Macroeconomia

O esgotamento dos instrumentos de incentivo à demanda global e seus efeitos sobre o Brasil

18 out 2019

Desde a grande crise financeira global de 2008/2009, muito se fez em termos de ativismo monetário e fiscal para acelerar a atividade econômica em diversas partes do mundo. Os juros básicos caíram para próximo de zero nas principais economias, houve recompra maciça de títulos de longo prazo pelos bancos centrais dos Estados Unidos, zona do euro e Japão, e pacotes de cortes de impostos ou aumento de gastos públicos (incluindo saneamento do sistema bancário) foram implementados em diversos países.

Naturalmente, essas medidas extremas geraram preocupação e levaram a políticas em sentido contrário que tentavam restabelecer padrões de equilíbrio anteriormente vigentes. Assim, muitos países que saíram excessivamente endividados em seus setores públicos, depois da expansão fiscal pós crise financeira, engataram programas de austeridade. E, nos Estados Unidos, depois de manter a taxa básica (fed funds) próxima de zero por um longo período, o Fed começou a elevá-la a partir de dezembro de 2015.

O problema, porém, como mostra detalhada análise da conjuntura global por Livio Ribeiro, pesquisador do FGV IBRE, é que as ondas de desaceleração e desinflação continuam a se abater sobre as principais áreas da economia mundial. Isto, por sua vez, está levando a mais uma temporada de ativismo monetário e fiscal por parte dos governos, ao mesmo tempo em que aumentam as dúvidas quanto à eficácia dessas estratégias. Assim, o Fed voltou a cortar os fed funds agora em setembro. E sem que ainda tenha sido revertido de forma significativa o enorme crescimento do balanço dos BCs, em função da compra de títulos para baixar os juros de longo prazo e estimular a economia, o BCE já anuncia que fará novas rodadas de afrouxamento quantitativo (nome técnico para a compra daqueles títulos). 

O crescimento econômico em queda, com muito pouca inflação, tanto ao consumidor como ao produtor, abriu uma nova temporada de cortes de juros pelos BCs. Desde maio de 2019, houve reduções de taxas básicas nos Estados Unidos, zona do euro, China, Índia, Rússia, África do Sul, Brasil, México, Chile, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia, Indonésia, Filipinas, Malásia, Dinamarca, Ucrânia e Arábia Saudita.

O “zero lower bound” da política monetária não só foi rompido – já há taxas de política monetária abaixo de zero, como no BCE –, como já se acumula uma montanha de US$ 17 trilhões de títulos de rentabilidade negativa nos mercados mundiais. E, no entanto, a reação da demanda na economia real continua a decepcionar, ao mesmo tempo em que se teme que haja uma bolha de renda fixa no mundo, com os BCs a alimentar as compras de papéis por preços cada vez maiores (o que resulta em rentabilidades crescentemente negativas). 

Depois de todo o gigantesco volume de munição monetária gasta em sucessivas tentativas de estímulo desde a grande crise financeira, agora banqueiros centrais como Mario Draghi, que está terminando o seu mandato à frente do BCE, dizem que os BCs não têm capacidade de resolver o problema sozinhos. Assim, exortam os governos dos paí­ses ricos a recorrerem à expansão fiscal, quando houver condições para isso. O recado é sobretudo para a Alemanha, que teimosamente absorve demanda do mundo em volumes colossais, quando poderia estar contribuindo para o poder de compra global. Agora, porém, os alemães preparam um grande pacote de gastos ambientais.

Na verdade, já há sinais de um movimento mais amplo de expansionismo fiscal. Nos Estados Unidos, foi anunciada desoneração adicional para empresas e a classe média a entrar em vigor em meados de 2020. Na Europa, ocorreu o mencionado pedido explícito do BCE para que a política fiscal seja usada, especialmente na Alemanha. Na China, com déficit primário de 5,2% do PIB em agosto deste ano, ocorre um contínuo aumento de gastos e desonerações. Medidas, anúncios e expectativas no mesmo sentido também foram registrados no México, Turquia, Indonésia, Índia e Coreia do Sul.

Porém, tanto na ofensiva monetária quanto na fiscal, o espaço está se tornando cada vez mais exíguo desde a grande crise financeira global. O tamanho dos ativos dos principais BCs do mundo – Fed, BCE, Banco do Japão e PBOC (China) – saiu de um intervalo em torno de US$ 1 trilhão a US$ 1,5 trilhão, em 2007, para a faixa entre US$ 3,7 trilhões (Fed) e US$ 5,4 trilhões (Banco do Japão) em 2019. BCE e PBOC já recuaram dos picos históricos, mas ainda estão próximos deles. Apenas o Fed realizou uma redução de balanço mais consistente desde 2017, mas ainda está muito acima dos níveis pré-crise financeira global. 

