Os desafios do mercado de trabalho no Brasil, no curto, médio e longo prazos
A taxa de desemprego no Brasil deve cair de forma muito lenta até o final de 2020, de acordo com as projeções dos especialistas em mercado de trabalho do FGV IBRE. No cenário base, o desemprego da Pnad Contínua (PnadC) cai de uma média de 12,2% em 2018 para 11,8% em 2020. No otimista, a queda é para 11,3%, e, no pessimista, a taxa mantém-se em 12,2% em 2020. Essas projeções baseiam-se nos modelos do IBRE e têm implícitas hipóteses sobre indicadores econômicos relevantes. O cenário base pressupõe uma taxa de crescimento que se estabiliza em 2% ao longo da maior parte do período considerado. O pessimista trabalha com um ritmo cerca de 0,5 ponto percentual inferior, e o otimista, 0,5 p.p. superior. De forma simplificada, é possível dizer que um crescimento médio de 1,5% ao ano mantém a taxa de desemprego estabilizada no elevadíssimo nível atual, em torno de 12%. Cada ponto percentual a mais de crescimento médio, a partir de 1,5%, reduz o desemprego em 0,5 ponto percentual por ano, tendo como horizonte 2020.
A projeção da trajetória de desemprego pelo IBRE, preocupante do ponto de vista do cenário político-econômico para o governo que assumirá as rédeas do país em menos de um mês, deriva do crescimento da população ocupada (PO) até 2020 ser, em boa parte, contrabalançado pela expansão prevista da população economicamente ativa (PEA). É preciso levar em consideração, entretanto, que o mercado de trabalho sofrerá o impacto de duas reformas legislativas já aprovadas, a trabalhista e as mudanças na terceirização, que poderão em tese levar a cenários diferentes daqueles até aqui descritos.
A reforma trabalhista, aprovada e sancionada (sem vetos) em julho de 2017, entrou em vigor em novembro daquele ano. No mês em que foi sancionada, o governo editou uma medida provisória que alterava 17 artigos. No entanto, em abril de 2018 a MP “caducou”, ou seja, não foi votada pelo Congresso a tempo de ganhar validade de lei, o que mantém certas dúvidas sobre o formato final em que a reforma será consolidada – e para isto também conta a jurisprudência que está sendo formada à medida que o novo contexto legal é posto em prática. Com isso, as dúvidas vão sendo dirimidas nas últimas instâncias do Judiciário.
Pode-se resumir a reforma trabalhista em função de sua ação em três pilares: sindical; judicial; e contratual. No pilar sindical, as principais inovações são o fim do imposto sindical obrigatório; a prevalência do negociado (coletivamente, com sindicatos) sobre o legislado; e o fim da exigência de que a homologação da rescisão contratual tenha participação dos sindicatos. O segundo pilar são as medidas para reduzir a judicialização. Nele, destacam-se a obrigatoriedade de o trabalhador comparecer a todas as audiências do seu processo; a obrigação de arcar com os custos advocatícios do empregador caso perca a ação; a possibilidade de multa caso comprovada a má-fé; a limitação a oito anos do prazo para andamento das ações trabalhistas; e a definição do montante financeiro exato das demandas no início dos processos. Finalmente, do pilar de flexibilização de contratos constam a possibilidade de o trabalhador ser contratado como intermitente; a possibilidade de “home office” (trabalho remoto), em que o controle é feito por tarefa; e a extensão do limite de jornada máxima do trabalho parcial de 25 para 30 horas semanais.
As primeiras evidências mostram que o pilar sindical já registrou impactos substanciais. A arrecadação com imposto sindical caiu de cerca de R$ 2 bilhões de janeiro a setembro de 2017 para aproximadamente R$ 250 milhões no mesmo período de 2018. Também parecem estar surtindo efeito as medidas para reduzir a judicialização, com quedas em torno de 70 mil nas ações mensais de janeiro a setembro (o número total variou em torno do intervalo de 100 mil a 150 mil em 2018); e por volta de 40 mil nos processos por dano moral (com o total mensal caindo, no ano de 2018, para a faixa de 20 a 30 mil), também entre janeiro e setembro. No pilar da flexibilização, entretanto, os impactos parecem bem mais tímidos. O saldo acumulado de vagas de emprego em tempo parcial ou intermitente estava em torno de 50 mil, comparado a cerca de 300 mil para os demais tipos de contrato, da entrada em vigor da reforma (julho de 2017) até outubro de 2018.
