O tal ponto G da economia
O debate de política fiscal é bastante controverso porque existem argumentos, teorias e evidências que podem ser utilizados para justificar medidas de política econômica bastante distintas. É mais complexo ainda porque a economia do setor público envolve noções de bem-estar que variam muito a depender do interlocutor e envolve forte juízo de valor das pessoas.
Mas o problema é mais grave quando os conceitos não são utilizados adequadamente. Esse problema ocorre o tempo inteiro e é invisível ao público que não tem conhecimento especializado em economia para identificar esses erros, o que sempre gera muita confusão.
Há uma grande incompreensão entre o que é o gasto público e como essas estatísticas são traduzidas e com que finalidade para o sistema de contas nacionais, que tem como objetivo principal calcular o PIB. Esses equívocos voltaram a acontecer, por exemplo, no estudo da Secretaria de Política Econômica que compara o “PIB do governo” com o “PIB do setor privado” para argumentar que a contração fiscal praticada pelo governo foi expansionista. No cálculo do “PIB do governo”, a SPE somou o investimento público com o consumo do governo das três esferas e correlacionou com o PIB privado (que é construído a partir dos demais componentes da demanda). Prontamente, o estudo foi questionado por alguns economistas.
O PIB, pela ótica da demanda, é medido como a soma do consumo privado, consumo do governo (denotado nos manuais de economia por G de government), pela formação bruta de capital fixo ou investimento, como é mais conhecido (que inclui os investimentos públicos e privados), e as exportações menos as importações de bens e serviços. O PIB pela ótica da demanda possui correspondência pelo lado da oferta. A própria noção de produção, inclusive, possui analogia direta dada pela oferta. E, pela ótica da demanda, mostra-se como os recursos produzidos são utilizados.
O consumo do governo, o “G”, não representa o gasto do governo como normalmente é pensado, mas como o governo consome seus recursos. Ou seja, o G, nada mais é do que o consumo de recursos pela entidade governo para adquirir determinados serviços (e, nesse caso, prestá-los). O mesmo ocorre com o consumo das famílias que nada mais é do que os recursos utilizados pelas famílias para adquirir bens e serviços.
Segue, portanto, que para entender o que compõe o G, é necessário esclarecer a construção metodológica dessa variável. Nas notas metodológicas das contas nacionais, computa-se o G, majoritariamente como sendo os gastos com saúde e educação e serviços de previdência e assistência (ver nota 9 do sistema de contas nacionais).
Neste ponto, é importante separar o que é gasto (recursos nominais utilizados para consumir o serviço) do que é o crescimento real dessa despesa: a representação do “G” relevante para o cálculo do crescimento real desse componente do PIB pela ótica da demanda.
Os serviços que são consumidos servem para prestar atendimentos em saúde e educar as pessoas. Do ponto de vista do crescimento real, o índice evolui com o crescimento do número de alunos nas escolas e o crescimento dos atendimentos pelo SUS. Se o gasto nominal cresce e o número de alunos cai, o G irá cair apesar do valor gasto ter se elevado. Um exemplo: compra de tablets para escolas.
Se há uma epidemia, o número de atendimentos tenderá a se elevar, o que também elevará o G, mas isto não é uma notícia necessariamente positiva. Para o leitor interessado em maiores detalhes, tive oportunidade de detalhar de forma mais completa a metodologia da produção de serviços em saúde em uma nota técnica.
Essa incompreensão leva a vários tipos de equívocos. Em 2009, o IPEA publicou um estudo utilizando o valor adicionado da administração pública para calcular a produtividade do governo. Pelo exemplo que utilizei para o caso da saúde, é possível ver que o tema da produtividade de governo é cheio de paradoxos. Uma epidemia não pode estar associada a uma melhora da produtividade do país. Melhor conhecer os conceitos.
Se as medidas que embasam o cálculo do G são tão restritas, para onde vão os demais gastos do governo? O principal gasto do governo é com as políticas de transferências de renda e assistência. Essas despesas registram o papel distributivo do governo e são computadas como renda disponível para as famílias e, por essa razão, afetam o consumo das famílias e aí temos o segundo problema: a parcela mais importante dos gastos públicos não é utilizada para nenhum cálculo relacionado à atividade governamental finalística.
Assim, é perfeitamente possível ter os gastos públicos aumentando e estimulando o consumo do setor privado, mas o G caindo ou crescendo menos que os demais componentes do setor privado. Isso por si só, já é suficiente para concluir que não faz muito sentido utilizar o G como medida de contração (ou de expansão) fiscal desta forma e relacioná-la com a atividade econômica de outros setores. Por essa razão, os estudiosos desse tema não conduzem as pesquisas dessa forma. O próprio Alberto Alesina, que por décadas escreveu artigos concluindo que a contração fiscal era expansionista, reviu a posição no seu mais recente livro, que tive oportunidade de resenhar para o Observatório de Política Fiscal.
Mas ainda existe outro problema conceitual que está relacionado à própria ideia de se medir o PIB privado ou o PIB do governo. Como disse no início desse artigo, o conceito de PIB está muito relacionado à oferta (ou produção), mas o cálculo do PIB do governo, tal como feito, não apresenta correspondência pelo lado da oferta (nem o do setor privado). Essas coisas não são separáveis nesses termos. Quando o governo utiliza recursos para investir, de maneira geral, quem produz o bem de capital ou faz a construção é o setor privado, que é contratado para produzir esse tipo de bem ou de serviço. Por essa razão, essa abordagem está errada. Não existe PIB governo.
À propósito, no final de janeiro, o Tesouro Nacional publicou o resultado fiscal de 2019. Mostrou que houve crescimento dos gastos no ano, que saíram de 19,6% do PIB em 2018 para 19,9% do PIB em 2019. Esse aumento foi concentrado nos últimos meses do ano, porque o Tesouro conseguiu descontingenciar despesas em função das receitas extraordinárias do leilão de pré-sal. Talvez se conclua que a expansão fiscal terá ajudado na recuperação da economia nesses trimestres?
A forma correta de interpretar o estudo da SPE é que a correlação entre os componentes da demanda do governo e os componentes da demanda do setor privado se alterou, provavelmente porque parte dos fatores determinantes da demanda privada começaram a se recuperar enquanto os fatores determinantes da demanda pública continuam puxando a economia para baixo. É exatamente por isso que a nossa recuperação continua sendo a mais lenta da história.
Não é necessário justificar as medidas em função de serem expansionistas ou contracionistas como parece ter sido o caso. O Banco Central não eleva a taxa de juros argumentando que a economia vai crescer, mas sim porque é necessário para conter a taxa de inflação. Assim como na política monetária, a política fiscal possui outros objetivos. A questão é se esses objetivos estão sendo alcançados ao menor custo possível, com menor impacto sobre atividade, emprego, pobreza e combate às desigualdades. A melhor forma de recuperar o crescimento de forma sustentável será empregando bem e de forma justa os recursos que a sociedade como um todo produz.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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