile poderia ser considerado um oásis de desenvolvimento na América Latina. A verdade é que não há ainda a compreensão do que está por detrás desses movimentos populares, para além dos estopins imediatos. Não é surpreendente que novas ondas de protesto continuem ocorrendo, como a motivada pela morte de George Floyd. A falta de bons diagnósticos impede que se antecipe uma próxima manifestação. É necessário entender o que vem aumentando a temperatura social. Na busca de tais explicações, esta Carta traz reflexões sobre o que poderia estar fomentando tantas e tão diversas mobilizações populares.
Para começar, em uma análise impressionista, os protestos de rua poderiam ser classificados como simples manifestações espontâneas de pessoas que querem, junto com seus pares, extravasar emoções e demonstrar suas inquietudes. Há que se destacar o papel desempenhado pelas redes sociais como mecanismo agregador e, por isso, facilitador para as mobilizações urbanas. Na verdade, nunca foi tão fácil reunir um contingente tão expressivo de pessoas. Basta acionar alguns poucos grupos de WhatsApp que rapidamente a convocação se dissemina.
No entanto, embora plausível, essa visão lúdica não é admissível. Não dá para aceitar que movimentos com tanta gente envolvida, com tantas e tão pesadas consequências para a vida social das cidades e dos países onde ocorrem, tenham motivações tão banais. Afinal, há muito em jogo. As insurgências perturbam a ordem pública, ameaçam o direito de propriedade, e, no período mais conturbado, promovem o caos na cidade. Além de deixar em xeque as principais lideranças políticas – salta aos olhos a perda de popularidade dos governantes dos países que passaram por sublevações. Nesse quadro, há de se construir uma narrativa racional, que soe sensata, verossímil, e que permita entender, de forma clara, as motivações para a ocupação dos espaços públicos para protestos dessa natureza.
Ao se levantar possíveis explicações para tantos levantes populares, nada mais natural do que começar com o suspeito número um, o mau desempenho da economia. Afinal, após a queda do muro de Berlim, em 1989, e a consequente derrota do modelo comunista, o capitalismo passou a reinar absoluto. Não por acaso, a afirmação “É a economia, estúpido!” proferida por James Carville, estrategista de Bill Clinton, em 1992, tornou-se uma máxima repetida em campanhas presidenciais mundo afora. Assim, quando se trata de mobilizações de massa, o desempenho econômico é sempre a primeira possível causa a ser investigada.
Na verdade, quando se consegue construir uma narrativa, bem fundamentada em dados, que ratifique o entendimento de que o desempenho econômico desapontador explica a eclosão de protestos populares, o espírito da comunidade dos analistas se pacifica. Tudo passa a caber no script. “É a economia, estúpido!” vem à baila, vira mantra, e todos ficam felizes ao repetir à exaustão o bordão. Torna-se um discurso irrefutável, quase “científico”. E a fórmula para recolocar os países nos trilhos já é bem conhecida: ajuste nas contas públicas, metas de inflação, abertura da economia, programas de distribuição de renda bem focalizados.
Ao se averiguar o caso Floyd, muitos analistas não descartam as consequências econômicas da pandemia como um importante fator na mobilização da população. No entanto, para desespero das almas aflitas, ao se analisar o caso chileno, por exemplo, não fica claro que a economia seja a principal responsável pela revolta popular. É verdade que, no triênio de 2017 a 2019, a economia do Chile cresceu em média 2,1%, ritmo modesto comparado ao seu desempenho nas últimas décadas. Mas aquele foi um período de crise para os países da América Latina e Caribe, que, em conjunto, tiveram expansão média anual de apenas 0,8%. Ainda que a população chilena compare os avanços do país em relação ao seu próprio passado, e não ao conjunto dos países pares, um crescimento de 2% ao ano numa quadra global de dificuldades generalizadas não chega a se constituir numa razão crível para uma explosão de protestos tão extrema quanto a ocorrida no país em 2019.
Assim, o primeiro suspeito é descartado: as mobilizações no Chile provavelmente não tiveram origem em causas puramente econômicas. Há, portanto, que se apontar outros fatores que poderiam levar a população às ruas para protestar. Não há como negar, a tarefa agora ficou mais difícil. Sem ser assentada na economia, uma narrativa única para justificar a insatisfação popular é mais difícil de ser formulada. Algo próximo ao consenso fica muito distante. Ainda assim, mesmo sem unanimidade no discurso, algumas hipóteses podem ser levantadas para justificar os levantes populares.
