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Oferta de alimentos cai com mudança climática, e preços sobem

20 mar 2025

Desaceleração da produtividade agrícola tem múltiplas causas, incluindo a mudança climática. No Brasil, soja e milho – benéficas ao País e ao equilíbrio macro – podem estar tomando algum espaço da produção direta de alimentos.

De 1980 até meados dos anos 2000, a inflação cheia e a alta dos preços dos alimentos no mundo tiveram trajetórias bem próximas, segundo dados compilados pelo Banco Mundial. A partir do segundo momento, no entanto, começou a ocorrer um encarecimento relativo sistemático dos preços de alimentos, cuja inflação correu cerca de 1 ponto percentual (pp) ao ano acima da inflação varejista total, em termos globais, com expressivo efeito cumulativo passadas quase duas décadas.

Alguns eventos mais extremos dos últimos cinco anos, como nota André Braz, pesquisador do IBRE, reforçaram esse descolamento: as disrupções de oferta causadas pela pandemia em 2020/21, uma crise hídrica extremamente severa no Brasil em 2021 e na Argentina em 2023, a invasão russa da Ucrânia em 2022 (um importante produtor global de grãos) e a conjunção dos fenômenos El Niño e La Niña em 2023/24, também com efeito particularmente forte no Brasil.

Mas o descolamento dos preços de alimentos, como já apontado, data da primeira década deste século, e não pode ser totalmente explicado, portanto, por eventos a partir de 2020.

O economista Bráulio Borges, pesquisador associado do IBRE, nota que o crescimento da produção agrícola mundial, que teve ritmo médio de cerca de 2,6% a.a. nas décadas de 1990 e 2000, desacelerou para 1,9% nos anos 2010. Esses dados são do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, que decompõe o crescimento em aumento territorial da agricultura, elevação de insumos por hectare, ampliação da irrigação e, finalmente, alta da produtividade total dos fatores (PTF) do setor. O que se nota é que a grande causa da queda do ritmo de aumento da produção agrícola global entre os anos 2000 e 2010 foi a redução do crescimento da PTF quase pela metade, de 2% a.a. para 1,1%.

Borges chama a atenção para um trabalho publicado na revista Nature em 2021, que estimou o impacto de várias mudanças climáticas (aquecimento global e outras) sobre a produtividade agrícola mundial. O objetivo foi o de estimar um contrafactual apontando qual seria a PTF agrícola atualmente caso nenhuma mudança climática tivesse ocorrido desde os anos 60.

A conclusão é que hoje a PTF do setor, em termos mundiais, é 20% mais baixa por causa das mudanças efetivamente observadas no clima. Considerando os intervalos de confiança dos modelos estimados, esses efeitos negativos das mudanças climáticas começam a emergir claramente a partir de meados dos anos 2000, coincidindo com o início do descolamento global do preço dos alimentos. Ainda segundo esse estudo, os efeitos são ainda mais negativos em partes mais quentes do globo, como no Brasil (cerca de 35% de impacto negativo), parcelas da América do Sul e África, e México.

Assim, segundo Borges, as mudanças climáticas e a degradação do meio ambiente – ambos afetando negativamente a oferta de serviços ecossistêmicos – podem representar uma importante causa da mencionada desaceleração dos ganhos de produtividade agrícola (e da produção) a partir de meados dos anos 2000.

O pesquisador do IBRE acrescenta que o Brasil, um dos mais importantes ofertantes líquidos de commodities alimentícias nos mercados globais, também teve uma forte desaceleração da PTF agropecuária neste século. De meados da década de 1970 até 2011, a PTF agropecuária nacional cresceu em torno de 4% ao ano, segundo estimativas do Ipea. De 2012 a 2021 (último dado disponível) o crescimento médio anual da PTF agro brasileira recuou para 1,5% a.a.

Não por coincidência, na visão de Borges, o Brasil tem enfrentado um período de estiagem crônica em vastas partes do seu território exatamente desde 2012. Em estudo publicado no Blog do IBRE no início de 2023, Borges decompôs o desempenho da PTF agro brasileira pós-2012 em efeitos da anomalia de precipitações e um resíduo. Ele identificou que, sem a estiagem, a PTF agropecuária brasileira desde 2012 poderia ter crescido 3,9% ao ano em média, 2,4 pp acima do ritmo efetivamente ocorrido.

Esse período de redução dos ganhos de produtividade da agropecuária brasileira coincide, por sua vez, com o descolamento para cima do preço dos alimentos em relação aos preços ao consumidor como um todo. André Braz aponta que, no Brasil, o descolamento cumulativo da evolução do IPCA cheio e de seu componente alimentação no domicílio até o final de 2024 é de 30,7%, ou de 1,18% ao ano (desde janeiro de 2020).

