Tributos

Neutralidade e não-cumulatividade do IVA (IBS/CBS)

21 jul 2023

Imposto neutro não altera decisões de agentes econômicos. Neutralidade do IVA está no tratamento igual de todas formas de consumo. Afeta preços absolutos, mas com menor impacto sobre preços relativos que qualquer outro imposto.

Um imposto é dito neutro quando ele não altera decisões dos agentes econômicos. As famílias não mudam, em razão do imposto, nem a composição nem as quantidades de bens e serviços que adquirem. A existência do imposto neutro não leva as empresas a mudarem os métodos de produção ou comercialização, nem a decisão de comprar localmente ou importar, nem a escolha entre produzir ou terceirizar, nem as decisões sobre o uso de mão de obra. O imposto neutro gera receita sem distorcer as decisões econômicas.

É claro que não existe imposto totalmente neutro. Nem por isso a neutralidade tributária deixa de ser importante. O que devemos perguntar não é se um imposto é distorcivo, mas quão distorcivo é ele em comparação com impostos alternativos. As distorções econômicas induzidas por políticas públicas, especialmente as tributárias, causam grande perda social. Por exemplo, tributos que são incorporados nos custos tornam o produto nacional mais oneroso em relação ao de outros países, o que resulta em perda de competitividade e menos produção, renda e emprego no país.

O IVA foi criado com o propósito de propiciar receita tributária com o mínimo de impacto na economia. Não tem propósito redistributivo. Não serve para atingir objetivos parafiscais. Não interfere nos fluxos do comércio exterior. Não é bom para incentivar este ou aquele setor da economia, esta ou aquela região. Um aumento da alíquota única de um IVA amplo tende a aumentar todos os preços na mesma proporção, da mesma forma que a maré dos oceanos levanta igualmente todos os navios. Da mesma maneira, uma redução da alíquota do IVA busca reduzir todos os preços na mesma proporção. Dito de outra forma, o IVA altera os níveis absolutos dos preços sem alterar os preços relativos. Nisto reside sua neutralidade.

Não há maior inimigo da neutralidade que os impostos cumulativos, que incidem em cascata, e se incorporam ao custo de produção ou revenda, em cada etapa da cadeia de produção e distribuição. Para lidar com esse problema, tão danoso à economia como um todo e à exportação em particular, foi inventado o imposto ao valor agregado (IVA).

Como o nome diz, o IVA tributa, em cada empresa, o montante por ela agregado. Por exemplo, se a empresa compra de outras empresas insumos no valor de 100 e produz algum bem ou serviço que vende por 220, o imposto incide sobre os 120 adicionados ou agregados. Esses 120 correspondem a pagamentos a fatores de produção, tais como salários, juros, aluguéis, lucros (ver quadro).

Criação de Valor Adicionado - Exemplo

Pagamentos a fornecedores

   

   Aquisição de insumos (compras)

100

Pagamentos a fatores de produção

 

   Salário de empregados

 

50

   Juros, aluguéis

   

30

   Lucros (resíduo)

   

40

   Soma = valor agregado = base IVA

 

120

         

Receita de vendas (faturamento)

220

 

 

 

 

 

Para assegurar neutralidade é preciso que a base do IVA seja, no exemplo, 120 e não mais nem menos que 120. O cálculo do IVA pode ser feito de duas maneiras. Pelo método de adição somam-se, nos registros contábeis do contribuinte, os pagamentos a fatores (salários, lucros etc.), e sobre ele aplica-se a alíquota, digamos 10%. Então, no exemplo, o imposto é 10% de 120, portanto 12 (ver quadro a seguir).

Apuração de IVA por Adição - Exemplo

Pagamento de salário de empregados

50

Despesas de juros e aluguéis

30

Lucros (resíduo)

40

Soma = valor agregado

120

 

O método de adição é pouco transparente para o consumidor (o tributo fica oculto no preço)  e de difícil controle pelo fisco, por isso é pouco utilizado. Além disso, só funciona bem se a alíquota for única. Com alíquotas múltiplas apresenta distorções. Por exemplo, o PIS/Cofins de 3,65% cobrado por empresa do regime cumulativo gera crédito de 9,25% se a empresa adquirente estiver no regime não cumulativo.

