Cenários

Os riscos do plano Brasil Soberano

26 ago 2025

Plano Brasil Soberano tenta mitigar o tarifaço com crédito e incentivos. Porém, sem metas claras, pode gerar dependência e ineficiência. Para ser eficaz, é preciso estratégia nacional de internacionalização, com foco nas MPMEs.

 

 

Resumo

O Plano Brasil Soberano busca mitigar o impacto do tarifaço norte-americano com crédito, incentivos fiscais, compras públicas e diplomacia comercial. Apesar de buscar proteger a oferta e o emprego no curto prazo, carece de estratégias robustas para diversificar mercados e produtos, dificultando a substituição rápida das exportações aos EUA. Sem metas claras e mecanismos de saída, há risco de dependência e ineficiência, preservando empresas pouco produtivas. Para ser eficaz, deve incluir uma estratégia nacional de internacionalização, com apoio especialmente ás MPMEs, foco setorial, metas de abertura de mercados e monitoramento independente, transformando a resposta emergencial em estratégia competitiva sustentável.

Introdução

O Plano Brasil Soberano, anunciado em agosto de 2025, configura-se como a principal resposta emergencial do governo federal ao tarifaço norte-americano, que elevou em até 50% as tarifas de importação sobre uma ampla gama de produtos brasileiros, afetando desde bens manufaturados de alto valor agregado até commodities processadas. O choque tarifário, de caráter abrupto e abrangência significativa, impôs a necessidade de uma ação coordenada para preservar a competitividade externa, sustentar o nível de emprego e atenuar potenciais repercussões sobre o equilíbrio macroeconômico.

A arquitetura do plano está organizada em três eixos estruturantes: o fortalecimento do setor produtivo, com foco em crédito, incentivos fiscais, compras públicas, facilitação logística e uso de instrumentos de seguro à exportação e ampliação do sistema nacional de garantias; a proteção aos trabalhadores, por meio de mecanismos de preservação de postos de trabalho e de amortecimento de renda; e a diplomacia comercial, englobando negociações bilaterais e multilaterais.

De acordo com a narrativa oficial, trata-se não apenas de uma medida defensiva de curto prazo, mas de um movimento para “reconstruir e fortalecer o sistema nacional de financiamento e seguro à exportação”, reduzindo a vulnerabilidade estrutural a choques externos. Contudo, a experiência histórica e as restrições fiscais e institucionais do país impõem questionamentos sobre a viabilidade e a eficácia dessa agenda.

Neste artigo, analisamos de forma integrada o detalhamento das medidas em cada eixo, explicitando objetivos, instrumentos e público-alvo, e discutimos os riscos de execução, como sobreposição de incentivos, gargalos administrativos e possíveis alocações ineficientes de recursos. Também examinamos os potenciais efeitos colaterais sobre a estrutura produtiva e as finanças públicas, bem como as implicações macroeconômicas. Por fim, discutimos as condições necessárias para que o Plano Brasil Soberano atinja seus objetivos declarados, destacando a importância da coordenação interinstitucional e da calibragem dos instrumentos para evitar distorções de mercado, de modo a maximizar seu potencial de mitigação dos impactos do tarifaço sem incorrer em custos fiscais desproporcionais ou retornos estruturais limitados.

Principais Medidas do Plano

Para compreender o alcance e os limites do Plano, é importante detalhar as ações anunciadas pelo governo. As medidas têm caráter emergencial, mas também procuram sinalizar um esforço mais amplo de proteção às exportações, preservação de empregos e diversificação de mercados. A seguir, descrevem-se, os principais componentes do pacote.

A primeira medida é a criação de uma linha de crédito emergencial no valor de R$ 30 bilhões, operada com recursos do Fundo de Garantia à Exportação (FGE). O objetivo é oferecer financiamento com juros reduzidos e garantias públicas para empresas mais dependentes do mercado norte-americano. Micro, pequenas e médias empresas (MPMEs) terão acesso facilitado por meio de fundos garantidores reforçados, como o Fundo Garantidor de Comércio Exterior (FGCE), o Fundo Garantidor para Investimentos (FGI) e o Fundo Garantidor de Operações (FGO). Além do valor citado acima, serão aportados nesses fundos de crédito mais 4,5 bilhões de reais. O desembolso desse crédito está condicionado à manutenção dos postos de trabalho, vinculando o benefício à preservação do emprego.