Além dos eventos climáticos, Braz menciona diversos outros fatores que podem ter estimulado o encarecimento relativo dos preços dos alimentos no caso brasileiro: a expressiva desvalorização cambial (estimula exportação de alimentos, além de o repasse cambial aos preços dos alimentos ser quase o triplo daquele observado na cesta média ponderada de produtos do IPCA), políticas internas que estimularam o consumo (como forte aumento real do salário mínimo e a ampliação expressiva do Bolsa-Família) e encarecimento de diversos insumos agrícolas (neste caso, também impactados pela depreciação cambial). Borges acrescenta que, em termos globais, o uso de uma parcela crescente das commodities agrícolas para produção de energia/biocombustíveis, associada em parte à transição energética, também pode estar pode detrás da alta acentuada do preço dos alimentos.

Francisco Pessoa Faria, também pesquisador associado do IBRE, traz um novo aspecto para essa discussão, olhando especificamente para diferentes culturas agrícolas no Brasil. Ele aponta que “o Brasil não está produzindo comida suficiente para o próprio País e o mundo, considerando o quanto podemos produzir”. O pesquisador, analisando vários fatores, encontra um papel significativo da troca de culturas – alimentos dando lugar a soja e milho – na diminuição da oferta de alimentos no País.

“A produção das lavouras está crescendo menos do que o necessário para atender a demanda interna e externa de alimentos voltados especialmente para consumo humano; uma parte da área plantada aparentemente está saindo dos alimentos e indo para esses produtos mais voltados à exportação”, ele aponta. Dessa forma, o aumento da área plantada de soja e milho parece se dar, pelo menos parcialmente, em detrimento da expansão da área para produção direta de alimentos humanos. No caso do arroz, há indicadores estaduais bastante reveladores sobre essa troca entre plantios.

Faria indica que, entre 2012 e 2024, o item alimentação no domicílio teve alta 162%, enquanto o IPCA Geral elevou-se 109%.  As maiores elevações ocorreram em produtos como frutas (que subiram 299%); hortaliças e verduras (246%); cereais, legumes e oleaginosas (217%); e tubérculos, raízes e legumes (188%). Produtos alimentícios mais industrializados, como bebidas e infusões (147%), enlatados e conservas (139%) e panificados (136%), tiveram altas acima do IPCA menores do que a da média do grupo alimentação no domicílio.      

O pesquisador assinala ainda que a área total plantada no Brasil aumentou de 65,4 milhões de hectares em 2010 para 96,3 milhões em 2023. Mas essa expansão se deveu basicamente à soja, que passou de 23 milhões de hectares para 44 milhões no período; e ao milho, que subiu de 13 milhões para 22,6 milhões de hectares (impulsionado também pela introdução da chamada “safrinha”, a segunda safra num mesmo ciclo anual). Já quando se excluem soja e milho, a área plantada no Brasil ficou virtualmente estável, registrando 29,1 milhões de hectares em 2010, e 29,3 milhões em 2023.

A área plantada excluindo soja e milho, aliás, caiu na maioria dos Estados brasileiros no período 2010-23 – com destaque para o Nordeste, algo que pode estar associado à seca entre 2012 e 2017, a mais severa e prolongada no semiárido nordestino em mais de 150 anos, segundo Borges. A queda na área plantada excluindo soja e milho na maioria dos estados do Nordeste foi compensada pelo avanço no restante das demais unidades da Federação, de forma a manter o total relativamente estável no período.

Tomando-se alguns produtos específicos, nota-se que a produção por habitante de quase todas as principais frutas caiu no Brasil a partir aproximadamente do início da década passada. No caso da banana, essa queda foi de 10%; no da maçã, de 5,6%; no da laranja, de 20% (afetada pelo greening, um tipo de praga); no do mamão, de 40%; e no da tangerina, de 8%. A exceção foi a uva, com aumento de 9%. É bom lembrar, como já mencionado acima, que as frutas foram o item da alimentação no domicílio com maior diferença para cima em relação ao IPCA total no período 2012-2024.

No caso das hortaliças e verduras, segundo item de alimentação no domicílio que mais cresceu acima do IPCA em 2012-2024, o IBGE não produz pesquisas conjunturais que permitam avaliar como evoluiu a produção desses alimentos ao longo do período analisado. Mas, por meio da comercialização das CEASAS e dados do CEMPRE (Cadastro Geral de Empresas, do IBGE), é possível estimar de forma indireta essa evolução – e parece razoável inferir que a oferta destes produtos esteja sendo insuficiente para atender o ritmo de crescimento da demanda.

Os dados da CEASA indicam quedas nos anos recentes da comercialização anual de couve, couve-flor e repolho. Já os números do CEMPRE apontam que o pessoal ocupado assalariado na horticultura se reduziu de 8,2 mil pessoas para 6,5 mil pessoas entre 2015 e 2022.        

O descompasso entre oferta e demanda de alimentos provenientes diretamente da agricultura pode ser fruto do aumento da frequência e intensidade das instabilidades climáticas (associado à mudança do clima), dado que as hortaliças e verduras são muito suscetíveis a essas oscilações mais extremas. Outra hipótese, que não exclui a primeira, é o aumento da demanda em função de mudança de hábitos, como a busca de alimentação mais saudável. Por fim, o crescimento das áreas urbanas, em detrimento dos “cinturões verdes”, e o encarecimento da mão de obra também podem ser fatores que restringem a produção de hortifrutigranjeiros.

