Macroeconomia

O que explica as diferenças na trajetória da incerteza no mundo e no Brasil?

3 dez 2019

O Indicador de Incerteza Política e Econômica Global, produzido pelos economistas Nick Bloom, Scott Baker e Steven Davis, tem apresentado uma expressiva tendência de aumento nos últimos meses, sinalizando que a incerteza mundial está cada vez maior. Por outro lado, o Indicador de Incerteza Econômica-Brasil (IIE-Br), produzido pelo FGV IBRE, parece muito mais estável. Diversos questionamentos surgem a partir da comparação entre os indicadores, cujas trajetórias desde 2000 também diferem significativamente. O que leva a essas diferenças? A incerteza no Brasil é menor do que a global? Nesta Carta, baseada em relatório da pesquisadora Raíra Marotta Bastos Vieira, do Ibre/FGV, tentaremos responder a essas questões. Ainda que as explicações não sejam exaustivas, é possível constatar uma série de fatores que ajudam a compreender o fenômeno.

Em primeiro lugar, China e Estados Unidos distorcem os resultados apresentados pelo indicador global, como se verá adiante. Adicionalmente, as janelas de padronização dos indicadores de Bloom e colegas não têm se mostrado eficazes no que concerne à manutenção do nível da série – valores muito extremos têm sido encontrados. Outro problema é que o uso de uma única fonte de notícias no componente chinês do indicador global torna-o muito mais volátil e suscetível a vieses. E, finalmente, a janela de padronização do IIE-Br corresponde a um período de alta incerteza, o que faz com que os níveis do indicador nacional tendam a ser suavizados.

O Indicador de Incerteza Global (GEPU, sigla em inglês para “global economic policy uncertainty index”) a ser analisado nesta Carta é o construído a partir de proposição exposta em paper de Bloom, Baker e Davis em 2016. O GEPU é baseado na varredura de notícias da mídia com referências à incerteza econômica. O Indicador final é uma média ponderada pelo PIB dos índices nacionais de EPU para 20 países: Austrália, Brasil, Canadá, Chile, China, França, Alemanha, Grécia, Índia, Irlanda, Itália, Japão, México, Holanda, Rússia e Coréia do Sul, Espanha, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos.

O indicador de cada um dos países presentes no GEPU foi padronizado considerando a janela de 1997 (ou o primeiro ano disponível) até 2015. Para obtenção do indicador final, foi feito um balanceamento no qual o peso dado a cada um dos países foi proporcional ao seu PIB ajustado pelo poder de paridade de compra. É relevante notar que, embora o indicador tenha sido construído para ter média 100, o GEPU hoje se encontra em um patamar acima dos 300 pontos, indicando o nível extremamente elevado da incerteza global.

Em relação ao IIE-BR, construído pelo FGV IBRE, o indicador pode ser desagregado em dois componentes: o IIE-Br Expectativa, que visa capturar a incerteza relacionada às expectativas do mercado financeiro em relação a variáveis macroeconômicas; e o IIE-Br Mídia, cujo objetivo é mensurar a incerteza a partir de informações coletadas nos principais jornais do país.

A janela de padronização do IIE-Br é de janeiro de 2006 a dezembro de 2015. Como a queda da nota de crédito do Brasil ocorreu em setembro de 2015, a janela do indicador incorpora um período de alta incerteza e, consequentemente, os níveis tendem a ser suavizados. Assim, em janeiro de 2000, início da série, o indicador estava em 85,8. Em outubro de 2019, último ponto, havia alcançado 111,1. O recorde de alta do IIE-Br ocorreu em setembro de 2015, quando alcançou 136,8. Desde então, com significativas oscilações, o indicador tem se mantido em nível elevado. Os outros picos do IIE-Br aconteceram em outubro de 2008, com 132,4, em função da crise global; e em outubro de 2002 (132,1), com a tensão eleitoral prévia à primeira vitória de Lula na corrida presidencial. Os pontos mais baixos da série foram em dezembro de 2000 (83,6) e dezembro de 2013 (85,1).

É interessante comparar, no mesmo período de 2000 até o presente, o IIE-Br com o EPU-Br, que é o componente do Brasil no GEPU. O EPU-Br foi padronizado para ter a média de 100 de janeiro de 1991 a dezembro de 2011 (ao ser incorporado ao GEPU, é feita uma repadronização considerando a janela do índice global, mencionada acima). Assim, as janelas de padronização dos dois índices, IIE-BR e EPU-Br, são muito distintas, o que explica que eles variem em intervalos de níveis muito diferentes. Ainda assim, as fotografias da evolução da incerteza no Brasil no IIE-Br e no EPU-Br têm divergências relevantes. O recorde de alta do EPU-Br ocorre em março de 2017, com 676,955. Já no IIE-Br, março de 2017 registra 111,9, significativamente abaixo do recorde de 136,8 em setembro de 2015. O EPU-Br também indica um recuo muito maior da incerteza entre o pico mais recente e o momento atual, em que o indicador gira em torno de 180.

O que poderia explicar diferenças tão marcantes entre dois indicadores referentes à incerteza no Brasil? Além dos já referidos diferentes períodos de padronização, chama a atenção o fato de que o EPU-Br utiliza uma única fonte de notícias sobre o Brasil, a Folha de São Paulo. Quando uma única fonte é empregada, o indicador fica suscetível a vieses de perspectiva da mídia escolhida. Em contraste, um amplo pool de veículos de mídia tende a neutralizar – pela contraposição de contrários – vieses, ênfases e perspectivas, dando margem a uma leitura do risco com oscilações mais suaves.

