Fiscal

Novo arcabouço: o que pode e não pode ser feito, e alguns princípios gerais

22 mar 2023

PEC de Transição deu bases do novo arcabouço, mas é difícil pensar em regra fiscal efetiva sem definir altas de gasto em discussão. Cenários da dívida pública do Tesouro podem ser elemento do arcabouço, como na Nova Zelândia.

A primeira providência para se discutir o novo arcabouço fiscal, que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, se comprometeu a apresentar até o final de março deste ano, é separar o que pode do que não pode ser feito. Manoel Pires, Bráulio Borges e Carolina Resende, pesquisadores do FGV-IBRE, iniciam aí a meticulosa análise que fizeram das perspectivas para o novo arcabouço fiscal, e que será o tema desta Carta.

Um dos objetivos do novo conjunto de regras fiscais, de acordo com o governo, é desconstitucionalizar a matéria. Dessa forma, a chamada “emenda da transição”, a Emenda Constitucional (EC) 126, determinou ao governo que apresente uma nova regra fiscal por meio de Lei Complementar (LC). A EC 126 prevê que, quando a LC do novo arcabouço for aprovada, a EC 95, do teto de gastos (e outras regras a ele associadas), é automaticamente revogada, e passam a valer as novas regras da nova lei complementar.

Uma primeira consequência é que, na hipótese de o governo não conseguir a aprovar as novas regras fiscais por lei complementar, o teto e as outras regras da EC 95 (com as modificações que foram introduzidas posteriormente por outras emendas constitucionais) continuam a valer. É evidente que o governo tem enorme incentivo em aprovar o novo arcabouço, e negociará com o Congresso até ter sucesso nesse objetivo.

Outra consequência do encaminhamento dado ao novo arcabouço pela EC 126 é que toda a legislação fiscal em lei complementar ou ordinária pode ser modificada por uma nova LC; porém, o que é importante, regras fiscais constitucionais que não foram tratadas pela EC 126 não poderão ser mudadas por lei complementar.

Dessa forma, todas as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que é lei complementar, estão passíveis de alteração ou eliminação pelo novo arcabouço fiscal. Destacam-se nesse conjunto a meta de resultado primário, que anualmente é determinada na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO); a vedação de se criar despesas obrigatórias de caráter continuado sem demonstração de fonte de custeio; a vedação de se conceder benefícios tributários sem compensação na forma de aumento de receita; e a definição de limites de despesas de pessoal como percentual da receita corrente líquida (RCL).

Por outro lado, o novo arcabouço, na forma de legislação complementar, não poderá alterar ou modificar dispositivos constitucionais como a regra de ouro, que veda a realização de operações de crédito que excedam as despesas de capital; a vedação de se criar benefícios de seguridade social sem fonte de recursos; e a meta de redução das renúncias tributárias para 2% do PIB nos cinco anos a partir de 2022.

Esse último item foi criado pela emenda 109, da “Emergência Fiscal”, de março de 2021, cujo principal objetivo foi o de possibilitar a reinstituição do auxílio emergencial à população vulnerável até o limite de R$ 44 bilhões. Mas a EC 109 também determinou que a renúncia tributária no âmbito federal, hoje em cerca de 4% do PIB, deveria cair para 2% no prazo mencionado acima. Esse dispositivo não foi revogado, mas não parece estar sendo perseguido. O governo anterior apresentou um plano sigiloso ao Congresso, que não teve nenhum encaminhamento ao longo de 2022. Aliás, a LC do novo arcabouço fiscal também poderá regular aspectos da EC 109 que foram deixados para a legislação complementar.

Já se mencionou o que o novo arcabouço pode ou não pode mudar (a menos de apresentação de EC). Falta deixar claro o que ele revogou, ou revogará, a partir da aprovação da LC das novas regras fiscais. O principal dispositivo a ser revogado, obviamente, é o próprio teto de gastos, com seu limite de aumento dado pelo IPCA.

Mas também os chamados “gatilhos” associados ao teto são revogados pela EC 126. O acionamento de gatilhos de redução automática de despesas constava da EC 95, mas, por um problema de desenho, nunca foi usado. Era impossível que a cláusula de acionamento, o descumprimento do teto, ocorresse, porque formalmente o governo não pode gastar acima do que está previsto no orçamento nem pode enviar um orçamento que descumpra a determinação constitucional do teto de gasto. Esse problema foi resolvido na emenda 109, que recriou o gatilho estipulando como cláusula de acionamento um percentual entre a despesas obrigatórias e a despesa total. Mas a EC 126 revoga esse dispositivo, e resta ver se, no novo arcabouço, será recriado algum gatilho por lei complementar, ou se esse mecanismo será eliminado definitivamente.