No campo tributário, o plano prevê alívio fiscal às exportações. Isso inclui o diferimento de impostos federais por dois meses para empresas afetadas; a prorrogação, por um ano, do prazo de exportação no regime de drawback (mecanismo que isenta ou suspende tributos incidentes sobre insumos importados usados na produção de bens exportados), evitando penalizar exportadores que não consigam embarcar no prazo original; e a elevação temporária das alíquotas do Reintegra (Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras). Com isso, grandes e médias indústrias exportadoras passam a receber 3,1% de ressarcimento, enquanto micro e pequenas empresas poderão receber até 6%, aumentando a devolução de tributos pagos ao longo da cadeia. Nessa parte de ampliação do desconto de impostos sobre produtos exportados foram reservados outros 5 bilhões.

Outra frente é a de compras governamentais emergenciais. União, estados e municípios ficam autorizados, de forma excepcional, a adquirir produtos que seriam exportados aos Estados Unidos, especialmente alimentos perecíveis, para destiná-los a programas públicos como merenda escolar, hospitais e restaurantes populares. Essa medida busca absorver excedentes e evitar desperdícios, com processos de compra simplificados e preços de referência baseados na média de mercado.

Para tentar garantir a proteção ao emprego, será criada uma câmara tripartite — reunindo representantes do governo, das empresas e dos trabalhadores — responsável por monitorar os níveis de ocupação nos setores mais afetados e negociar medidas para evitar demissões. Entre as ferramentas previstas está a suspensão temporária de contratos de trabalho, combinado com a oferta de cursos de qualificação profissional. O acesso aos incentivos do plano ficará condicionado ao compromisso das empresas de não desligar funcionários durante o período de vigência das medidas.

No campo do seguro de exportação e logística, o plano prevê a modernização do Seguro de Crédito à Exportação (SCE), com ampliação das coberturas e redução dos custos (prêmios) para operações em novos mercados, compartilhando riscos via FGCE. Também estão previstas melhorias logísticas, como a digitalização de processos aduaneiros, otimização de janelas portuárias e uso de rotas alternativas para reduzir custos e agilizar o redirecionamento de cargas.

Por fim, a agenda de diplomacia comercial e diversificação de mercados será acelerada, com prioridade para concluir ou ratificar acordos já em negociação com a União Europeia e a EFTA (Associação Europeia de Livre Comércio), além de novas tratativas com países como Emirados Árabes, Canadá, Índia e Vietnã. O governo também pretende organizar missões comerciais para reduzir a dependência das exportações brasileiras em relação ao mercado dos Estados Unidos e apresentar contestações formais na OMC (Organização Mundial do Comércio) contra as medidas consideradas protecionistas, o que provavelmente não resultará em ganhos substanciais já que o governo dos EUA vem se afastando dos organismos multilaterais.

Em síntese, o Plano Brasil Soberano combina instrumentos de liquidez emergencial, desoneração tributária, compras públicas de caráter excepcional, preservação de empregos, mitigação de riscos financeiros e estímulo à abertura de mercados alternativos. Na concepção, trata-se de uma resposta abrangente, desenhada para atuar simultaneamente sobre as frentes mais críticas — o caixa das empresas, o escoamento da produção, a manutenção da força de trabalho e a diversificação de destinos comerciais. No entanto, o êxito prático dessas ações está condicionado a fatores que vão além do desenho das medidas. A agilidade na execução, a correta focalização dos recursos, a coordenação entre órgãos e esferas de governo e, sobretudo, a sustentabilidade fiscal e operacional determinarão se o plano cumprirá seu papel ou se encontrará barreiras significativas. É a partir dessa perspectiva que a próxima seção examina os principais desafios e riscos envolvidos na sua implementação e seu sucesso.

Desafios e Riscos na Execução do Plano

Apesar do escopo abrangente das medidas, sua efetividade esbarra em fragilidades estruturais da economia brasileira. Três fatores são decisivos: (i) relativa dependência do mercado norte-americano, que responde por cerca de 12% das exportações nacionais e por quase metade da pauta em estados como o Ceará; (ii) concentração setorial e regional, que limita a capacidade de redirecionamento rápido da produção; e (iii) a natureza indiscriminada do tarifaço, com sobretaxas de até 50% aplicadas a uma ampla gama de produtos.

Essas condições tornam vulneráveis estados e setores com alta exposição, mesmo diante dos mecanismos de crédito, incentivos fiscais, compras emergenciais e diplomacia comercial. A isso se soma um risco recorrente em pacotes emergenciais: a tendência de medidas temporárias se perpetuarem por pressões políticas e resistência setorial, transformando instrumentos excepcionais em políticas permanentes, muitas vezes sem critérios claros de focalização.