O que praticamente todos os países adotam é o método de subtração, ou método de crédito, ou ainda método de fatura, pelo qual o IVA é cobrado sobre o valor das saídas. Por este método, nas vendas de uma empresa a outra a adquirente credita-se do imposto pago na compra. No exemplo, se a alíquota do IVA for 10%, nossa empresa paga, na compra, 110, dos quais 100 é o preço do bem ou serviço sem imposto e 10 é o IVA cobrado pela empresa vendedora (ver quadro a seguir).

Apuração de IVA por Subtração - Exemplo

 

Valor

IVA Débito

IVA Crédito

Recebimento de clientes (vendas)

220

22

 

Pagamentos a fornecedores (compras)

100

 

10

Diferença = valor agregado

120

   

IVA devido (débito menos crédito)

 

12

 

Para a empresa adquirente, o imposto pago à vendedora (10) é IVA crédito, pois será recuperado. Na ocasião da saída (provisão de bem ou prestação de serviço), a empresa cobra 242 do cliente, sendo 220 pela mercadoria ou serviço e 22 de IVA. A empresa recolhe então ao fisco o valor de 22 (de IVA débito) menos os 10 que tem de IVA crédito; paga, portanto, o líquido de 12. Em princípio o resultado é o mesmo em qualquer dos dois métodos.

No modelo teórico descrito acima, o IVA é tão neutro para a empresa que nem IVA débito nem IVA crédito transitam por contas de resultado (receitas e despesas), apenas por conta IVA de natureza patrimonial (ativa ou passiva). Seja curta ou longa a cadeia produtiva ou de distribuição, o consumidor pagará, no exemplo, 10% de IVA sobre a mercadoria ou o serviço consumido. Se a tributação se aplicar a todos os bens e serviços adquiridos, o imposto não afetará a decisão de consumir esse ou aquele bem ou serviço. Será neutro também para o consumidor.

Superioridade do IVA sobre impostos parciais

Como visto no exemplo acima, a base do IVA calculada pelo método da subtração como vendas menos compras equivale à tributação de todas as rendas pagas aos fatores. Essas rendas serão, por sua vez, possível base de tributação pelo imposto de renda. Para o IVA não importa se o valor consiste principalmente de salários, de lucros ou de outros pagamentos. Os valores dos materiais usados desaparecem no mecanismo do crédito, mas remanescem nos seus componentes de renda.

O imposto de renda da pessoa jurídica (IRPJ) tributa os lucros, dando incentivo a que empresas a substituírem capital próprio por capital de terceiros (empréstimos) que rendem juros e reduzem a base do tributo. Esse incentivo não existe no IVA, onde juros e lucros são tratados da mesma maneira.

Contribuições sobre a folha salarial desincentivam o uso do trabalho em favor de técnicas mais intensivas em capital, como a robotização. O IVA está livre desse tratamento discriminatório contra o trabalho.

IVA e impostos seletivos

A tributação seletiva tem longa história. Nos anos 50, uma missão da ONU contou mais de 500 impostos na Bolívia, muitos deles seletivos. O Brasil já teve impostos sobre o tabaco, a aguardente, o açúcar, o couro e tantos outros produtos. O Imposto de Consumo, precursor do IPI,  tinha tantas alíquotas que a classificação era reunida em um livro e para entendê-la havia até uma ciência, a Merceologia. Era tal o prestígio da tributação seletiva que se chegou a ver a seletividade na tributação de bens como equivalente da progressividade no imposto de renda. Até a Constituição de 1988 está contaminada por essa ideia antiquada.

Seguindo uma tendência mundial, no Brasil os impostos seletivos têm sido substituídos por impostos cada vez mais gerais ao consumo, como o Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC) e depois o ICM e o PIS/Cofins não-cumulativos. É verdade que ainda não temos um IVA digno desse nome, mas os esforços atuais de reforma nos colocam na direção correta.

Que papel restou para os impostos seletivos? O de corrigir externalidades negativas de produção ou consumo. Externalidades negativas surgem quando os custos privados da atividade são inferiores ao seu custo social, ou seja, existem custos que são ignorados no cálculo privado. Para lidar com a distorção, Pigou e outros propuseram impostos corretivos.