No exame do pano de fundo criado pela EC 126 para a introdução do novo arcabouço fiscal, um ponto que se destaca por seus efeitos nas contas públicas (de mais gastos) são as vinculações dos gastos de saúde e educação. A EC 126 revogou o mecanismo atual de correção pelo IPCA. Com isso, no momento em que o novo arcabouço por lei complementar for aprovado, o teto e seus dispositivos associados serão revogados, incluindo àquela vinculação ao IPCA. Nesse caso, porém, automaticamente vai se voltar à vinculação constitucional anterior: em relação aos gastos federais de saúde, à receita corrente líquida (RCL) que engloba receitas de impostos e contribuições; no caso da educação, à receita líquida de impostos (RLI).

Esse impacto da mudança da vinculação de saúde e educação se divide em dois efeitos. O primeiro é uma mudança inicial de nível de despesa pela sistemática que será retomada. O segundo é a dinâmica diferente da evolução do IPCA e da RCL (ou RLI) – tudo indica que a segunda, desde que a economia cresça minimamente, tende a superar a primeira, o que significa que os gastos com saúde e educação devem crescer mais.

A pesquisadora Carolina Resende calculou o impacto dessas mudanças sobre o nível das despesas. No caso da saúde, excetuando as medidas provisórias (MPs) de créditos extraordinários associados à pandemia, as despesas vêm sendo corrigidas nos últimos anos pelo IPCA, a partir da base em 2017, primeiro ano de validade do teto de gastos (e do conjunto de regras a ele associadas). Com a revogação dessa vinculação, passa a valer o artigo 198 da EC 86, que determina que o mínimo gasto em saúde corresponda a 15% da RCL federal.

Pela regra da emenda do teto, essas despesas iriam para R$ 149,92 bilhões em 2023, o que foi previsto no Orçamento deste ano, encaminhado em 2022. Tomando-se 15% da RCL, porém, elas irão para R$ 172,64 bilhões, com um gasto adicional de R$ 22,73 bilhões. Na verdade, a EC 126 acrescentou na área de saúde exatamente essa diferença, fazendo com que o Orçamento de 2023 já tenha previstas despesas com saúde compatíveis com o que a regra antiga (e que deve voltar) estipulava. Assim, não haverá um novo choque fiscal do nível de despesa, pois o gasto adicional da emenda da transição incluiu esse adicional na área da saúde.

Como aponta Borges, essa regra “antiga”, na verdade, não é tão antiga assim. Ela foi introduzida em 2015 pela EC 86, e, antes disso, o gasto de saúde era corrigido pelo PIB nominal. Mas houve pressão da área de saúde por mudança no início da década passada, pois a receita crescia bem acima do PIB à época. A partir desse pleito, a EC 86 estipulou a vinculação à 15% da RCL. Mas a emenda teve vigência curta porque, em 2016, veio o teto de gastos, que estabeleceu a vinculação ao IPCA. Na verdade, houve certo “azar” da Saúde, porque em 2015 e 2016 a receita tributária despencou mais que o PIB.

No caso da educação, a mudança fará bem menos diferença em termos de impacto inicial no nível do gasto, porque a despesa tem sistematicamente ficado acima do limite mínimo constitucional (artigo 212 da Constituição) de 18% da RLI. De 2018 a 2020, o gasto com educação superou não só o nível mínimo da correção da despesa de 2017 pelo IPCA como também os 18% da RLI. Em 2021, a execução efetiva foi quase igual aos 18% da RLI (R$ 500 milhões a menos). Apenas em 2022 ocorreu de o gasto com educação ter ficado abaixo (R$ 6,7 bilhões) do limite constitucional previsto para retornar. Mas os pesquisadores do IBRE creem que 2022 foi um “ano fora da curva”, porque houve um crescimento anormalmente forte da arrecadação por várias razões. A tendência é de que a mudança da vinculação do gasto mínimo de educação não cause impacto significativo em 2024, quando passarão a valer os 18% da RLI.

Dois pontos adicionais “preparatórios” para a discussão do novo arcabouço fiscal também foram levantados pelos pesquisadores do IBRE. O primeiro é que o teto de gastos tem várias exclusões de itens de despesa, como as despesas do FUNDEB e do FCDF (Fundo Constitucional do Distrito Federal), os gastos do TSE com as eleições, as transferências constitucionais para Estados e municípios e os créditos extraordinários. Se, como se imagina, o novo conjunto de regras fiscais terá um mecanismo de controle do aumento do gasto, é preciso decidir se este será mais abrangente do que o teto, ou se terá também as atuais exclusões, ou outras.