Sem calibragem precisa e mecanismos de saída bem definidos, o plano pode cristalizar dependências, favorecer setores com maior capacidade de lobby e gerar distorções fiscais e produtivas no longo prazo. É nesse contexto que se delineiam os oito principais riscos a serem analisados a seguir.

Eixo de Crédito

A oferta de crédito emergencial subsidiado parte de premissa correta que é evitar um aperto de liquidez que paralise operações e dar fôlego para empresas ajustarem processos e buscarem novos mercados. O desenho do plano, com atuação combinada do FGE e de fundos garantidores (FGCE, FGI, FGO), busca ampliar o financiamento especialmente às MPMEs com menos garantias reais.

Na prática, porém, subsídios e garantias públicas mal calibrados tendem a ser capturados prioritariamente por empresas que já possuem maior estrutura e acesso. Grandes exportadores com departamentos jurídicos e financeiros robustos cumprem rapidamente as exigências, enquanto muitas pequenas empresas enfrentam entraves burocráticos. Assim, há risco de o crédito inicial favorecer incumbentes de grande porte, deixando as MPMEs apenas com uma fatia residual ou com acesso mais demorado e oneroso.

Essa assimetria pode gerar distorções. Do lado das empresas, em vez de incentivar reconversão produtiva, o crédito barato pode fomentar refinanciamentos sucessivos de dívida e manter vivas por muito tempo e sem perspectivas firmas inviáveis em condições normais, mas que seguem operando graças ao crédito fácil, imobilizando capital e trabalho em atividades de baixo retorno. Do lado macro, concentrar recursos nos já estabelecidos implica desprestigiar MPMEs dinâmicas: estas perdem espaço no financiamento para inovar e diversificar, enquanto setores tradicionais são preservados mesmo com produtividade menor.

Risco Moral e Seleção Adversa no Sistema Financeiro

Para os bancos, garantias públicas generosas criam o clássico moral hazard haja vista que com o risco de inadimplência coberto pelo Estado, afrouxam-se os critérios de concessão de crédito. Isso pode levar a alocação temerária de recursos, financiando operações de alto risco que em condições de mercado não ocorreriam.

Surge também a seleção adversa uma vez que projetos e empresas mais frágeis, que não obteriam empréstimos normalmente, acorrem em peso às linhas subsidiadas, enquanto companhias sólidas substituem crédito privado por crédito público mais barato. Ou seja, não há expansão real do crédito, apenas migração de operações para o aval do Tesouro. Ademais, ao direcionarem recursos para empréstimos garantidos (menos arriscados), as instituições financeiras podem encolher as linhas de crédito convencionais, prejudicando justamente as empresas que ficam fora do programa.

Sem condicionalidades claras e bem estruturadas, o crédito emergencial corre o risco de perder seu caráter temporário e converter-se em apoio crônico. Para evitar esse desvio de função, seria fundamental vinculá-lo a metas objetivas de desempenho — como a obtenção de certificações internacionais, a diversificação de mercados ou o aumento do conteúdo tecnológico dos produtos — e estabelecer prazos definidos para o encerramento do subsídio.

Sem essas salvaguardas, o programa pode transformar-se em uma “muleta” permanente, induzindo empresas a depender de crédito barato de forma recorrente e reduzindo o estímulo para inovar, ganhar eficiência e ajustar-se de forma autônoma às novas condições de mercado. Em última instância, sem foco, mecanismos de monitoramento e cobrança efetiva de resultados, o eixo de crédito tende a operar mais como um colchão de conforto de curto prazo do que como um catalisador de transformação produtiva e competitividade sustentada.

Medidas Tributárias

No eixo tributário, as medidas cumprem a função imediata de aliviar o caixa das empresas, mas carregam riscos relevantes caso sejam prorrogadas além do estritamente necessário. O diferimento de tributos federais por dois meses, por exemplo, não elimina a obrigação fiscal: apenas transfere o desembolso para o futuro. Se, ao final do prazo, a demanda externa permanecer enfraquecida, as empresas podem se deparar com um passivo acumulado de difícil liquidação, criando um ciclo de parcelamentos sucessivos e renegociações, com potencial de deteriorar a saúde financeira do setor.