Os impactos de uma reforma trabalhista, entretanto, só podem ser devidamente avaliados no longo prazo. Para tentar projetar esse efeito sobre a PEA, a PO e o desemprego, depois que tiverem transcorrido vários anos da reforma trabalhista brasileira, Bruno Ottoni, pesquisador associado do IBRE, e Tiago Barreira, seu coautor, trabalharam com um intervalo entre os impactos das reformas australiana (1994) e alemã (2003). A ideia é que o mercado de trabalho brasileiro se situa num nível de rigidez intermediário entre o australiano (inferior) e o alemão (superior), de acordo com o indicador de rigidez trabalhista de Botero e Djankov (os índices são de 2004).
O trabalho determina o impacto das reformas australiana e alemã por meio de uma comparação com um cenário contrafactual no qual estas não tivessem ocorrido, o que é feito com a utilização de um “país sintético” para cada caso, de acordo com um tipo de metodologia bem estabelecida na literatura econômica. Os resultados indicam, no caso alemão, um crescimento de 6% da PEA, de 10,2% da PO, e uma queda de 3,47 pontos percentuais da taxa de desemprego na comparação da média dos dez anos pré-reforma com os 12 anos pós-reforma. Já para a Austrália, registrou-se uma expansão de 3,4% da PEA e de 5,7% da PO, com queda de 1,17 p.p. no desemprego, na comparação das médias dos 13 anos anteriores à reforma com os 12 anos posteriores. Assim, Ottoni e Barreira projetam que a reforma trabalhista brasileira reduza o desemprego no longo prazo (12 anos) em algo entre 1,2 p.p. e 3,5 p.p., sendo que em cinco anos parte deste efeito já poderá ser sentido. Os economistas frisam, entretanto, que os efeitos mais estruturais da reforma trabalhista ainda estão pendentes de definições legais, como o da reedição (ou não) da MP que a regulamentava, a jurisprudência e eventuais aperfeiçoamentos do contrato intermitente.
No caso da terceirização, um projeto de lei foi aprovado em março de 2017, sendo parcialmente sancionado pelo presidente Michel Temer no mesmo mês. Em agosto de 2018, o Supremo Tribunal Federal votou e aprovou a legalidade da terceirização das atividades-fim, prevista na lei. Em setembro, foi publicado um decreto expandindo a possibilidade de terceirização das atividades-fim para o setor público. Esse dispositivo aproxima as práticas brasileiras das normalmente prevalecentes em outros países. Levantamento de 2015 da Deloitte e da Confederação Nacional da Indústria (CNI) com uma amostra de 17 países, incluindo Alemanha, Austrália e Noruega, indicou que todos admitem a terceirização irrestrita – que também se tornou possível no Brasil com a abertura da prática às atividades-fim.
Já na questão da responsabilidade subsidiária, adotada pelo Brasil, o país caminha na contramão do observado em outros países, que tendem a adotar a responsabilidade solidária. Na responsabilidade subsidiária, só é possível ao trabalhador processar a empresa contratante de uma terceirizada (para a qual está formalmente vinculado) depois de esgotados em última instância os recursos contra esta. Na responsabilidade solidária, o trabalhador pode acionar diretamente a contratante da empresa terceirizada. Na visão de Ottoni, a terceirização irrestrita pode ajudar no aumento de competitividade das empresas brasileiras, mas a manutenção da responsabilidade subsidiária traz o risco de provocar pressões políticas contrárias à terceirização.
