No Brasil, a Covid-19 traz desafio de coordenação entre Poderes e entes federativos sem precedentes
A pandemia tem exigido da classe política e dos diversos poderes de todos os países um comportamento de aproximação e trabalho conjunto. A atuação alinhada vem se mostrando acertada para amainar as consequências da COVID-19.
Se esse entendimento é fundamental para o Primeiro Mundo, para uma nação com as especificidades brasileiras a união de forças é ainda mais importante. Uma primeira razão é socioeconômica. A experiência até agora da pandemia é concentrada em países ricos. A partir do seu início, na China (onde foi controlada ferreamente), a epidemia foi espalhada para vizinhos asiáticos e para os principais países ocidentais por meio de viagens aéreas, que tipicamente envolvem pessoas de maior poder aquisitivo. O circuito de viagens de negócios de e para a China, incluindo países como Japão, Coreia do Sul, Cingapura e nações desenvolvidas ocidentais, espelha razoavelmente a disseminação inicial do novo coronavírus, com algumas exceções, como o Irã.
Na base de tentativa e erro, os principais países ocidentais caminharam para o isolamento social horizontal como forma de lidar com a pandemia e evitar um número imenso de óbitos e o colapso dos sistemas médico-hospitalares. Alguns países, como o Reino Unido, tentaram inicialmente isolar, apenas, os grupos cujos membros sofrem mais com a doença. Tiveram que voltar atrás. Outros, como Espanha, Itália e Estados Unidos, demoraram para agir. Mas a reação geral acabou por ser bem parecida, com poucas exceções (como a Suécia, que faz um isolamento vertical, embora venha tornando-o mais rigoroso).
O Brasil, portanto, teve a oportunidade de acompanhar de longe os primeiros efeitos do espraiamento do vírus. Embora seja uma experiência importante, não é cem por cento válida tendo em vista a situação socioeconômica brasileira. Aqui há muitas comunidades pobres precariamente urbanizadas e com habitações subnormais. As aglomerações dentro e fora dos domicílios e a natureza informal do trabalho de muitos moradores os compele a ir para as ruas para lutar pelo seu ganha-pão. Teme-se que a concentração humana, a falta de saneamento e as condições mais precárias para o isolamento pessoal e a higiene nessas localidades criem condições para uma disseminação mais intensa do novo coronavírus.
Para piorar, as tensões psicossociais causadas pelo isolamento das pessoas em suas casas afetam mais as famílias menos abastadas – quanto mais modesto o padrão de vida, menores são as chances de manter um mínimo suportável de distrações, laser e atividades saudáveis neste confinamento forçado. Se, no Primeiro Mundo, a longa quarentena já parece ter esticado ao limite a capacidade de sacrifício econômico e psicológico da população, e já se parte para estratégia de flexibilização, o que dizer do Brasil, com suas comunidades pobres de trabalhadores majoritariamente informais?
Assim, se não houver uma eficiente coordenação entre o Ministério da Saúde, como grande articulador no nível federal, com Estados e municípios, dificilmente se chegará a uma abordagem que minimize os impactos sociais da pandemia no Brasil. Apenas com essa sintonia fina, entre diferentes Poderes e níveis de Federação, seria possível pensar em estratégias mais finas e pontuais, que diferenciassem e isolassem, por exemplo, localidades em que ainda não ocorreu a transmissão comunitária daquelas em que a transmissão é mais intensa – isto é, criar protocolos que funcionem de acordo com as características de cada região, cidade etc. Mas isso é um desafio enorme em um país tão complexo e diversificado como o Brasil, com grandes diferenciações climáticas, regionais, de renda, educação e por aí vai.
Um segundo aspecto da pandemia da Covid-19 é que as instituições, não só no Brasil como no mundo todo, estão passando por um severíssimo teste. Aqui, infelizmente, nosso aparato institucional já dá mostras de estar muito aquém das exigências do momento. De que forma?
O que se espera em momentos trágicos como esse é a adoção de políticas que mitiguem as perdas da população. Devido à grande freada na economia, o contingente de desempregados crescerá sobremaneira. Por isso, há de se encontrar maneiras de ajudá-los. Quando se trata do empregado formal, o governo sabe exatamente quanto cada um ganha. Assim, quando demitido, é possível para o Estado fazer transferências de renda que amenizem o impacto nos desafortunados que perderam o trabalho. Quando se chega ao setor informal, no entanto, a situação complica. O Cadastro Único dos programas sociais (CadÚnico), embora reúna um bom número de informações sobre as famílias, não tem dados precisos sobre a renda do trabalhador informal. É bom lembrar que as medidas de mitigação da crise do novo coronavírus não visam resolver o problema da histórica desigualdade nacional, mas sim repor em alguma medida a renda perdida pelas famílias, no caso. O salário médio do trabalhador informal, segundo os dados da PNADC, está em torno de R$ 1,4 mil mensais, mas evidentemente tem variações extremas em torno deste valor. Como não se conhece quanto recebe cada trabalhador, o governo é forçado a transferir um valor único, no caso, R$ 600, que pode chegar a R$ 1,2 mil em famílias com determinadas características.
