O aumento da incerteza sobre o mecanismo de transmissão da política monetária
Na reunião do Copom de 05 do corrente mês, os integrantes do Comitê ressaltaram dois novos fatores de risco para o cumprimento das metas de inflação. De um lado, à influência do elevado nível de capacidade ociosa na economia, acrescentaram a “potencial propagação da inflação corrente, por mecanismos inerciais” como elemento capaz de continuar produzindo projeções de inflação abaixo do esperado.
(esse texto foi repostado porque a versão inicial tinha lacunas de números e dados, falha do blog, não do autor)
De outro, às preocupações com o cenário externo e com eventuais frustrações acerca do andamento das reformas e ajustes ora em curso, adicionaram a constatação de que o atual grau de estímulo monetário “aumenta a incerteza sobre os canais de transmissão e pode elevar a trajetória da inflação no horizonte relevante para a política monetária”.
Em sua discussão sobre a condução da política monetária, os membros do Copom deixaram claro que, por trás dessa percepção de aumento de incerteza acerca dos mecanismos de transmissão, estão não apenas o grau de estímulo monetário, mas também as mudanças pelas quais passam os mercados de crédito e de capitais.
Preocupações perfeitamente justificáveis. No presente texto examinaremos apenas a mencionada por último. Há décadas o mercado de crédito no Brasil mostra-se altamente segmentado, devido à forte presença estatal, via operações do BNDES, habitualmente subsidiadas. Sob tais circunstâncias, o segmento livre de crédito fica espremido, dificultando a transmissão da política monetária, fazendo com que o controle da inflação acarrete juros mais altos do que seria necessário fosse outro o quadro vigente. Agora, com o encolhimento recente da atuação do BNDES e a retomada do crédito livre, concentrada no segmento de pessoas físicas, não pode haver dúvida sobre certo aumento da sensibilidade da atividade econômica e da inflação aos juros de política monetária. Com esse aumento da elasticidade do mecanismo de transmissão, na presença de fatos novos, fica realmente mais difícil calibrar as ações do BC.
No final de 2015, o estoque de crédito oficial, representado pela carteira do BNDES, correspondia a 37,0% do total de crédito para PJs. Esse percentual caiu para 28,1% em setembro último. Queda expressiva, sem dúvida. Mas o fato é que o BNDES continua responsável por parcela elevada do crédito total (12,0%). Quando se considera o conjunto dos recursos direcionados (no total do crédito ofertado pelo Sistema Financeiro Nacional), a retração observada é de 49,2% para 43,5%, no mesmo período, número que ainda revela alto grau de segmentação do sistema.
Quanto à espécie de renascimento pelo qual passa o mercado de capitais, note-se que, no segmento de renda variável, é expressivo o montante de recursos levantado por meio de lançamento de ações, atingindo R$ 71,4 bilhões (até outubro). Mas nesse total a parcela correspondente a IPOs é modesta, tendo chegado a R$ 10,2 bilhões. Mais significativas têm sido as emissões de renda fixa. No acumulado do ano até outubro, foram R$ 204,4 bilhões, entre debêntures, notas promissórias e outros. Contudo, informações reunidas pela ANBIMA revelam que 29,2% das emissões objetivavam levantar recursos para capital de giro e 34,8% tinham a ver com reestruturação de passivos, ou seja, troca de dívidas em moeda estrangeira ou junto ao BNDES por recursos obtidos em melhores condições no mercado doméstico. Apenas 14,7% das emissões diziam respeito a financiamento de investimentos em infraestrutura.
O fato de, para certo tipo e porte de empresa, o mercado de capitais atualmente oferecer boas alternativas certamente representa menor estímulo para a contratação de crédito bancário. De fato, no segmento livre de mercado, observa-se queda do estoque de crédito para pessoas jurídicas (PJ), em curso, na verdade, desde 2016. Do final de 2015 até setembro deste ano, o volume de crédito para PJs, como proporção do total, caiu de 53,0% para 42,6%. A parte mais relevante dessa queda certamente tem a ver com a recessão iniciada em 2014. Os recentes movimentos no mercado de capitais têm contribuído para manter mais baixa a participação das PJs no crédito bancário total. Em 2019, o estoque de crédito para PJs sofreu retração de 2,4%.
No tocante a pessoas físicas, o volume de crédito por elas contratado cresce continuadamente. De maneira modesta no período recessivo, e de modo mais acentuado a partir de 2018. Mas cresce o tempo todo. Muitos têm interpretado positivamente essa retomada dos dois últimos anos, especialmente em 2019. Tal movimento acontece no segmento livre e aqui o destaque é para o crédito pessoal, que tem representado cerca de 47,6% do total dos recursos livres para PFs. Nos 12 meses terminados em setembro último, o crédito pessoal cresceu 13,7%. No cartão de crédito, a variação foi de 20,1%. Note-se que o estoque do primeiro é o dobro do estoque do segundo.
O fato de o financiamento para a aquisição de veículos revelar alta expressiva (18,2%) permite realmente uma interpretação positiva. Mas talvez o mesmo não possa ser dito a respeito da expansão do crédito bancário pessoal e no cartão. Com a renda média crescendo apenas modestamente e mais de 12 milhões de desempregados, fica difícil admitir que a elevação do endividamento pessoal seja algo positivo. Por certo, pesquisas mais aprofundadas fazem-se necessárias, cabendo, por enquanto, apenas lembrar que para muitos o recurso ao endividamento possa refletir certa necessidade de complementação do orçamento familiar.
Em suma, parece legítima a preocupação do BC com o aumento da incerteza acerca do mecanismo de transmissão da política monetária, derivado das recentes mudanças nos mercados de crédito e de capitais. Sobre isso cabe notar que: a) seguramente tem se ampliado a sensibilidade de variáveis como a atividade e a inflação a alterações de política monetária, mas tal ampliação possivelmente ainda se mostra modesta, uma vez que permanece elevada a segmentação do mercado de crédito; b) as recentes emissões de ações e renda fixa no mercado de capitais têm permitido a melhora da saúde patrimonial das empresas, mas ainda não trazem sinais de mobilização das empresas em torno de novos projetos de investimento, caso em que teríamos maior garantia de continuidade do processo; c) no crédito bancário, o crescimento que se verifica é no segmento livre, puxado pelo crédito pessoal, não sendo possível assegurar que isto represente sinal de boas perspectivas para a expansão do consumo das famílias. Por certo, o BC continuará monitorando de perto as questões aqui discutidas. De imediato, porém, não parece que estejamos diante de uma transformação de grandes proporções.
Este artigo faz parte do Boletim Macro IBRE de outubro de 2019. Leia aqui a versão integral do BMI Outubro/19.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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