O segundo ponto é que, como parte do acordo para a aprovação da PEC de Transição na esteira da interdição de parte do “orçamento secreto” por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), as emendas parlamentares individuais voltaram a ser corrigidas pela RCL, e não mais pelo IPCA, além de terem sido ampliadas de 1,2% para 2% da RCL. Esse 0,8% da RCL adicional que se acoplou ao 1,2% das emendas individuais corresponde justamente à metade do  descontinuado orçamento secreto que, por acordo entre Executivo e Legislativo, permanecerá como recursos para emendas individuais.      

Uma das dificuldades em se analisar as perspectivas da nova regra fiscal é que há muitos aspectos em discussão simultânea.

Além da EC 126 aprovada, que joga a despesa para 19% do PIB, há muitos temas com possível impacto fiscal a serem definidos à frente. Esta Carta lista abaixo alguns deles:

  • O governo está priorizando a reforma tributária do consumo. Um dos itens que dificulta essa pauta é a falta de compensação fiscal dos Estados que vão perder instrumento de guerra fiscal. Haverá um fundo de compensação a ser criado nesse contexto?
  • O governo acenou com uma nova política de reajuste do salário mínimo. Qual será exatamente e como impactará a despesa nos próximos anos?
  • O reajuste da tabela do Imposto de Renda será ampliado para cinco salários mínimos em qual horizonte de tempo?
  • Qual será, ao fim e ao cabo, a compensação federal à desoneração do ICMS dos combustíveis que afetou os Estados no ano passado, conforme determinado por lei?  
  • Haverá fundo de compensação para estabilizar o preço dos combustíveis, como defende o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates?

Todas essas questões podem consumir espaço fiscal, talvez em grandes proporções, nos próximos anos. É muito difícil pensar em desenho de regra fiscal capaz de apresentar uma trajetória fiscal que dê sustentabilidade à evolução da dívida pública sem ter essas respostas. Nesse contexto, a tarefa da equipe econômica se torna bastante complexa.

Levando em consideração o complexo pano de fundo da elaboração do novo arcabouço detalhado acima, os pesquisadores do IBRE listam alguns princípios que deveriam ser observados pelas novas regras.

A avaliação do espaço fiscal e dos seus riscos deve determinar o tamanho dos déficits que podem ser realizados e a velocidade do ajuste, e a regra fiscal operacionaliza a forma como o espaço fiscal é percebido e utilizado. Quanto maior a abrangência da regra, melhor o controle das contas públicas, pois são evitados subterfúgios e a chamada “contabilidade criativa”.

Por outro lado, exceções existirão e têm que ser levadas em conta no desenho do novo arcabouço. Há três tipos de excepcionalizações características: juros, que são muito voláteis, fazendo com que se trabalhe com as contas primárias; investimento, exceção menos comum, mas adotada por alguns países; e surge agora a discussão sobre se excepcionalizar gastos com a economia verde, mas ainda em forma mais teórica e incipiente.

A regra fiscal deve permitir desvios para situações atípicas (como a pandemia), mas é importante que seja garantida a sustentabilidade de longo prazo. É preciso que a regra, principalmente no caso de um país (como o Brasil) no qual o ponto de partida é a insustentabilidade da dívida pública, seja acompanhada por planejamento fiscal de médio e longo prazo, possibilitando o ganho de credibilidade ao longo do tempo. Finalmente, num país produtor de commodities, a política fiscal deve ser, em algum grau, anticíclica.

Em relação ao espaço fiscal, a regra fiscal será tão mais apertada quanto menor ele for. O teto de gasto, criado em momento de crise fiscal aguda, é um bom exemplo, ao derivar o seu rigor da percepção drasticamente limitada do espaço fiscal no momento da sua criação. Mas é crescente a percepção de que espaço fiscal não é um conceito constante ou imutável no tempo, e pode mudar com as variações da arrecadação e os gastos estruturais que um governo pretende promover, com a taxa de crescimento da economia e com as condições de mercado que definem as taxas de juros. Dessa forma, o arcabouço fiscal deve ter alguma flexibilidade para reparametrizar suas regras ao longo do tempo e permitir que os governos possam conduzir a política fiscal em consonância com seus objetivos políticos.

