Macroeconomia

O pacote Biden: estímulo fiscal ou um novo acordo?

3 mar 2021

O pacote fiscal de US$ 1,9 trilhão, apresentado por Joe Biden, foi aprovado pela Câmara e agora segue para o Senado. A proposta cercou-se de polêmica quando Lawrence Summers, ex-Secretário do Tesouro, argumentou que o pacote gerará pressões inflacionárias por significar um estímulo muito superior à necessidade da economia.

O plano Biden é, em retrospectiva, bastante significativo. Na crise financeira de 2008, Obama aprovou um pacote de estímulo de U$$ 787 bilhões e Trump aprovou um pacote de redução de impostos de US$ 1,5 trilhão em 2017. A atual estimativa de ociosidade da economia norte americana feita pelo CBO, o escritório independente de projeções orçamentárias ligado ao Congresso, é de US$ 760 bilhões nos próximos três anos. Nessa métrica, o pacote proposto é muito superior ao que a economia precisa.

A preocupação trouxe três elementos para discussão. Em primeiro lugar, o impacto da política fiscal na atividade econômica tende a ser baixo quando existem restrições de mobilidade. Por outro lado, como a vacinação em curso nos EUA tem se mostrado bastante eficaz, é provável que esse efeito seja importante durante a recuperação.

A imprecisão das estimativas de ociosidade da economia é muito elevada. O banco Goldman Sachs, por exemplo, estima que a ociosidade da economia americana é de 3 a 4 pontos percentuais (pp) do PIB, superior ao divulgado pelo CBO. Nesse caso, a ociosidade seria quase o dobro e o pacote de Biden já não parece tão desproporcional. Evidentemente, existe um risco relevante ao utilizar a maior estimativa para uma variável cuja mensuração é difícil.

A relação entre atividade econômica e inflação, conhecida como curva de Phillips, passa por uma fase revisionista. Segundo esse revisionismo, os choques de custos seriam mais relevantes para a inflação e são potencializados quando a economia se situa mais próxima do pleno emprego. A conclusão é que essa relação é mais fraca do que se imaginava.

A junção de todos esses elementos leva à conclusão de que o plano Biden pode, sim, trazer riscos inflacionários, mas com atenuantes que não podem ser desprezadas. Por conta disso, Jason Furman, professor da Universidade de Harvard, sugeriu que o pacote fosse fatiado em duas partes. A primeira seria adotada imediatamente e a segunda seria contingente à recuperação da economia norte-americana. Essa proposta é uma boa solução econômica, mas na vida real é difícil de ser adotada.

Os defensores do pacote no formato apresentado destacam sua natureza transformadora com investimentos em tecnologias mais limpas, na proteção social das crianças e na reabertura das escolas com segurança. De fato, as propostas trazem benefícios de longo prazo e isso não pode ser ignorado.

Há alguns anos os partidos Democrata e Republicano disputam a retórica da divisão de classes no EUA. O problema é real: em “Deaths of Despair”, Angus Deaton e Anne Case relatam o crescimento das mortes por suicídios e de problemas com drogas e depressão que resultam na redução da expectativa de vida nos EUA. A qualidade de vida e as expectativas de toda uma geração de trabalhadores de classe média é inferior à da geração de seus pais.

O discurso trumpista apostou no conflito com a China para justificar a perda de indústrias importantes como causa da destruição de empregos de maior qualidade. Entre medidas paliativas e bravatas, a iniciativa de maior fôlego foi a reforma tributária que beneficiou as grandes empresas com efeitos controversos sobre o nível de investimento e emprego.

Algumas lideranças do Partido Democrata sempre chamaram atenção para a piora na distribuição de renda e a apropriação do crescimento econômico dos últimos 20 anos pelos mais ricos. De fato, nesse período, o rendimento mediano nos EUA ficou praticamente estagnado.

Uma das explicações para o baixo crescimento da economia global é o fenômeno conhecido pela expressão “saving glut”, situação em que a poupança desejada é superior ao investimento planejado. Esse descasamento causa uma força baixista sobre a atividade econômica que resulta em taxas de juros muito baixas e pressões deflacionárias e reduzido nível de emprego.

Recentemente, três economistas que estudam fenômenos financeiros concluíram que o “saving glut” é um problema distributivo[1]. O crescimento da poupança nos últimos 40 anos foi gerado pelos americanos que fazem parte do 1% mais rico e esse padrão está associado à queda da poupança do governo e de outras camadas menos favorecidas da população.

O aumento do salário mínimo (que não é reajustado desde o governo Obama) de US$ 7,25 para US$ 15 por hora não conta com o apoio necessário no Senado, mas é uma proposta que tenta avançar nessa questão. Logo depois da aprovação do pacote no Congresso, várias lideranças democratas voltaram a discutir a ampliação dos impostos das maiores empresas.

Não é possível antecipar como essas novas iniciativas avançarão. Mas a discussão tributária, colocada dessa forma, irá enfrentar questões redistributivas e ajudará a esterilizar parcialmente o eventual efeito inflacionário do pacote atual. Na perspectiva de médio prazo, essa é uma forma de estabelecer um diálogo com a parcela da população que foi conquistada pela lógica trumpista. Mais do que um estímulo fiscal, o que os democratas parecem estar propondo é um “novo acordo”.


Este artigo foi publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 03/03/2020, quarta-feira.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

[1] Mian, A., Straub, L., Sufi, A. (2021). “The Saving Glut of the Rich”. NBER Working Paper 26.941.

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