Fiscal

Orçamento público, política econômica e a importância do patrimônio líquido do governo federal

29 mai 2025

A mudança impressiona: em 2014, o governo federal registrou patrimônio líquido positivo de R$ 118 bilhões, equivalente a 2% do PIB. Em 2024, o PL atingiu um valor negativo de R$ 5,9 trilhões, o que equivale -50,3% do PIB.

O orçamento público é o principal instrumento de política econômica de um país. Nele, estabelecem-se incentivos para poupar, consumir, investir, trabalhar e produzir, influenciando diretamente a acumulação e a utilização dos fatores de produção. No processo orçamentário em que a classe política discute as prioridades do país estabelecem-se as bases institucionais que fortalecem a democracia e promovem o crescimento econômico[1].

O governo encaminhou o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2026 com duas informações que merecem atenção. A primeira publicada no Anexo IV.2 de metas fiscais anuais mostra que o novo arcabouço fiscal combinado com as atuais regras orçamentárias inviabilizará o pagamento das despesas discricionárias que devem se tornar negativas a partir de 2027. As regras fiscais deverão ser rediscutidas e uma nova estratégia de ajuste será desenvolvida.

A questão pode ser resumida na tabela a seguir que mostra como as despesas discricionárias devem se tornar negativas a partir da combinação entre o crescimento das despesas obrigatórias, a incorporação dos precatórios, que atualmente são pagos por fora das regras fiscais, e a limitação de crescimento das despesas previstas no arcabouço fiscal.

Tabela 1 – Projeções das despesas discricionárias líquidas

 

A segunda informação publicada no Anexo IV.8 é a evolução do patrimônio líquido (PL) do governo federal, principal indicador de solvência de qualquer agente econômico. O PL incorpora todos os ativos e passivos do governo e apresenta uma informação mais completa do que a dívida pública. Um item importante dos passivos é o resultado atuarial da previdência dos servidores e nos ativos encontra-se o valor da participação governamental em empresas e o ativo imobilizado. Ambos não são registrados nas estatísticas de dívida.

Diferentemente do setor privado, o PL governamental pode ser negativo sem que o governo se torne insolvente. De fato, o PL é negativo em todos os países do G7. O governo pode elevar a tributação e possui monopólio sobre a emissão da moeda o que o torna um agente distinto dos demais. Mesmo assim, o PL importa: alguns estudos indicam que os custos de emissão de dívida são influenciados pelo PL nos países desenvolvidos[2]. Um estudo do FMI avalia que a gestão do PL possui impactos positivos no controle fiscal a longo prazo com melhor combinação de investimento e crescimento[3].

A PLDO apresenta uma serie estatística curta da evolução do PL. Mas o Balanço Geral da União (BGU) é publicado desde 2014 e foi possível consolidar os dados e avaliar os principais fatores que determinaram sua evolução. A tabela, a seguir, apresenta a evolução do PL, ativos e passivos federais tanto em percentual do PIB quanto em R$ bilhões e uma comparação com os indicadores de dívida.

Tabela 2 - Evolução do PL – Governo Federal
(R$ bilhões e % do PIB)

Fonte: BGU e BCB.

 

A evolução do PL do governo federal desde 2014 impressiona. Naquele ano, o governo federal registrou PL positivo de R$ 118 bilhões, equivalente a 2% do PIB. Em 2024, o PL atingiu um valor negativo de R$ 5,9 trilhões, o que equivale -50,3% do PIB. Existem dois momentos de piora significativa: em 2015 quando o PL se tornou negativo em R$ 1,4 trilhões (-23,8% do PIB) e na pandemia quando atingiu – R$ 4,4 trilhões (-58,4% do PIB, o pior indicador da série).

Várias revisões metodológicas impactaram profundamente a estimativa do PL no período. Isso evidentemente, cria sérios empecilhos para uso imediato como âncora fiscal. Mas o comportamento mais estável do indicador nos últimos anos sugere que a qualidade da informação melhorou bastante e que os dados são mais confiáveis para uma avaliação de solvência governamental e como tratar esse problema.

Em um esforço de pesquisa apresentamos um resumo exemplificativo de anos selecionados dos tipos de ajustes metodológicos que o cálculo do PL tem sofrido[4]. Para os demais anos, a apuração mais detalhada ainda está sendo realizada.

Tabela 3 - Principais alterações metodológicas 2017-2020

Fonte: BGU.

 

Como conclusão geral, vale observar que a dívida cresce a uma velocidade superior aos ativos e o tamanho do passivo previdenciário deveria preocupar bastante os gestores públicos. A judicialização tem afetado bastante as contas governamentais e deveria ser um foco de atuação para melhorar as políticas públicas.

Os créditos tributários são um ativo importante e uma boa gestão pode melhorar a situação patrimonial do governo. Atualmente, a expectativa de recuperação dos créditos tributários gira em torno de 16%. São bem-vindas, portanto, as várias iniciativas tomadas nessa área desde a reforma tributária até os instrumentos de renegociação. Mas a piora fiscal vem acompanhada de desinvestimentos importantes.