Em relação aos dois principais ingredientes da alimentação diária dos brasileiros, a produção de feijão por habitante no Brasil caiu 20% e do arroz 22 % quando se compara 2024 com l 2012 (momento a partir do qual a tendência de queda da produção passa a ser mais evidente). Em ambos os casos, as comparações foram realizadas a partir de médias móveis trienais. A área plantada de arroz no Brasil passou de 2,8 milhões de hectares em 2010 para 1,6 milhão em 2024, o que reforça a ideia de que culturas de alimentos estão dando lugar a culturas de exportação, especialmente de soja e milho.

No Maranhão, no período que vai de 2009/2011 até 2021/2023, a área plantada de arroz recou de quase 500  mil hectares para menos de 100 mil hectares, enquanto a área plantada de soja subiu também de quase  500 mil hectares para 1,1 milhão. No Rio Grande do Sul, no mesmo período, a área de arroz caiu de 1,1 milhão para 900 mil hectares, e a de soja aumentou de 4 milhões para 6,4 milhões de hectares.

Faria chama a atenção também para o fato de que, embora tanto a produção de arroz como a de feijão no Brasil estejam caindo, observa-se apenas no caso do primeiro um expressivo aumento do preço relativo dentro da cesta de alimentação no domicílio – isto é encarecimento acima da média dessa cesta, que, por si só, já subiu acima do IPCA cheio. No ano passado, especificamente, o arroz foi pressionado pelas perdas expressivas de produção em função das enchentes no Rio Grande do Sul. Mas o mencionado encarecimento relativo do produto vem desde 2019.

No caso do açúcar, Faria destaca a importância do preço internacional e do câmbio na formação do preço do produto no Brasil. E, na carne, o chamado “ciclo do boi” (com redução da oferta a cada cinco anos, aproximadamente) levou à alta atual dos preços.

Mas o pesquisador chama a atenção para o papel, na formação do preço da carne, do grande aumento da exportação do produto desde 2017, enquanto a produção nacional se manteve relativamente estável. Em 2017, a disponibilidade de carne bovina para consumo doméstico foi de 39,9 kg/habitante, indicador que caiu para 36,1 em 2023 – o número mais baixo desde pelo menos 2013. Braz acrescenta que a produção de carne também vem sendo afetada pelas mudanças climáticas, com destaque, em 2021, para o dano às pastagens causado pela forte seca naquele ano.

Em conclusão, a alta dos alimentos – que têm peso maior na cesta de consumo dos pobres – no Brasil e no mundo é um processo que já tem quase duas décadas, com muitos e complexos fatores explicativos. Destacam-se, porém, as indicações de que as mudanças climáticas, com aumento de eventos extremos e maior imprevisibilidade meteorológica, provocam perturbações crescentes na oferta de commodities e produtos alimentícios, num processo que afeta diversas partes do globo e, de forma bastante nítida e relevante, o Brasil.

Diante disso, é importante recolocar na agenda pública políticas de suprimento e segurança alimentar, com foco particularmente forte nas culturas que produzem diretamente alimentos que vão para a mesa dos brasileiros. Monitoramento da produção, recomposição de estoques públicos, silagem, vias de escoamento, crédito mais focalizado nessas culturas (e não naquelas altamente rentáveis) etc. devem voltar a ser temas prioritários do governo em relação a esses produtos.

É importante frisar, contudo, que não se trata de restringir ou ampliar gravames sobre as grandes culturas de exportação, como a soja, que trazem muitos benefícios ao país, na forma de influxo de divisas e da consequente estabilização macroeconômica propiciada por elas, bem como o barateamento das rações, que são insumo nas cadeias de proteínas animais. O foco deve ser o de estimular a produção adicional de alimentos, e não dificultar outras áreas do agronegócio. Não se trata de um jogo de soma zero.

Finalmente, dado o crescimento médio dos preços dos alimentos consistentemente acima da média da cesta de produtos do IPCA há mais de uma década, e as fortes oscilações daqueles preços, é o caso de se pensar também em como esse fenômeno afeta o regime de metas de inflação.

Em suma, a alta dos alimentos não é um fenômeno passageiro, e as políticas públicas deveriam dar conta deste fato.


Esta é a Carta do IBRE de março de 2025, da Conjuntura Econômica.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Comentários

arnoldo de campos
muito bom!!! mereceria um estudo específico e uma reflexão mais aprofundada a relação entre inflação dos alimentos, metas de inflação e política monetária. a inflação dos alimentos deveria ser melhor estudada pelo Banco Central. A política monetária é inócua ou, é mais provável, tem efeitos negativos em relação a inflação dos alimentos.
João Paulo
Muito bom mesmo!!!

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