Na prática, os impostos seletivos aplicam-se de forma monofásica à produção de derivados do fumo, bebidas alcoólicas e combustíveis fósseis. Há ainda propostas para aplicação de seletivos (excises, em inglês; acisas, em português) a bebidas açucaradas, a produtos elaborados com gordura trans, a alimentos ultraprocessados, ao bronzeamento artificial  e a muitos outros itens de consumo. Tais propostas não têm progredido por falta de evidência de causa e efeito, pela deficiência de critérios de aplicação e por uma certa reação ao excesso de regulação pelo governo.

Ao contrário do IVA, que busca neutralidade, o imposto seletivo pretende desestimular a atividade através do aumento do seu preço. Informado por forte elemento de subjetividade, ele se propõe a mudar os preços em seus valores absolutos e relativos, tornando mais caros os produtos a que se aplica. Se se quer tornar um produto mais caro, impõe-se um imposto seletivo de 10% sobre sua produção ou importação, antes de aplicar o IVA.

É difícil estabelecer critérios puramente objetivos no desenho de impostos seletivos, e sobretudo na delimitação da incidência em casos concretos. Esse tipo de tributo está sempre eivado de subjetividade, que resultam em dificuldades práticas na aplicação. Por esta razão são cada vez mais numerosas as vozes que se opõem à adoção de qualquer imposto seletivo.

IVA e Incentivos Fiscais

A primeira consequência do princípio da neutralidade é que não faz sentido aplicar incentivos fiscais no IVA. Se for reduzida a alíquota para determinada empresa ou setor no meio da cadeia, o mecanismo de crédito fará com que o benefício não altere o preço para o consumidor. No exemplo, se a compra fosse isenta de IVA, o IVA crédito seria zero, mas o IVA débito continuaria sendo 22 e a firma que vende ao consumidor reteria 22 deste e recolheria os mesmos 22.

Se for concedida dispensa de recolhimento parcial do IVA devido, isso será equivalente a uma subvenção, que pode ser dada com IVA ou sem IVA, mera renúncia de receita pública, equivalente a mandar um cheque para a empresa beneficiada.

A empresa obrigada a recolher o IVA tem a responsabilidade de cobrá-lo do seu cliente, deduzir os créditos por IVA por ela pago e entregar o saldo ao fisco. Como é o cliente que paga (nas operações B2B como antecipação, nas operações B2C como pagamento final), não há, em princípio, ônus para o contribuinte legal. Este comporta-se de maneira semelhante ao de agente retentor de imposto de renda, com a possível diferença de que a retenção de IR se dá no momento da realização, configurando crime de apropriação indébita o não recolhimento ao fisco.

A redução de alíquota nas vendas ao consumidor não é considerada incentivo fiscal. Buscam antes reduzir o ônus tributário do consumidor de baixa renda. Estudos têm mostrado a ineficiência do mecanismo, seja porque o vendedor pode aproveitar a redução de imposto para aumentar sua margem bruta ao invés de repassar o benefício para o consumidor, seja porque o benefício se estende às pessoas de alta renda, seja ainda porque há formas evasivas que se aproveitam da multiplicidade de alíquotas. Por estas razões IVAs modernos tendem a ter alíquota uniforme e a mitigação do ônus sobre os pobres ser feita através de transferências financeiras bem focadas nas famílias de menor renda.

Cumulatividade tributária no Brasil

Comparados com o IVA, os impostos brasileiros sobre bens e serviços estão longe de ser neutros. A não neutralidade decorre de vários fatores, entre eles o não creditamento do imposto pago na compra, a demora na devolução de créditos acumulados, a concessão de créditos fictos, várias formas de incentivos fiscais, a tributação de bens de capital, o uso e abuso da substituição tributária, a inclusão na base de cálculo de tributos paralelos (tributação imposto-sobre-imposto).

A não-neutralidade reduz a competitividade dos bens e serviços produzidos no Brasil. Nossos preços de exportação ficam prenhes de tributos, o que dificulta acessar as cadeias globais de criação de valor. Os preços de importação (sem impostos no exterior) ficam menores que os preços internos (que carregam resíduos tributários), tornando os produtos nacionais menos competitivos dentro do território brasileiro!

