Macroeconomia

O Brasil encontra-se em dominância fiscal?

27 abr 2021

No período recente, muitos economistas verbalmente ou por meio de relatórios têm expressado preocupação a respeito da dominância fiscal (DF) no Brasil, ainda que este tenha recentemente reforçado suas regras fiscais e seu arcabouço de política monetária. Com isso em mente e considerando serem válidas a nova institucionalidade fiscal (Teto dos gastos públicos e seus gatilhos) e monetária (independência do Banco Central), tentaremos responder a pergunta do título deste texto.

 A fim de respondê-la, estabelecemos a premissa que todo o conteúdo relevante da literatura sobre dominância fiscal está no artigo seminal de Sargent & Wallace (1981). De fato, os artigos posteriores sobre o tema provisionaram testes empíricos para identificar a presença de DF ou explicitaram casos particulares da abordagem feita por Sargent & Wallace, a exemplo do que fizeram os autores Sims (1994), Cochrane (1998) e outros que ajudaram a desenvolver a Teoria Fiscal do Nível de Preços.

Dito isso, vale lembrar que a tese central exposta em Sargent & Wallace (1981) é refutar o seguinte argumento de Friedman: “a autoridade monetária (Banco Central) exerce substancial controle sobre a taxa de inflação, especialmente no longo prazo”.  De fato, nesse artigo,  Sargent & Wallace demonstram que, ainda que sejam válidas as suposições monetaristas de Friedman (base monetária conectada ao nível de preços e Banco Central arrecadando receitas com senhoriagem), a política monetária sozinha não controla a taxa de inflação e a evolução desta depende da forma de coordenação entre as políticas monetária e fiscal.

Em síntese, Sargent & Wallace (1981) demonstram que, se o Banco Central estabelecer sua política monetária de forma independente, anunciando a taxa de crescimento para a base monetária nos períodos presente e futuro, conseguirá controlar permanentemente a  inflação. Contudo, se a autoridade fiscal (ministério da Economia) estabelecer independentemente seu orçamento, anunciando seus resultados fiscais nos períodos presente e futuro, pode até haver controle da inflação,  mas não necessariamente haverá.

De fato, se houver déficit público e este não puder ser financiado por títulos públicos, o Banco Central será forçado a criar moeda e tolerar a inflação. Em particular,  se a demanda por título público implicar um rendimento deste maior que a taxa de crescimento econômico, o Banco Central será incapaz de controlar o crescimento da base monetária ou o da inflação, permanentemente.  

Neste caso, ainda que haja independência do Banco Central, como no caso brasileiro, se o financiamento do déficit público implicar rendimento real dos títulos maior que o crescimento econômico, diremos que se eleva o risco de o País entrar em DF. Nossa leitura de DF em Sargent & Wallace (1981) é que o evento em que o País entra em DF é binário e extremo, contexto em que o déficit público não consegue ser financiado por novos títulos públicos. Nesse sentido, quanto maior o rendimento real dos títulos em relação ao crescimento econômico, maior o grau de DF e, consequentemente, maior a possibilidade desse evento extremo ocorrer.

Logo, a fim de verificar se o Brasil se encontra em DF, fizemos o exercício proposto por Sargent & Wallace para o caso brasileiro. Nesse sentido, com vistas a evitar complexidade na aferição do rendimento real dos títulos públicos que financiam o déficit do governo federal, consideramos o rendimento real da NTN-B (que é explicito) dos títulos negociados no dia 16/4/2021, neste e nos próximos três anos, e descontamos desse rendimento o imposto que deverá ser pago ao governo federal. Além disso, comparamos esse rendimento com a expectativa de crescimento real do PIB neste e nos próximos três anos (Tabela 1).

Tabela 1 – Crescimento previsto do PIB e rendimento real esperado da NTN-B

 

PIB (Focus)

NTN-B real (descontado o imposto)

2021

3,04

- 0,46

2022

2,34

1,92

2023

       2,50

3,24

2024

      2,50

3,65

 

Focus (Banco Central) e Tesouro Nacional: 16/4/2021. No cálculo do juro real de 2021, foi utilizado a B21 e a B22. E assim por diante.

Por conseguinte, na Tabela 1,  em virtude de o crescimento do PIB ser maior que o rendimento real dos títulos que financiam o déficit público em 2021 e 2022, depreende-se que, nesses dois anos, não há qualquer possibilidade de DF. Entretanto, atualmente, o mercado prevê que o País possui risco crescente de entrar em dominância fiscal a partir de 2023. Há de se considerar que, historicamente, o cupom da NTN-B na parte média e longa da curva de juros foi mais alto que a expectativa de crescimento e isso decorre do fato de o mercado atribuir costumeiramente ao Brasil um alto risco fiscal, e consequentemente, elevada  possibilidade de DF.

Por que essa possiblidade de DF continua ocorrendo, a despeito do arcabouço macroeconômico brasileiro ter sido recentemente reforçado, com o teto dos gastos (e seus gatilhos) impedindo que o resultado fiscal seja crescentemente deficitário (até 2036) e o Banco Central (agora independente e com diretorias atravessando mandatos presidenciais) tenha de financiá-lo com receitas de senhoriagem?

Inicialmente, o que nos vem à mente é que, guardadas as devidas proporções, a resposta advém  da analogia  com os agentes de mercado observando o Brasil como um alcoólatra que entrou na associação Alcoólicos Anônimos (AA) a partir de 2016, mas que deixará de frequentá-la a qualquer momento e voltará a se embriagar. Além dessa analogia, temos três sugestões para explicar a possibilidade crescente de DF a partir de 2023.

Primeira, considerando que em 2023 o Brasil iniciará um novo ciclo presidencial, a indicação de DF sugere que os agentes de mercado não confiam que o atual governo será reeleito, que este se reeleito não manterá o mesmo padrão de austeridade fiscal ou que um novo entrante não manterá o teto dos gastos públicos.

Segunda, o teto dos gastos públicos (com seus gatilhos) não foi plenamente compreendido pelos agentes de mercado. 

Terceira, os agentes de mercado não possuem confiança plena que a independência do Banco Central será mantida a partir de 2023.

Por fim, mencione-se que, embora não tenhamos resposta única para o fato de haver possibilidade crescente de DF a partir de 2023, depreende-se que esta é mais uma lição que o sistema legal não substitui as leis de mercado. Não se conquista credibilidade apenas com leis; é preciso cumpri-la sistematicamente.

 Por conseguinte, em se cumprindo o teto, especialmente neste ano, em virtude do difícil período pandêmico e do curto espaço fiscal, e nos próximos, com maiores receitas advindas do crescimento que não poderão ser gastas, o Brasil há de finalmente entrar em um período virtuoso com câmbio competitivo e juros baixos, que deverá trazer consigo investimentos e empregos abundantes, especialmente se for mantido o ritmo recente de reformas micro pró-mercado, a exemplo das que ocorreram nos setores de saneamento e do gás natural.


As opiniões expressas no documento no link são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Referências bibliográficas

COCHRANE, J. H. (1998) “A frictionless view of U.S. inflation”. In: B. Bernanke e J. Rotemberg (eds.), NBER Macroeconomics Annual. Cambridge: MIT Press.

SARGENT, T. J., WALLACE, N. (1981) “Some unpleasant monetarist arithmetic”. Federal Reserve Bank of Mineapolis Quarterly Review, Fall.

SIMS, C. A.  (1994) “A simple model for the stufy of the determination of the price level and the interaction of monetary and fiscal policy”. Economy Theory, v. 4, n. 3.

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