Essa transferência de R$ 600 também será direcionada ao público do Bolsa-Família, cujo benefício médio mensal é de R$ 190. Independentemente do mérito do expressivo aumento de rendimentos para esse grupo de famílias, há que se considerar que ele vai muito além do objetivo de se mitigar os efeitos da pandemia. Assim, dependendo da condição de renda prévia e de onde se mora (por exemplo, em São Paulo capital ou no interior do Maranhão), o auxílio emergencial pode ser muito pouco ou extremamente generoso. Trata-se, portanto, de um “tiro no escuro” em termos de política social de emergência. Para tornar o problema ainda mais difícil, há cerca de 20 milhões de pessoas que se encaixam no público alvo do auxílio emergencial e são de difícil alcance, pois não estão em qualquer cadastro do governo.
Dessa forma, o governo criou o programa de auxílio emergencial que, em três meses, terá um custo que pode ultrapassar a casa de 2% do PIB. Não é claro que os efeitos da crise no mercado de trabalho serão limitados a três meses. É possível, portanto, que mais recursos sejam necessários. Se houvesse mais coordenação entre os diversos níveis da Federação, talvez se conseguisse construir, ao longo dos próximos meses, cadastros que propiciassem mais focalização na transferência do benefício, caso haja necessidade de que seja estendido.
Outra frente problemática é a do apoio às micro, pequenas e médias empresas durante o surto da Covid-19. Os programas do governo criados para esse fim alocam 15% dos riscos aos bancos que vão repassar os recursos, sendo o restante assumido pelo governo. Não parece que isso será suficiente para eliminar o empoçamento de liquidez que asfixia essas empresas. A situação remete a um cartaz exibido num pequeno varejo, capturado em fotografia, no qual se lê que “devido ao novo coronavírus não estou vendendo fiado. Vai que você morre”. A frase seria aplicável, com a licença de algum humor negro, à realidade brutal que se abate sobre o mercado de crédito. Muitos negócios vão quebrar e muitos empréstimos não serão quitados. O Estado brasileiro já está aportando dinheiro para dar apoio a famílias e negócios abalados pela pandemia, mas o fato é de que não dispõe do poder de fogo de trilhões de dólares e euros que vêm sendo canalizados pelos Estados Unidos, União Europeia e outros países ricos. Assim, uma ação conjunta dos três Poderes da República poderia ajudar a entender melhor para alcançar o público-alvo de empresas a serem ajudadas.
Em cima de todas essas dificuldades, ainda há o problema institucional no Brasil do chamado “apagão das canetas”. Trata-se do medo dos gestores dos diversos programas do governo de serem responsabilizados, até criminalmente, pelo Ministério Público e outros órgãos de controle, por suspeitas de favorecimentos ou irregularidades nas gigantescas transferências em curso para famílias e empresas.
Uma questão adicional, para a qual pouca atenção se deu até agora, é a litigância jurídica relacionada à quebra de contratos na esteira dos efeitos da pandemia sobre as atividades econômicas. O Judiciário brasileiro é comumente criticado por ser muito lento em entregar respostas a demandas judiciais. Muitos credores e devedores usam da lentidão judicial como arma de negociação. A crise provocará ruptura e descontinuidades em inúmeros contratos. Basta pensar na relação entre locadores e locatários que perderam a renda, sejam pessoas ou estabelecimentos comerciais. Para além disso, empresas comerciais têm contratos de fornecimentos que podem ter prazos longos. Em todos esses casos, trata-se de jogos de “perde-perde”, em que as partes lutarão por preservar seus interesses. No contexto de um Judiciário lento e complexo como o brasileiro, desenha-se um cenário de anos de maciços conflitos judiciais, com toda a sua carga desorganizadora da atividade produtiva e danosa à produtividade.
Finalmente, o Brasil já é um país com grande concentração empresarial em diversos setores. Com as muitas falências e fechamentos de empresas que advirão desta crise, esses setores tendem a se concentrar ainda mais. Num momento de extrema fragilidade econômica, as empresas mais preparadas para sobreviver são justamente aquelas que têm maior poder de mercado. E sairão da crise com esse poder reforçado, pelo desaparecimento de concorrentes. Evidentemente, é um quadro que preocupa do ponto de vista da competição, tão importante para os consumidores e para a produtividade do país. E isso já ocorre num quadro de relativa fragilidade institucional dos órgãos nacionais de defesa da concorrência.
Em conclusão, é primordial no Brasil, mais do que em qualquer país do mundo rico, que haja uma coordenação de esforços numa frente ampla e eficaz de ação diante da crise econômica da pandemia. Isso deve envolver não só os diferentes Poderes, mas também todos os níveis da Federação. Se esse trabalho em equipe não for posto em prática, os impactos da crise do novo coronavírus serão muito piores do que o quadro já assolador que se desenha.
Esta é a Carta do Ibre de maio de 2020, publicada na revista Conjuntura Econômica do mesmo mês.
O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa forma, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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