Creditamento incompleto

O grande impedimento da neutralidade é a limitação ao creditamento. Infelizmente o ICM (precursor do ICMS) e o IPI foram criados sob o critério fiscalista de que só geravam crédito os materiais incorporados fisicamente ao processo de produção – o chamado crédito físico. Ao contrário do que dizem alguns, o ICM não era o estado da arte do IVA, eis que já nasceu obsoleto. Baseou-se em modelo que já havia sido abandonado pela França. Ainda hoje, a eletricidade usada para mover a linha de montagem gera crédito de ICMS, mas não a eletricidade usada para iluminar o escritório. Essa dualidade de tratamento, de todo irrazoável, é responsável por muito do elevadíssimo contencioso tributário de IPI, ICMS, PIS e Cofins. Um critério de creditamento de todo o IVA pago nas aquisições eliminaria o problema pela raiz.

As atuais propostas de adoção do IVA têm alargado o critério de creditamento a todas as operações de aquisição, mas excluído o IVA pago na aquisição de bens usados para uso ou consumo pessoal, p.ex. dos diretores. Embora a preocupação com essa forma de evasão seja legítima, a exceção arrisca reabrir os conflitos interpretativos e gerar novos litígios. Melhor seria aceitar como IVA (crédito) todo o IVA pago pelo contribuinte no mercado interno ou na importação e sujeitar ao IVA (débito) o valor de mercado de bens/serviços cedidos/prestados gratuitamente ou com preço simbólico. Até porque o método de excluir o crédito só é prático na aquisição de bens acabados, não se aplicando a bens manufaturados pela empresa e cedidos graciosamente a sócios, diretores e outras pessoas ligadas.

Deve ser notado que o critério de crédito não pode ser aplicado irrestritamente. Só deve existir crédito se existir débito (ainda que, em alguns casos, de valor inferior); deve existir um nexo entre os dois. A única exceção é (ou deveria ser) o caso de exportação para o exterior, em que, para livrar completamente de tributo o produto exportado, admite-se o crédito dissociado de débito, dessa forma eliminando toda a tributação ocorrida ao longo da cadeia interna e nos casos de reexportação. A PEC (art. 156-A, §6º) afasta o creditamento nos casos de isenção e imunidade. A constituição atual (art. 155, $2º, II), tratando de ICMS, veda o crédito nos casos de isenção e não-incidência. Aparentemente há necessidade de alguma uniformização no tratamento de operações que escapam ao IVA.

Corolário dessa dependência do crédito em relação ao débito é que, se nem todos os  bens e serviços produzidos/prestados pela firma forem sujeitos a tributação pelo IVA, para determinação do montante líquido de IVA a ser recolhido será necessário um período de apuração, geralmente mensal. A determinação exata do IVA crédito requereria sistema sofisticado de contabilidade de custos. Para não impor tal ônus às empresas, as leis de IVA geralmente oferecem a opção de determinar o IVA crédito mensal multiplicando a soma do IVA cobrado por provedores, no período, pela proporção que as saídas tributadas representarem no valor total das saídas.

Créditos acumulados

Outra fonte de não-neutralidade do IVA é a demora na devolução de créditos de IVA que algumas empresas acumulam. Isso ocorre rotineiramente com empresas predominantemente exportadoras por pagarem IVA nas compras internas enquanto suas vendas externas estão livres de IVA. Geram, portanto, saldos credores de IVA, que devem ser devolvidos dentro de poucos dias ou semanas pela administração tributária. A não devolução, bem como a devolução demorada, impõem custos financeiros às empresas, que veem seus custos aumentados, resultando em perda de competitividade.

Alguns países com administrações tributárias frágeis e incapazes de restituir prontamente os créditos têm dispensado de IVA as compras feitas, no mercado interno ou externo, por exportadores, regime esse algumas vezes chamados de “suspensão”. Tais regimes especiais abrem a porta para vários abusos no meio da cadeia e tornam ainda mais difícil a gestão tributária.