Apesar de, atualmente, não ser aconselhável seu uso como âncora fiscal, a abordagem patrimonial como referência de gestão fiscal e a contabilidade por competência pode corrigir uma série de distorções presentes na política fiscal brasileira. O primeiro ponto a observar é que o foco em controlar déficits e dívidas a partir das regras fiscais convencionais ignoram aproximadamente 3/4 do balanço governamental, segundo levantamento feito por Ball et al (2024)[5].

Dessa forma, o sistema de regras fiscais atual adotado em vários países tem muito pouco a dizer sobre ativos e passivos não ligado a dívida. Ao focar em déficits e dívidas desestimulam a acumulação de ativos (investimentos) o que atua contra a justiça intergeracional. A evidência empírica da União Europeia e do Reino Unido indica que as regras fiscais não são suficientes para garantir resultados fiscais, mas são efetivas na margem promovendo alguns ajustes em receitas e despesas. Esse resultado parece valer para o Brasil também.

A Nova Zelândia foi o país que mais avançou no uso do PL como indicador de solvência e no uso dessa informação para estabelecer o controle fiscal. Há três aspectos a se ressaltar:

  • Aumento do controle financeiro: publicação de relatórios financeiros mensais (maior parte dos países publica dados anuais) ampliando o acompanhamento e a transparência.
  • Gestão de ativos: classificação dos ativos para definição de uso, gestão e monitoramento. Um órgão auditor reporta ao Parlamento uma avaliação da gestão por ativos recomendando melhorias.
  • Regras fiscais: metas para o resultado operacional por competência (antes de ganhos e perdas) e limites para o PL e a dívida líquida.

 

Uma consulta ao Tesouro da Nova Zelândia permite observar o modelo atual de regras fiscais que combinam objetivos quantitativos com regras de procedimento que guiam a conduta geral dos gestores da política fiscal.

Tabela 4 – Regras Fiscais na Nova Zelândia

Fonte: NZ Treasury.

 

Após a reforma fiscal da Nova Zelândia, o PL começou a crescer de forma substancial indicando a melhora da posição de solvência do país. A queda do PL só ocorre em períodos críticos como durante a crise financeira de 2008 e a pandemia em 2020. É o que se espera de uma gestão fiscal equilibrada com capacidade de realizar uma política efetivamente anticíclica.

 

 

Entre as outras distorções existentes no atual sistema decisório de política fiscal e que a referência patrimonial e contabilidade por competência podem corrigir está no viés em favor de despesas correntes contra despesas de capital. Quando o governo se endivida para investir, ele acumula um ativo e mantém o PL constante. Quando se endivida para custear despesas correntes, o PL cai e o país fica mais “pobre”. Tais decisões são diferentes da perspectiva da saúde financeira de um país. O sistema deveria promover de forma mais equilibrada incentivos para acumulação de ativos públicos. A regra de ouro oriunda da literatura de regras fiscais tenta promover, mas de forma muito imperfeita[6].

Uma política pública nova deveria informar sobre seu custo no presente e no futuro. A abordagem de caixa utilizada atualmente não permite essa avaliação. Existem vários exemplos em que decisões são tomadas considerando apenas o espaço fiscal disponível no presente sem considerar o comprometimento do orçamento nos próximos períodos possibilitando gastos ineficientes e sub financiamento de políticas importantes.

Um exemplo importante da distorção entre caixa e competência está na política de crédito que envolve definir uma política com baixo custo no presente e elevado custo no futuro, comprometendo o espaço fiscal dos anos seguintes. A reforma da política de crédito nos EUA realizada em 1990 determina que sejam computados todos os custos intertemporais envolvidos nessa política e o resultado é publicado e atualizado todo o ano nos anexos orçamentários[7].  

Nesses anexos são divulgados: a taxa de subsídio em valor presente estimada a partir dos parâmetros das operações, orçamento disponível e a decomposição dos subsídios a partir dos seus principais determinantes: taxa de juros, inadimplência e outras taxas. A cada ano esses cálculos são atualizados a partir dos parâmetros efetivos e é possível acompanhar o custo das políticas ao longo do tempo.

Um exemplo prático dessa discussão para o Brasil está na política de valorização do salário mínimo instituída em 2023 e alterada no final de 2024 por ausência de espaço fiscal. Também está representada na dificuldade que o governo tem tido de incorporar algumas políticas financiadas por fundos no orçamento.

O financiamento de políticas públicas via fundos é um grande desafio. O governo atua com vários fundos que são entidades separadas relacionadas entre si. O uso de múltiplos fundos torna o impacto da política fiscal bastante difícil de ser acompanhado. Em uma abordagem patrimonial essas operações são incorporadas ao resultado governamental e aumentam a transparência das ações do governo que tem condições de avaliar de forma precisa o impacto de suas políticas.