A prorrogação, por 12 meses, do regime de drawback — mecanismo que suspende ou isenta tributos sobre insumos importados empregados na produção de bens destinados à exportação — exerce papel fundamental ao evitar penalizações em um momento de retração e ao preservar cadeias produtivas dependentes de importações. Contudo, se mantido por tempo indeterminado, corre o risco de cristalizar uma dependência estrutural: em vez de estimular ganhos de eficiência, substituição de insumos e diversificação de fornecedores, limita-se a reduzir custos de forma artificial, ao custo de perda recorrente de arrecadação fiscal.

O aumento do Reintegra — programa que devolve parte dos tributos pagos ao longo da cadeia produtiva às empresas exportadoras, como compensação pelos custos residuais embutidos nas exportações — foi a medida mais comemorada pelo setor empresarial. Estima-se que a injeção de aproximadamente R$ 5 bilhões melhore as margens e proporcione alívio imediato de caixa. Entretanto, sem contrapartidas explícitas ou critérios claros de transitoriedade, corre-se o risco de transformar o instrumento em subsídio crônico, reduzindo a pressão por eficiência, alimentando dependência e impondo custos permanentes às contas públicas, já que o valor foi excepcionalizado da meta fiscal de 2025.

A manutenção prolongada de incentivos dessa natureza tende a cristalizar estruturas produtivas pouco competitivas. Empresas acostumadas a insumos importados baratos e a benefícios fiscais recorrentes perdem o estímulo para desenvolver fornecedores domésticos, diversificar cadeias ou agregar valor aos seus produtos, perpetuando especializações em segmentos de baixa complexidade tecnológica. Além disso, setores com maior poder de articulação política acabam capturando parcela significativa dos benefícios, mesmo sem apresentar ganhos de produtividade, enquanto atividades emergentes e inovadoras permanecem sub atendidas. Nessa dinâmica, o Estado direciona recursos para subsidiar exportações que ocorreriam de qualquer forma, distorcendo a concorrência, comprometendo a eficiência alocativa e adiando reformas estruturais indispensáveis para elevar a competitividade da base exportadora brasileira.

Compras Governamentais

Atuar como comprador de última instância para produtos que perderam mercado externo tem uma lógica emergencial evidente: evita-se o desperdício de estoques excedentes — especialmente no caso de alimentos — e, ao mesmo tempo, atende-se populações vulneráveis. No curto prazo, essa estratégia cria uma válvula de escape para a produção encalhada, estabiliza preços em determinadas regiões e ainda gera benefícios sociais diretos, conectando o excedente à demanda reprimida.

Contudo, a intervenção estatal traz consigo riscos consideráveis de distorção de mercado. Ao assumir o papel de comprador garantido, o governo acaba criando um piso de preços artificial, o que desestimula os produtores a reduzirem custos, aprimorarem a qualidade ou diversificarem seus destinos de venda — afinal, parte da produção já tem escoamento assegurado. Além disso, fornecedores privados internos podem ser deslocados, pois o Estado passa a absorver uma fatia significativa da oferta. Esse movimento pode reduzir a concorrência, retraindo compradores tradicionais ou induzindo-os a exigir descontos maiores, com impacto sobre a dinâmica normal de formação de preços.

Outro risco relevante é a captura política do mecanismo. Sem regras claras e transparência rigorosa, produtores com maior acesso ao governo podem transformar-se em fornecedores cativos, acumulando contratos vantajosos em detrimento de concorrentes excluídos. Vale lembrar ainda que a compra pública não elimina o excedente, apenas o transfere para os estoques do Estado. Caso não haja gestão eficiente para escoar ou utilizar esses produtos, o resultado pode ser perdas por perecimento, reproduzindo experiências negativas já observadas em antigas políticas de estoques reguladores.

Para mitigar esses problemas, as compras emergenciais devem vir acompanhadas de salvaguardas robustas. Entre elas, destacam-se: a definição de cotas máximas de aquisição por produto e por região, para evitar que o Estado absorva parcela desproporcional da produção; a vinculação dos preços pagos a parâmetros compatíveis com as referências internacionais, prevenindo pagamentos inflacionados; a criação de mecanismos de fiscalização independente e a divulgação pública de todos os contratos, critérios de seleção e volumes adquiridos, garantindo transparência; e o alinhamento dessas compras com programas já existentes, como merenda escolar, abastecimento hospitalar e distribuição de alimentos, de modo a evitar sobreposição de estoques e desperdício. Sem tais cuidados, uma medida concebida como instrumento anticíclico e temporário corre o risco de converter-se em fonte recorrente de ineficiências e de pressão fiscal, cristalizando distorções e retardando a adaptação competitiva dos produtores.