Vendas pelo exportador habitual no mercado interno, sujeitas a IVA, facilitam, hoje em dia, aproveitar os créditos na exportação. Isto pode ser outro fator de distorção econômica: para não incorrer créditos líquidos difíceis de receber, a empresa pode ser levada a limitar suas exportações a certa proporção das vendas internas.

Créditos de IVA também se acumulam na fase pré-operacional da empresa, em que ela realiza compras, mas não efetua vendas; nas situações de reequipamento, em que a empresa adquire bens de capital de valores elevados; e até na fase operacional, nos meses em que a empresa, para aproveitar oportunidades de mercado, adquire bens e insumos em valores superiores às vendas.

Em todos esses casos, o valor líquido de IVA apurado deve ser devolvido sem demora. Do contrário, a empresa estaria financiando disfarçadamente o governo. Esse financiamento, se não compensado por juros de mercado na devolução dos créditos acumulados, impactará sem dúvida os custos, reflexo da ineficiência que impõe à economia.

É fato reconhecido que a devolução de créditos acumulados é o calcanhar de Aquiles do IVA. Técnicas de análise de risco e auditorias eletrônicas sistemáticas, complementadas por auditorias físicas no campo em situações mais desafiadoras, são práticas usuais das administrações do IVA. Esses cuidados são tomados para permitir a devolução rápida do IVA aos contribuintes de boa-fé que acumulam créditos.

Alguns conjeturam que a pronta devolução dos créditos enseja fraudes contra o fisco e que uma fiscalização seria necessária antes da devolução. O argumento não procede. Primeiro, porque nenhuma administração tributária terá capacidade para realizar uma auditoria de todos os pedidos de devolução. Segundo, mesmo que tenha tal capacidade, estaria utilizando mal seus recursos de auditoria. O que precisa haver é auditoria baseada em critérios de risco para separar o joio do trigo. Ajuda também se a lei e a prática assegurarem célere punição dos abusos sem molestar os bons cumpridores. Muitos países conseguiram encurtar, gradativamente e com base em programa anual, os prazos médios de devolução dos saldos de IVA a contribuintes que não apresentam indícios de fraude.

A devolução rápida de créditos líquidos do IVA ensejou na Europa, por anos, a fraude conhecida como “carrossel”, em que firmas inidôneas importavam mercadorias de pequena dimensão e alto valor, como telefones celulares, e antes de pagar o IVA vendiam as mercadorias para empresas legítimas, que utilizavam o crédito. Antes da data de vencimento, a firma vendedora desaparecia sem pagar o imposto. Esse problema foi resolvido com a lei do IVA introduzindo o sistema de “reverse charge” que dá ao fisco o poder de, em operações que considere de risco, passar ao comprador confiável a responsabilidade pelo imposto incidente na compra.

Incidência de impostos sobre impostos

Do ponto de vista econômico, e relevados os custos não tributários de administração e cumprimento, a bitributação, entendida como a incidência de mais de um imposto sobre o mesmo fato, não é problema. Um imposto de 2% mais um imposto, em paralelo, de 3% equivale a um imposto de 5% sobre a base comum. A recente proposta de IVA Dual enseja dois tributos, um federal e outro subnacional, de mesma base e alíquotas superpostas. A alíquota que o consumidor levará em conta será a soma das várias alíquotas dos tributos paralelos.

Indesejável é a situação em que os tributos se aplicam sobre si mesmo ou sobre outros tributos paralelos. Por exemplo, um ICMS de 18% é aplicado sobre o valor da mercadoria acrescido do valor do próprio imposto, constituindo na verdade um imposto de 21,95%. Como nas vendas ao consumidor não se indica o valor do imposto é razoável supor que o artifício de cobrar o imposto “por dentro”, como neste exemplo, tem o propósito de esconder do consumidor o peso do imposto. Não apenas o ICMS, mas também PIS e Cofins são calculados “por dentro”, método difícil de encontrar em outras nações.

Em contas de eletricidade e telecomunicações o consumidor pode ver que sobre o consumo incidem ICMS, PIS e Cofins. Eles incidem não apenas sobre o valor do consumo, mas também sobre os outros tributos. Assim, a Cofins é calculada sobre o consumo mais o ICMS mais o PIS mais a própria Cofins. O mesmo método é empregado no cálculo do ICMS e do PIS. No conjunto, esse cálculo de imposto sobre imposto catapulta a alíquota efetiva global a níveis muito altos. Essa incidência cumulativa não deveria existir, deveria ser eliminada. Isso pode ser feito unificando os tributos ou retirando de suas bases os vários tributos paralelos.

