O BC teve que correr atrás... Mas antes tarde do que nunca
Com uma variação do IPCA nos 12 meses terminados em agosto deste ano em +2,5% e a chance cada vez maior de que esse índice encerre 2017 com alta inferior ao piso do centro da meta, que é de 3%, reemergiu o debate sobre a postura da política monetária doméstica. Teria sido o BC conservador demais no ciclo de aperto, bem como no timing da distensão monetária? Ou boa parte da forte desinflação inesperada observada nos últimos meses seria reflexo de choques pontuais, sobretudo nos alimentos, sobre os quais a política monetária tem pouca influência?
Aqueles que defendem que o BC não está behind the curve argumentam que boa parte da desaceleração do IPCA entre meados de 2016 – quando estava correndo próximo de 9% a.a. em 12 meses – e agora reflete, em grande medida, um choque de oferta favorável nos alimentos. De fato, o IPCA Alimentação no domicílio, que responde por cerca de 16,5% do índice total, passou de uma alta de quase 15% em junho do ano passado para -5% nos 12 meses encerrados em agosto – uma desinflação de 20 pontos pBercentuais. Desse modo, pouco mais da metade da desinflação do IPCA cheio nesse ínterim (que foi de 6,4 p.p.) seria explicada somente por esse grupo.
Não obstante, as medidas de núcleo – que buscam expurgar choques/ruídos – atestam que a desinflação foi bastante disseminada, inclusive pelos efeitos de segunda ordem do choque favorável dos alimentos. Levando em conta uma média simples das quatro medidas de núcleo tradicionais, a inflação passou de +7,7% em junho de 2016 para +3,5% nos 12 meses terminados em agosto, devendo fechar o ano perto de 3%. No caso do núcleo dos serviços (serviços subjacentes), essas altas são de +7,6%, +4,2% e +3,9%, pela ordem. Ou seja: também houve forte desinflação, levando em ambos os casos a inflação dos núcleos para níveis inferiores ao centro da meta.
Como é bem sabido, os BCs não têm a capacidade de combater os efeitos primários de choques (para isso servem os intervalos de tolerância das metas), mas podem e devem combater os efeitos secundários, sobretudo em economias com elevado grau de indexação de preços, salários e contratos, nas quais esses choques primários podem levar bastante tempo para serem dissipados, contaminando as expectativas (em ambas as direções).
Em um sistema de metas de inflação, no entanto, a autoridade monetária não olha apenas para a inflação corrente, mas principalmente para as expectativas de inflação. De fato, a função de reação dos BCs que operam nesse tipo de regime pode ser muito bem descrita pela chamada regra de Taylor, que estabelece que a taxa básica de juros de curto prazo deve ser uma função da taxa de juros estrutural, do desvio da inflação esperada em relação à meta, bem como do desvio do produto efetivo em relação ao potencial (o chamado hiato do produto). Desvios positivos nessas duas últimas variáveis devem corresponder a um juro acima do equilíbrio e vice-versa.
Sim, o hiato também entra na função de reação do BC, na medida em que ele representa um indicador antecedente importante da dinâmica inflacionária. Geralmente o peso atribuído ao hiato na regra de Taylor é bem menor do que aquele dado ao desvio da inflação esperada (vide, por exemplo, a ferramenta “Taylor Rule Utility”, do Federal Reserve de Atlanta: https://www.frbatlanta.org/cqer/research/taylor-rule.aspx?panel=1). Mas esse peso não é zero (há um estudo recente do FMI até mesmo sugerindo que o peso atribuído ao hiato deveria ser superior ao da inflação: http://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2017/07/19/Designing-a-Simple-Loss-Function-for-Central-Banks-Does-a-Dual-Mandate-Make-Sense-45064).
Desse modo, uma maneira de avaliar se o BC brasileiro está ou não behind the curve é observar esses gaps que fazem parte da regra de Taylor. O hiato do produto de nossa economia já está em terreno negativo há bastante tempo, desde meados de 2015, e atingiu seu ápice (em termos de efeitos desinflacionários) na virada de 2016 para 2017, pouco se alterando desde então e devendo levar alguns anos para ser totalmente consumido (vide minha última coluna aqui no Broadcast). Quanto à inflação esperada no horizonte relevante da política monetária (12 a 18 meses à frente), ela estava bastante alinhada ao centro da meta até março, passando a se distanciar para baixo (cada vez mais) desde então.
Ou seja: já em abril, os dois hiatos (do produto e de inflação esperada em relação à meta) estavam negativos, prescrevendo uma taxa básica de juros abaixo do nível de equilíbrio, que hoje é estimado por boa parte dos analistas em algo próximo de 4% a 4,5% a.a. em termos reais (ou 9% a 9,5% em termos nominais). Acho até que o juro neutro que pode ser bem menor do que isso nos próximos anos, já que estamos saindo de uma balance sheet recession (com o canal do crédito relativamente obstruído). Isso, contudo, só reforça a argumentação a seguir.
Até o final de agosto, a Selic ainda estava em uma zona da neutralidade (em 9,25% a.a.) e a retórica do BC sinalizava que a taxa básica não se distanciaria muito desse nível. No comunicado da decisão de julho, que levou a Selic para esses 9,25% a.a., o Copom apontou que “(...) a manutenção das condições econômicas, até este momento, a despeito do aumento de incerteza quanto ao ritmo de implementação de reformas e ajustes na economia, permitiu a manutenção do ritmo de flexibilização nesta reunião. Para a próxima reunião, a manutenção deste ritmo dependerá da permanência das condições descritas no cenário básico do Copom e de estimativas da extensão do ciclo”.
Já na última reunião, ocorrida há duas semanas, o BC suprimiu o trecho acima de seus documentos e apontou que “(...) a conjuntura econômica prescreve política monetária estimulativa, ou seja, com taxas de juros abaixo da taxa estrutural”. Houve alguma mudança brusca da conjuntura econômica entre julho e agora, no sentido de tornar o hiato ainda mais desinflacionário e/ou de derrubar as projeções de inflação para 2018? Não. O que significa dizer, em minha avaliação, que o BC teve que “correr atrás”. Antes tarde do que nunca.
*Este artigo foi publicado originalmente no Broadcast da Agência Estado.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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