O foco no patrimônio líquido amplia a importância de uma boa gestão dos ativos. Administrar bem os ativos significa criar valor e ampliar a riqueza governamental. Para administrar os ativos reais de maneira apropriada é importante conhecê-los primeiro. Vários países publicam relatórios tempestivos com técnicas modernas de avaliação de seus ativos. Se não há conhecimento adequado sobre os ativos, provavelmente serão mal administrados.

Uma gestão profissional que gere valor em ativos reais comerciais pode ampliar a riqueza e abrir espaço fiscal para financiar as políticas públicas e elevar os resultados fiscais, além de trazer efeitos econômicos positivos por meio de ampliação da concorrência e maior eficiência econômica. Esses instrumentos são conhecidos como Public Wealth Funds e existem experiências bem-sucedidas tais como o Temasek[8] de Singapura e o Solidium na Finlândia. Vários países da OCDE têm aprimorado a gestão de ativos públicos.

O Solidium foi criado em 2008 para administrar a participação acionária do governo em empresas de capital aberto. O retorno total do portfólio administrado pela Solidium é de 10% a.a. desde a sua criação. O valor total da Holding saiu de €5,6 bilhões para €14 bilhões, incluindo os €7 bilhões pagos em dividendos ao Estado[9]. A Senaati Properties, também da Finlândia, administra 8.700 propriedades públicas com valor de mercado de €4,8 bilhões, vinculada ao Gabinete do Primeiro Ministro. Essa vinculação de natureza mais política torna a governança desse fundo um pouco mais frágil do que a gestão do Solidium.

Ball et al (2024) apresentam um pequeno roteiro para aperfeiçoar a gestão de ativos governamentais. O 1º passo é o mapeamento de ativos. Muito ativos estão “escondidos” na administração:

  • Falta de informação pode ocorrer porque os gestores associam a informação a perda do ativo – uma expectativa de privatização sem garantia de uso do recurso.
  • Dificuldade de mensurar o valor apropriado: imóveis, máquinas, terra que nem sempre possuem um mercado funcionando.

É importante assegurar a completude da informação e o desenvolvimento de metodologias de precificação de ativos tal como o uso de dados espaciais aliados as características do imóvel para estimar o seu valor. Uma sugestão dos autores para ativos imobiliários é o uso de georeferenciamento.

O 2º passo é institucionalizar a gestão da riqueza pública. O uso de ativos públicos para políticas públicas de forma mais direta distorce o funcionamento do mercado e reduz a competição e a eficiência econômica. Normalmente, os ativos acabam mal administrados[10]. Existem pesquisas da OCDE que mostram o modelo de gestão centralizada, baseada em Public Wealth Fund está ganhando adesão entre os países membros com destaque para as experiências mencionadas.

A emergência de novas temáticas com reflexos fiscais, como envelhecimento populacional, gestão de recursos naturais e transição energética combinada com a necessária correção de distorções remanescentes de uma cultura fiscal contraproducente em um contexto de evolução das regras fiscais é um convite para a reflexão.

Uma eventual rediscussão de regras fiscais deve criar condições para uma nova cultura fiscal ao invés de se limitar a discutir apenas qual deve ser o limite numérico do gasto ou qual o valor adequado da meta fiscal que nunca se atinge. Isso importa, mas é uma abordagem insuficiente e que não tem gerado resultados adequados para resolver os problemas fiscais da atualidade. Parafraseando Reinhart e Rogoff, é preciso que desta vez seja diferente.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 


[1] O autor agradece a Isabela Duarte pela assistência de pesquisa. Esse artigo é uma versão ampliada da publicada pelo Jornal Valor Econômico de 26/05/2025 cujo conteúdo foi apresentado ao grupo de reforma orçamentária do CCiF, disponível em: https://observatorio-politica-fiscal.ibre.fgv.br/reformas/orcamento/reforma-orcamentaria

[2] Ver, por exemplo, Koshima, Y., Harris, J., Tieman, A. De Sanctis, A. (2021). “The Cost of Future Policy: Intertemporal Public Sector Balance Sheets in the G7”. FMI WP 128.

[3] Chai, H., Harris, J. e Tieman, A. (2024). “Beyond debt: Net Worth Fiscal Anchors”. FMI WP 137.

[4] Para uma análise mais detalhada ver: https://periodicos.fgv.br/cgpc/announcement/view/275

[5] Ball et al. (2024) Public Net Worth: Accounting, government and democracy. Palgrave Macmillan.

[6] Para uma análise das limitações da regra de ouro com ênfase no caso brasileiro ver, Pires (2019). Uma análise da regra de ouro. Brazilian Journal of Political Economy, 39, jan-Mar.

[10] Ver, Detter, D. e Folster, S. (2015). “The public wealth of nations”. Palgrave Macmillan.

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