Este raciocínio não se aplica a impostos de natureza distinta entre si, que são aplicados em sequência. Por exemplo, sobre um produto importado aplica-se a alíquota do Imposto de Importação (II). Este imposto tem a finalidade de “proteger” a indústria nacional, tornando mais gravoso o produto importado. Digamos que o II tenha alíquota de 10%. Então, um produto cujo valor aduaneiro (CIF), incluindo as despesas alfandegárias, seja de 100, paga II de 10, com o que seu preço de entrada se eleva a 110. O propósito dessa tributação será reequilibrar a relação de custos entre produto nacional e importado.

O segundo aspecto a considerar é se existe ou não imposto seletivo (IS) sobre o bem importado. Caso não exista, esta etapa é nula. Caso o produto esteja sujeito a imposto seletivo, p.ex. de 10%, o importador pagará  adicionalmente, no exemplo, 11 de IS, elevando o custo total a 121. O propósito dessa tributação será aumentar o preço relativo do bem tributado seletivamente para desestimular seu emprego ou consumo. A inclusão do II na base do IS visa não diluir a proteção assegurada pelo II. Para manter a estrutura de preços relativos pré-IVA, a base sobre a qual se aplicará o IVA inclui o seletivo. Se não fosse assim, o preço relativo do bem sujeito a imposto seletivo se alteraria após aplicado o IVA.

O terceiro estágio da aplicação de impostos consecutivos será a aplicação do tributo geral sobre o consumo, por exemplo um IVA. O IVA se propõe a não alterar a estrutura de preços relativos existente antes de sua aplicação. Portanto, ele tomará como base o valor de 121 (no caso de o bem ser sujeito a IS) ou 110 (se não o for) e aplicará sua alíquota para determinar o montante do imposto, o qual poderá ser definitivo, no caso de destinação a consumidor, ou constituir crédito do destinatário produtor ou comerciante contribuinte de IVA. A inclusão do II e do IS na base do IVA visa não diluir nem a proteção assegurada pelo II nem o efeito punitivo do IS.

Compras governamentais e de entidades imunes

Em princípio, não há razão para não aplicar o IVA aos suprimentos de bens e serviços feitos por agentes econômicos aos governos. A tributação uniforme de governo e setor privado assegura que o consumo das entidades públicas seja avaliado aos mesmos preços do consumo privado, refletindo a escassez relativa dos bens e serviços. De fato, as compras feitas pelos governos são tipicamente sujeitas a IVA.

Essa configuração não é livre de dificuldades. Alguns países tiveram problemas com certos fornecedores que cobram o IVA nas vendas que fazem ao governo, mas que deixam de recolher esse IVA... que lhes pagou, junto com o preço, esse mesmo governo! Para lidar com esse problema certos países (p.ex. Argentina) criaram uma retenção de IVA nos pagamentos que governos fazem aos seus fornecedores. A retenção, em porcentagem do valor da operação, tem caráter assecuratório e é creditada à conta de apuração do IVA devido pelo provedor.

Outra possibilidade seria isentar de IVA as vendas ao governo. Essa isenção teria, no entanto, dois inconvenientes. De um lado, interferiria com a recuperação dos créditos de IVA que o fornecedor acumulou nas suas aquisições, já que o creditamento normalmente não tem lugar nas vendas isentas. De outro, abre espaço para uma forma de fraude ao IVA consistente em mascarar operações tributadas como se fossem vendas a entidades imunes ou isentas.

Apesar das dificuldades apontadas, a tributação de compras governamentais pelo IVA funciona melhor em  países de estrutura política unitária, que formam a maioria das nações. No caso de federações, em que há mais de um nível de governo com poder tributante, surgem dificuldades maiores. No caso do Brasil, a constituição estabelece imunidade tributária (nome que damos à isenção que conste da constituição) recíproca entre os entes federativos. Isto significa que um ente (União, estado, Distrito Federal, município) não pode aplicar tributo a outro ente.