Uma última questão a afetar o mercado de trabalho brasileiro, com efeitos em prazos bastantes longos, é a de automatização e robotização. O Brasil, na verdade, está pouco avançado na automatização, visto que possuía, em 2016, cerca de dez robôs para cada 10 mil trabalhadores da indústria, enquanto a média mundial estava em 74. Ainda a título de comparação, os cinco países mais robotizados tinham, em 2016, uma penetração média de, aproximadamente, 400 robôs por 10 mil trabalhadores da indústria. Vale registrar, o crescimento mais acelerado nos últimos anos tem sido o da China.
Os números indicam que o Brasil não está bem posicionado na automação, o que talvez seja negativo para a produtividade, mas em tese adia os possíveis efeitos colaterais indesejados sobre o mercado de trabalho. Na verdade, contudo, quando se fazem projeções a prazos mais longos, verifica-se que o Brasil, acompanhando o mundo, deve perder uma proporção significativa de postos de trabalho devido à automação, pela substituição do trabalho humano pela máquina. A grande dúvida é até que ponto essas perdas serão substituídas por novas ocupações, geradas inclusive pelo próprio advento da automação maciça, à qual possam ser complementares.
Inúmeros trabalhos estimam a proporção de postos de trabalho que podem ser substituídos por máquinas, como o de Frey e Osborne, cuja projeção chega a 47% do total, e o da Mckinsey, como 46% – em ambos os casos com referência à economia dos Estados Unidos. Nos países em desenvolvimento a proporção de empregos automatizáveis costuma ser ainda mais expressiva. Por exemplo, o Banco Mundial calculou, utilizando as probabilidades de Frey e Osborne, que a proporção de empregos automatizáveis seria: (i) de 63% no Uruguai, (ii) de 64% no Paraguai e (iii) de 65% na Argentina. Já a Mckinsey estimou uma redução de 50% no caso brasileiro. Como já mencionado, o efeito líquido depende da quantidade de novos postos de trabalho que serão criados em grande parte em função da própria automação.
Outra questão é o horizonte temporal dessas mudanças. Por um lado, Frey e Osborne defendem, no caso dos Estados Unidos, que a automação deve demorar entre dez e 20 anos, para atingir níveis elevados. Já no caso brasileiro, os referidos autores não oferecem um prazo específico, mas afirmam, em linhas gerais, que o processo de automação deve demorar mais tempo para ocorrer, nos países em desenvolvimento, do que o projetado para o caso dos Estados Unidos.
Por outro lado, a Mckinsey defende que a automação deve demorar entre 20 e 50 anos para atingir níveis expressivos, porém este horizonte seria tanto para países desenvolvidos quanto para aqueles que ainda estão em desenvolvimento. A única distinção feita pela Mckinsey é que, enquanto nos países desenvolvidos a automação deve atingir níveis elevados já nas primeiras décadas da janela estipulada de 20 a 50 anos, nos países em desenvolvimento este processo só deve ocorrer nas últimas décadas desta janela.
De qualquer forma, mesmo que a automação não seja um problema que afeta o curto prazo, ela deveria – dada a profundidade da mudança estrutural que representa – entrar na agenda de política pública do presente. Ottoni nota que políticas passivas de reação à destruição de postos de trabalho pela automação, como a renda mínima, são rapidamente implementáveis e deveriam ser vistas com um último recurso. Já políticas ativas de pareamento (“juntar” postos de trabalhos vagos e trabalhadores desempregados que sejam compatíveis) e de treinamento levam mais tempo para serem implementadas, e deveriam começar imediatamente.
Em resumo, o mercado de trabalho brasileiro apresenta desafios de curto, médio e longo prazo. As projeções do desemprego do IBRE para os dois primeiros anos do novo governo não são animadoras, mas poderiam melhorar caso se retome um ritmo de crescimento econômico bem acima das projeções atuais. Adicionalmente, os efeitos da reforma trabalhista e da terceirização irrestrita podem dar um impulso adicional ao mercado de trabalho, não incluído naquelas projeções, mas dependente em parte da cristalização legal mais definitiva de ambas as medidas, que daria a imprescindível segurança jurídica aos empregadores. Já num horizonte mais de longo prazo, existe a incontornável questão do efeito da crescente automação e robotização sobre o mercado de trabalho, para o qual o país deveria começar a se preparar.
O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.
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