Em termos do cenário internacional de regras fiscais, os pesquisadores do IBRE põem um foco particular no arcabouço da Nova Zelândia, que tem evoluído muito nas últimas décadas. A regra fiscal neozelandesa é redefinida a cada ciclo de governo. O Tesouro faz recomendações, de forma pública, de princípios e objetivos gerais para um novo ciclo de governo.

No último ciclo, as recomendações do Tesouro neozelandês foram baseadas num limite de dívida líquida e na projeção dessa trajetória de endividamento. O limite é de 50% do PIB, e só pode ser superado para financiar projetos de alta qualidade. O limite de 50%, na verdade, é estimado a partir de cenários de choques variados para os seis anos seguintes, de modo a minimizar o risco de a dívida líquida ultrapassar o patamar de 90% do PIB, definido por eles como um nível arriscado.

Os parâmetros fiscais foram estabelecidos para impedir que haja algum risco relevante de ultrapassagem daquele patamar. E, a partir desses parâmetros extraídos do estudo sobre endividamento, foram desenhadas algumas regras operacionais. Na prática, a recomendação foi de que o país atinja superávit fiscal no médio prazo, ao longo do ciclo governamental, saindo de uma posição de déficit.

“É como se 90% do PIB fosse o teto, e, para minimizar a chance de que seja atingido em função dos riscos fiscais de diferentes tipos de choque, ancora-se de, forma prudencial, a dívida líquida em 50% do PIB”, explica Pires. A cada quatro anos, o mesmo exercício é feito e os parâmetros e objetivos fiscais são redefinidos. E, a partir deles, se estabelece um novo ciclo de planejamento fiscal.

O economista aponta a semelhança entre o modelo neozelandês e a recomendação do FMI para a União Europeia num texto de agosto de 2022. Na vizinhança do Brasil, um dos destaques é a Colômbia, cuja regra fiscal mudou em 2011 e novamente em 2021. De forma similar às recomendações do Tesouro da Nova Zelândia, a Colômbia formalizou a regra de ancorar a dívida pública com um limite de 50% do PIB, de forma a ensejar uma trajetória que minimiza o risco de o endividamento ultrapassar 71% do PIB, que funciona como um teto de tolerância. A diferença é que esse arcabouço e esses números na Colômbia estão na lei e sua revisão a cada ciclo de governo não está prevista, como no caso neozelandês.

Adicionalmente, a Colômbia criou um comitê autônomo para monitorar a regra fiscal, enviando relatórios semestrais ao Congresso sobre se as diretrizes e as ações do governo estão em consonância com o arcabouço fiscal. Finalmente, a aprovação da reforma tributária apresentada pelo governo de esquerda de Gustavo Petro, com aumento da arrecadação, é pré-condição fundamental para cumprimento do planejamento fiscal descrito acima.

Borges resume toda a discussão com o comentário de que o ponto crucial de um arcabouço fiscal é o trade-off entre credibilidade e flexibilidade. Além disso, claro, as diferentes propostas e os diversos mecanismos também refletem visões de mundo e preferências políticas dos seus autores, e a resultante final será, como de hábito, um compromisso entre as necessidades econômicas e as possibilidades políticas.

No Brasil, é importante lembrar que o Tesouro Nacional já faz algo muito próximo do que o seu correspondente da Nova Zelândia realiza em relação à avaliação de risco da trajetória da dívida pública. O Relatório de Projeções Fiscais, publicação semestral do Tesouro, constrói cenários alternativos para a trajetória da dívida pública considerando trajetórias de receita, despesa, juros e crescimento, e mapeando riscos fiscais.

Segundo Pires, esse exercício de cenários de risco da trajetória da dívida pública pelo Tesouro poderia ser a base para uma proposta ou recomendação de desempenho fiscal para o governo, ao estilo da Nova Zelândia. Dentro dessa avaliação, o governo pode desenhar seu planejamento fiscal. Pode definir um orçamento contracionista, com baixo crescimento da despesa. Por outro lado, se desejar que a despesa pública cresça um pouco mais, deve propor medidas de ajuste pelo lado da receita para compensar, de modo a manter a consistência macroeconômica de médio prazo.

Esse tipo de arcabouço cabe tanto em governos de direita como de esquerda porque flexibiliza a parametrização do ajuste às circunstâncias de mercado e não engessa a forma como o ajuste deve ser feito para atender aos objetivos fiscais de médio prazo. Assim, também permite ao governo o cumprimento do seu projeto político escolhido democraticamente nas urnas.


Esta é a Carta do IBRE de março/2023, da Conjuntura Econômica.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV

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