Deixando para trás a performance da economia, existem pelo menos três linhas de motivações para as insurreições urbanas que serão a partir daqui elaboradas: distributiva; desconexão cognitiva; e acolhimento social.
Na narrativa distributivista, a busca é por desenvolver um enredo cuja essência é o mal-estar ligado às condições de vida de parte expressiva da sociedade em foco. Há o chamado “efeito túnel”, descrito por Albert Hisrchman – duas filas de automóveis engarrafadas dentro de um túnel. Os carros parados. De repente, uma delas começa a andar. No primeiro momento, os motoristas da outra ficam satisfeitos, pois é sinal de que em breve também estarão em movimento. A confusão se estabelece quando os condutores que ainda estão imóveis se dão conta de que não vão sair do lugar tão cedo. A frustração leva à inquietação e a ações motivadas pela impaciência, como a troca de pistas, que tumultua o trânsito. A comparação com a economia é direta. Quando esta começa a andar, os mais abastados são contemplados com os frutos e os demais esperam ansiosos a sua vez. Passado um tempo, nada muda, é hora da ação. A insurgência se torna uma opção.
A segunda linha de explicação é a falta de entendimento da agenda social. É natural que, quando um país começa a experimentar melhora em sua economia, os diversos membros da sociedade esperem boas novas. Aguardam por políticas públicas que venham ao encontro de suas expectativas. Afinal, as aspirações são sempre crescentes. É parte da natureza humana. Muitas vezes, a classe política não consegue detectar e decifrar os anseios de determinados grupos sociais. Nessa linha, acaba escolhendo programas inadequados para grupos específicos. O que, naturalmente, deixa os indivíduos de tais coletivos frustrados, insatisfeitos. Como bem lembrou a cientista política chilena Marta Lagos no final do ano passado: “(...) essa crise implica medidas políticas e sociais. As ruas pedem uma coisa, o presidente escuta outra”.
Outro flanco, finalmente, é o do acolhimento social. Existe nas sociedades humanas a expectativa de que todos estejam no mesmo barco. Assim, quando um determinado programa de governo abarca toda a população, há percepção de unidade e a sensação de abandono é mitigada. Sem buscar uma análise profunda das vantagens e desvantagens da visão universalista da seguridade social, o que vale destacar é que programas de saúde pública, educação pública e de previdência social cumprem aquele papel. Essas são, no entanto, justamente as rubricas mais caras do ponto de vista fiscal, o que faz com que o Estado liberal moderno busque “focalizar” a sua atuação, com programas desenhados para grupos específicos. Esse tipo de iniciativa, porém, mesmo que possa suprir a carência objetiva de cada segmento, não cria o sentimento de grande comunidade nacional que aplaca a sensação de isolamento e de atomização que atormenta o cidadão contemporâneo.
Como já mencionado, esta Carta está longe de tentar explicar de forma mais completa a irrupção de manifestações populares tão intensas e amplas em tantos lugares diferentes. O que se buscou aqui foi apontar algumas possíveis linhas de reflexão, que possam ajudar na busca de um diagnóstico mais geral. De qualquer forma, a onda de protestos após a trágica morte de George Floyd, em plena pandemia e com quarentenas vigorando em boa parte do mundo, indica que a inquietação que veio à tona nos últimos anos está longe de se esgotar. Apesar da importância fundamental do combate ao racismo no mundo contemporâneo, não nos parece que a turbulência do momento se resuma ao seu motivo precípuo, como indica o fato de que venha na esteira de outros protestos em outros países, por motivos bastante variados. Queixas, carências, injustiças, indignidades e motivos de insatisfação em geral nunca faltaram em nenhuma fase da história humana. Em algumas épocas, contudo, esse inconformismo tende a transbordar na forma de protestos, revoltas e movimentos de massa, como na atual quadra da história. Líderes e países que não se esforçarem para entender a motivação que leva seus cidadãos a saírem às ruas, e para dar respostas adequadas a essas manifestações, provavelmente terão muita dificuldade para navegar nas águas turbulentas deste momento histórico.
Esta é a Carta do Ibre de julho de 2020, publicada na revista Conjuntura Econômica do mesmo mês.
O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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