Mas existe também a questão mais ampla das diferentes trajetórias do GEPU, o índice global, e do IIE-Br no período de 2000 a 2019. O GEPU sai de 65,77 em janeiro de 2000 para 300,80 em outubro de 2019, multiplicando-se por 4,6. Já o IIE-Br vai de 85,8, em janeiro de 2000, a 111,1 em outubro de 2019, num aumento de apenas 29,5%. Será que a incerteza subiu muito menos no Brasil do que no mundo desde o início deste século? Uma primeira questão a constatar é que a janela de padronização do GEPU vai de janeiro de 1985 a dezembro de 2009, completamente distinta daquela do IIE-Br, de janeiro de 2006 a dezembro de 2015. Apenas esse fator já pode explicar muito da diferença das trajetórias dos dois índices, especialmente em relação à amplitude da sua variação.

Mas há razões adicionais para a discrepância entre o GEPU e o IIE-Br de 2000 até o tempo presente, que não significam exatamente que o Brasil se tornou um lugar muito menos incerto do que o resto do mundo. Tomando-se o EPU-US, o componente americano do GEPU, baseado em notícias dos seis principais jornais dos Estados Unidos, verifica-se que a sua trajetória é bem semelhante à do GEPU entre 2000 e 2019. E nota-se também uma evolução bastante semelhante entre o GEPU e o EPU-China. Em ambos os casos, a semelhança entre os EPUs e o GEPU se dá em termos da tendência, mas não na amplitude das variações, como se verá em seguida.

Uma primeira constatação é que esses dois países juntos representam peso de cerca de 50% no GEPU, que é construído com base nos PIBs ponderados de 20 nações. Não é coincidência, portanto, a semelhança, em termos de tendência, entre os componentes americano e chinês do GEPU e o índice global como um todo. Adicionalmente, com a guerra comercial que os afeta diretamente, tanto Estados Unidos quanto China naturalmente estão em momentos de incerteza particularmente alta, o que faz com que a evolução dos seus EPUs entre 2000 e o tempo atual registre um salto bastante intenso no período – e isto influencia fortemente o GEPU, pelo elevado peso dos dois países no índice global.

Mas há ainda um outro fator. A alta do EPU-US no período (de janeiro de 2000 a outubro de 2019) foi de 76,7%, saindo de 88,99 para 157,28. É verdade que é bem mais que a elevação de 29,5% do IIE-Br no mesmo intervalo de tempo. Por outro lado, dados os diferentes períodos de padronização e o fato de que, no momento presente, os Estados Unidos estão em plena guerra comercial, as trajetórias comparadas do IIE-Br e do EPU-US não parecem tão incongruentes assim.

Quando se analisa a trajetória do EPU-China de 2000 a 2019, entretanto, constata-se que o indicador deu um salto de 44,4 para 790,58, isto é, aumentou quase 18 vezes! A provável explicação é que o EPU-China é um indicador baseado nas notícias de apenas um jornal, o South China Morning Post, redigido em inglês. Dessa forma, deve captar o viés dessa publicação específica, que não é diluído como nos casos em que se utiliza um grande pool de veículos de mídia. Assim, o peso da China provavelmente distorce o GEPU em termos da grande amplitude das suas variações no período de 2000 a 2019.

Em conclusão, há razões técnicas na metodologia de produção dos indicadores que explicam, em boa parte, o fato de a incerteza no Brasil, captada pelo IIE-Br, ter subido bem menos do que a incerteza no mundo, registrada pelo GEPU, entre 2000 e hoje. Adicionalmente, há uma causa geopolítica, a guerra comercial entre Estados Unidos e China. Este conflito aumenta a incerteza no mundo todo, mas o efeito naturalmente é mais forte nos dois países protagonistas. E, por corresponderem a 50% do peso do GEPU, Estados Unidos e China acabam por explicar por que a alta recente no índice global de incerteza foi tão acentuada.

De qualquer forma, em relação ao Brasil especificamente, o IIE-Br parece ser particularmente consistente e sólido. Seu pico histórico, como já notado, ocorreu em setembro de 2015, quando a situação política já deteriorava rumo ao impeachment de Dilma Rousseff. Já o pico histórico do EPU-Br ocorreu em março de 2017, que não parece corresponder a um momento histórico de particular incerteza. A explicação pode ser a de que o IIE-Br-Mídia mede as referências à incerteza em seis veículos da imprensa, buscando a representatividade das regiões brasileiras – Folha de São Paulo, Valor Econômico, O Globo, Estado de São Paulo, Correio Braziliense e Zero Hora –; ao passo que o EPU-Br, como já notado, utiliza apenas a Folha de São Paulo.

O importante é que, tanto em nível global como nacional, os índices de incerteza vêm se tornando cada vez mais relevantes, por sua forte correlação (por vezes de forma antecipada) com indicadores da economia real, como investimento e crescimento. Dessa forma, é preciso entendê-los melhor, e também as suas diferenças, para que se possa aperfeiçoar essa nova e promissora ferramenta de projeções econômicas. É esse espírito que guia a equipe do FGV IBRE responsável pelo IIE-Br, chefiada pelo pesquisador Pedro Guilherme Costa Ferreira.


Esta é a Carta do Ibre de novembro de 2019, publicada na revista Conjuntura Econômica do mesmo mês.

O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa forma, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.