Às vezes a imunidade tributária é frustrada pelas esquisitices da nossa estrutura tributária. No caso do ICMS, ele não pode ser cobrado de entidade imune, mas é cobrado do fornecedor, não beneficiário da imunidade, que a lei define como contribuinte do imposto. Então o ICMS acaba sendo embutido no preço e, senão de direito, mas de fato, sendo cobrado da entidade imune.

O projeto de IVA em tramitação (PEC 45, que cria IBS, CBS e IS e elimina, ainda que muito lentamente, ISS, ICMS, IPI, PIS e Cofins) deixa a critério do legislador complementar definir o regime tributário de vendas ao governo: (i) não incidência, com manutenção dos créditos, ou (ii) destinação do IBS e ao CBS exclusivamente ao ente adquirente.

A hipótese (i) criaria grande dificuldade administrativa, pelo grande número de restituições de tributos que seriam necessários. Problema tornado ainda mais grave devido a que os postulantes a restituições seriam predominantemente pequenos comerciantes, já que há uma política de incentivar a aquisição, pelos governos, de bens e serviços providos por pequenas empresas. A fiscalização desses pequenos negócios é onerosa e de baixo retorno.

Para complicar mais, a PEC 45, de forma temerária, estabelece (novo §2º ao art. 146, II) creditamento do imposto pago no regime do Simples Nacional. Não se questiona a lógica desse crédito, mas o risco de abusos que abre num IVA de alíquota relativamente elevada. Emitir fatura (ou nota fiscal, como dizemos) é operação muito séria. Por ensejar crédito tributário ao comprador, o imposto lançado na fatura equivale a um cheque emitido contra o tesouro do governo tributante; precisa revestir-se de rigorosas formalidades de controle. Crédito devia ser assegurado a faturas emitidas por firmas integrantes do Simples Nacional apenas se e quando suas faturas estivessem totalmente integradas no sistema eletrônico nacional de faturas/notas fiscais.

Nunca é demais lembrar que, no IVA, a dimensão administrativa é importantíssima. Afinal de contas, o IVA foi criado com dois objetivos: (1) assegurar a neutralidade, ou seja, eliminar a tributação cumulativa para tornar competitiva a produção nacional; e (2) dar segurança à administração do tributo.

Não fosse por (2), não precisaríamos de IVA: bastaria não tributar qualquer operação B2B e aplicar a alíquota desejada apenas nas operações B2C, ou seja, utilizar um imposto de vendas a varejo (IVV). É que cedo descobriu-se a capacidade de autocontrole do IVA: o comprador exige que seu fornecedor emita fatura, sem a qual não pode creditar-se.

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O IVA permite tratar igualmente todas as formas de consumo. Nisto reside sua neutralidade. Afeta os preços absolutos dos bens, mas com menor impacto sobre os preços relativos que qualquer outro imposto. O creditamento sem restrição torna indiferente para a empresa produzir componentes internamente ou comprar de terceiros. A carga do IVA será a mesma qualquer que seja a composição dos fatores produtivos e qualquer que seja a extensão da cadeia produtiva e de comercialização. O efeito do IVA se espalha uniformemente em todas as direções para não interferir nas decisões econômicas tais como as de o que, quando e onde produzir e consumir, vender localmente ou exportar, arrendar ou adquirir.

A simplicidade e generalidade do IVA facilita o controle pelas administrações tributárias e reduz a evasão, ao mesmo tempo em que reduz os custos de cumprimento. Esses ganhos de gestão permitem que a mesma arrecadação seja alcançada com alíquota menor, o que beneficia a todos.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Comentários

antonio queiroz
Excelente artigo, esclarecedor, lógico e muito raro no meio tanta informação errada. Como pequeno empresário com atividade de comercio e indústria, convivo com a incerteza fiscal principalmente quando resolvem "interpretar" uma lei clara. Pagamos tributos sobre tributos e não nos creditamos sobre insumos de uma indústria e temos insegurança jurídica na area de competência tributaria. Choca até a mudança do significado das palavras.(chamar um objeto impresso de composição gráfica) é comum confundir um "bem" com "serviço". Obrigado eparabens a todos autores

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