O espaço para cortar taxas básicas, evidentemente, é hoje muito menor. Entre 2007 e 2009, os fed funds recuaram 500 pontos base, mas hoje estão no nível de 1,75%-2% (175 a 200 pb). Na zona do euro, o recuo da taxa básica foi de 325 pb entre 2007 e 2009, e atualmente está em -0,5%. Na seara fiscal, dados do FMI mostram que o mundo hoje, em média, gera resultados primários piores do que em 2008, e está numa situação muito pior em termos de dívida bruta pública como proporção do PIB.

Há outras idiossincrasias na conjuntura econômica global. O dólar tende a se fortalecer ante às demais moedas, uma vez que os Estados Unidos são, entre as economias avançadas, aquela que mais resistiu às forças de desaceleração e desinflação – o que não quer dizer que o problema não tenha atingido a economia americana. Por outro lado, as bolsas continuam em território histórico de alta, o que pode ser uma exuberância ligada às baixíssimas taxas de juros (que inflam preços de ativos), mas que parece paradoxal diante das perspectivas de baixo crescimento nos anos à frente.  

Há efeitos colaterais de juros tão baixos por tanto tempo. Nota-se, por exemplo, que, neste período de juros no chão, o aumento do endividamento público foi acompanhado de redução da dívida das empresas e das famílias no Japão e no Reino Unido. Nos Estados Unidos e na zona do euro, as famílias também contraíram seus balanços e as empresas aumentaram a dívida, mas muito menos do que o setor público.

 
No caso específico dos países emergentes, o mundo de baixos juros não é necessariamente benigno. Em alguns momentos de maior aversão ao risco, mesmo o spread entre empresas junkie americanas e países emergentes cresce, tendo saído de quase zero em janeiro deste ano para próximo de 200 pb em setembro.

Finalmente, no caso dos fatores internacionais com efeito específico sobre o Brasil, há ainda a crise argentina, com impacto direto sobre a demanda brasileira via exportações.

Os efeitos sobre o Brasil desse cenário internacional, sobre o qual paira elevada incerteza, são um tema aberto ao debate. José Júlio Senna, pesquisador do IBRE especializado em política monetária, não acha que o fato de os juros estarem muito baixos e haver muita liquidez no mundo signifique que o ambiente externo para o Brasil seja necessariamente benigno. Senna vem pesquisando há algum tempo o fenômeno da desaceleração econômica global, que precede a grande crise financeira, e que pode ser encapsulado na expressão “estagnação secular”, resgatada pelo economista Lawrence Summers.

O problema, na visão do pesquisador do IBRE, provavelmente tem contornos mais sérios e profundos do que muitos julgam, sendo ligado a tendências de longo prazo de encolhimento dos investimentos e de expansão da oferta de poupança, por sua vez derivadas de fatores estruturais demográficos e tecnológicos. Na saída da crise financeira global, esse quadro combinou-se com o “debt-overhang” (excesso de dívida) para configurar uma situação em que tanto as ferramentas monetárias, convencionais ou não, como o instrumento fiscal parecem estar perdendo sua eficácia. A questão é tão difícil que já há respeitados economistas mainstream, como Ben Bernanke e Adair Turner, tratando seriamente da possibilidade extrema do “dinheiro de helicóptero”, isto é, o financiamento monetário dos déficits públicos.

Senna enxerga efeitos de “animação” de curto prazo do atual cenário internacional, pelo qual os BCs induzem o mercado a tomar risco, com queda de juros e spreads. A dificuldade, porém, é que essas são as ações e consequências que, no passado, alimentaram bolhas de ativos que, uma vez estouradas, trouxeram parte do problema que hoje se quer combater. Adicionalmente, é difícil, na sua interpretação, ver como benigno um cenário em que há temor de uma recessão global, que seria prejudicial ao crescimento de países emergentes como o Brasil. E Senna vê o baixo crescimento brasileiro como um importante fator de risco fiscal, pelo lado das receitas tributárias e do PIB, este como denominador dos indicadores de dívida pública relevantes para o mercado.

Samuel Pessôa, pesquisador associado do IBRE, tem uma visão um pouco mais positiva sobre a influência do cenário internacional na economia brasileira. Para ele, a redução do crescimento da economia mundial tem dois efeitos sobre o desempenho do Brasil. Por um lado, de fato dificulta a recuperação, principalmente do setor mais deprimido (após a construção civil), que é a indústria de transformação. Assim, efetivamente o enfraquecimento do comércio internacional atrapalha a retomada da economia.

Por outro lado, uma economia mundial mais fraca reduz os juros internacionais, o que beneficia tradicionais importadores de poupança como Brasil. Para Pessôa, devido ao fato de o principal desequilíbrio brasileiro ser o fiscal estrutural, acoplado a uma dinâmica perversa da dívida pública, a redução do custo internacional de capital é mais importante para o Brasil do que a melhora da indústria de transformação.


Esta é a Carta do Ibre de outubro de 2019, publicada na revista Conjuntura Econômica do mesmo mês.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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