Debates

O que é liberdade?

12 mar 2025

O valor da liberdade é consequência lógica da natureza mesma do ser humano.  Mas nem todas as sociedades têm o mesmo nível de tolerância às diferentes liberdades individuais. Cada uma se forma como uma “bolha” de equilíbrio.

Esta noção tem sido objeto de muita discussão recentemente.  Em especial, muito tem sido dito sobre a liberdade de expressão.  Aqui vou tratar de forma mais geral o que significa o conceito de liberdade.  Para tal, é preciso que antes sejam compreendidas as bases da teoria econômica, a ciência social com maior sucesso de explicação do mundo ao redor de nós.  A ciência econômica é baseada no indivíduo.  Cada pessoa tem suas preferências sobre as diversas ações possíveis ao longo do tempo.  Estas preferências são individuais e não podem ser sentidas por outras pessoas, uma vez que não há evidências convincentes de que a telepatia exista.  Obviamente, há maneiras de medir a intensidade de algumas sensações, através de mapas de escaneamento cerebral.  No entanto, no dia a dia as pessoas não andam conectadas com um computador que faz leituras e transmissão de suas sensações a outros indivíduos.  Assim, o que uma pessoa sente diante das escolhas que aparecem no cotidiano é absolutamente individual, subjetivo e único.  As preferências individuais podem mudar com o tempo e com o tipo de situação em que a pessoa esteja. O grande sucesso das teorias microeconômicas advém de que as preferências apresentam regularidade: variam lentamente e entre situações similares o comportamento é similar.  Uma decorrência lógica do processo de escolha individual é que, quanto mais alternativas houver para o indivíduo em uma dada situação, mais feliz a pessoa fica.  Isto é apenas lógica: se havia menos ações possíveis e há um aumento no leque de opções disponíveis, então a pessoa sempre poderia ficar com as alternativas anteriores.  Deste modo, mais opções de escolha são sempre preferíveis a menos.  Liberdade é justamente ter o máximo de alternativas disponíveis para sua própria escolha a todo instante de tempo. Quanto mais livre uma pessoa for, mais alternativas haverá à sua disposição e, portanto, mais feliz estará.

Esta decorrência lógica tem enormes implicações. Vamos citar duas, muito importantes.  A primeira delas diz que não há forma de achar uma preferência que reflita as preferências das pessoas, sempre que há pelo menos três alternativas.  Este ponto é um pouco técnico, mas sob hipóteses bem gerais e plausíveis, é impossível achar uma “preferência representativa”, ou “preferência da coletividade” ou “vontade geral”, este último termo devido a Jean Jacques Rousseau.  Em 1950, o futuro ganhador do prêmio Nobel de economia, Kenneth Arrow, mostrou que uma preferência que representasse a coletividade que obedecesse às condições plausíveis que mencionei (uma delas: se todos preferem uma alternativa A à outra B, então a preferência coletiva também prefere A à B) seria a de um dos indivíduos da população.  Em suma, só poderia haver uma preferência coletiva se esta fosse idêntica à de uma pessoa da coletividade, que por óbvio seria como se este indivíduo fosse um(a) ditador(a).  Não vou entrar em detalhes aqui.  Isto mostra que é vã a tentativa de tentar-se representar o todo com uma “vontade da população”. Tal entidade representativa do todo não existe, sempre que houver pelo menos 3 alternativas para a escolha.

A segunda consequência do princípio da liberdade individual, dado que não existe uma preferência que agrega a população, é que é impossível dizer com certeza se os cidadãos de uma sociedade preferem que as coisas sejam de um jeito ou de outro.  Em outras palavras, não se pode dizer que alguém seja capaz de ditar o que é certo ou errado para uma população.  Ainda assim, é óbvio que certas sociedades têm códigos éticos bem distintos.  Por exemplo, em sociedades muçulmanas radicais, o papel da mulher é bem distinto do resto do mundo, em que a igualdade entre mulheres e homens é a tônica.  Na China, a moral confucionista seguida pela maioria da população dita que se deve o respeito quase absoluto à autoridade governamental.  E nas sociedades ocidentais, em geral o respeito à autoridade governamental constituída admite críticas públicas e muitas vezes muito ácidas, sem que isto represente maiores problemas.  Em outras palavras, a natureza do ser humano é a mesma, mas o conceito de “certo” e “errado” é sempre dependente dos indivíduos que compõem a sociedade.  Ou seja, o código moral de uma sociedade não é único para todas as sociedades.  Uma pessoa adere ou não aos códigos éticos de uma sociedade se achar que as vantagens de ser um cidadão que segue os padrões de comportamento daquela sociedade são maiores que as alternativas existentes para este indivíduo.  Como vimos acima, um exemplo bem marcante de nosso tempo é o contraste entre a China e países ocidentais.  Chineses adotam a ética confucionista, de respeito absoluto à família e aos ancestrais e à autoridade do estado.  Para isso abdicam da liberdade de escolha de seus representantes e sempre fazem o que o partido comunista chinês e seu governo determinam.  Em contrapartida, vivem num ambiente próspero e seguro, garantido pelas autoridades chinesas.  Para um indivíduo de formação liberal, aderir completamente à moral confucionista seria bem difícil – as liberdades que são tolhidas pelo governo chinês são essenciais ao modo de vida da grande maioria dos países ocidentais.  Esta pessoa prefere muitas vezes viver com mais violência e uma certa bagunça, como aqui no Brasil, do que ser fortemente tutelada pelo estado.  A liberdade de expressão política é um dos valores que são reprimidos pelo governo chinês.

Em resumo, o valor da liberdade é consequência lógica da natureza mesma do ser humano.  Isto não quer dizer que todas as sociedades tenham o mesmo nível de tolerância às diferentes liberdades individuais.   Cada sociedade forma-se como se fosse uma “bolha” de equilíbrio.  Aqueles que estão descontentes com as normas éticas de sua sociedade escolhem entre migrar ou ficar e adequarem-se às regras lá existentes.  Mas o ponto essencial é: o que as pessoas gostam ou não não pode ser ditado a elas.  E isto é compatível com a existência de vários códigos morais e éticos distintos ao redor do mundo.  Cada um representa um equilíbrio que a população da localidade escolheu, baseado na história e nas tradições.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Este artigo foi publicado originalmente pelo Broadcast da Agência Estado, em 11/03/2025, terça-feira.

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