Proteção ao Emprego

A contrapartida trabalhista do plano, que condiciona o acesso aos benefícios à manutenção dos empregos e permite a adoção de suspensão de contratos combinada com oferta de qualificação possui justificativa social consistente. Em situações de choque agudo, evitar demissões em massa preserva renda e consumo, atenua os efeitos recessivos e reduz os custos de recontratação e treinamento quando a atividade econômica se restabelece. Essa lógica, porém, só se sustenta com fiscalização efetiva e indicadores claros que comprovem que os postos preservados correspondem a funções produtivas reais. Caso contrário, corre-se o risco de sustentar artificialmente empregos ociosos, retardando ajustes inevitáveis e comprometendo a eficiência da economia.

Esse risco é ainda mais sensível em setores que enfrentam transformações estruturais permanentes — como rupturas tecnológicas, perda definitiva de mercados ou alterações regulatórias —, nos quais a preservação de vínculos tende apenas a prolongar a estagnação e reduzir a produtividade média. Nessas circunstâncias, insistir em manter ocupações em declínio pode significar desperdiçar recursos públicos e reforçar trajetórias de obsolescência.

Por isso, é fundamental distinguir entre choques transitórios, em que a preservação temporária de empregos evita custos de desligamento e readmissão, e choques persistentes, em que é mais eficiente direcionar recursos para políticas de requalificação e recolocação. Sem essa diferenciação e sem mecanismos de saída bem desenhados, a política trabalhista do plano corre o risco de perpetuar ineficiências, cristalizar estruturas produtivas ultrapassadas e criar um precedente perigoso: o de setores que, diante de qualquer dificuldade, passam a esperar socorro estatal em vez de investir em adaptação e inovação.

Seguro de Exportação e Logística

A ampliação do seguro de crédito à exportação e as melhorias logísticas atacam gargalos relevantes para a diversificação de mercados. Expandir a cobertura do SCE e reduzir os prêmios pode incentivar operações em destinos de maior risco, ampliando o alcance das empresas brasileiras. No entanto, prêmios excessivamente baixos criam problemas de risco moral, pois tornam viáveis transações que não seriam sustentáveis em condições normais, transferindo potenciais perdas ao setor público. Nessas situações, contratos mais arriscados tendem a dominar a carteira (seleção adversa), o que pode comprometer a sustentabilidade financeira do programa e exigir aportes contínuos do Tesouro.

No campo logístico, medidas como despacho aduaneiro digital, janelas portuárias exclusivas e rotas alternativas são avanços importantes, mas precisam ser acompanhadas de metas claras de redução de custos e prazos. Sem indicadores objetivos e monitoramento efetivo, há risco de se multiplicarem ações pontuais que não atacam os gargalos estruturais de infraestrutura ou que concentram benefícios apenas em determinados corredores logísticos, deixando outros igualmente estratégicos à margem.

Já a diplomacia comercial, embora necessária, tende a produzir resultados apenas nos médio e longo prazos. Acelerar negociações, contestar tarifas na OMC e buscar novos acordos é fundamental, mas empresas que fiquem na expectativa de uma solução externa sem promover ajustes internos podem perder competitividade no processo. Essa postura de espera adia a adaptação a novas condições de mercado e, quando os acordos finalmente se concretizam, muitas firmas já se encontram fragilizadas demais para explorar plenamente as oportunidades abertas.

Desigualdades Regionais e Setoriais

Como detalhado no artigo recentemente publicado no blog do IBRE, “Tarifaço de Trump e seus Impactos Regionais”, os efeitos da medida sobre as exportações brasileiras estão longe de serem homogêneos: trata-se de impactos profundamente assimétricos entre regiões e setores. Estados cuja pauta exportadora é pouco diversificada e altamente dependente do mercado norte-americano foram atingidos de forma muito mais severa que a média nacional. O caso do Ceará é emblemático: em 2024, aproximadamente 45% das exportações do estado tiveram os Estados Unidos como destino, expondo sua elevada vulnerabilidade ao choque tarifário.

Diante desse quadro, a adoção de políticas uniformes carrega riscos de baixa efetividade. Regiões mais estruturadas, com empresas de maior porte e maior capacidade técnica para elaborar projetos e acessar linhas de crédito, tendem a capturar parcela desproporcional dos recursos. Paradoxalmente, são justamente essas regiões que apresentam maior resiliência relativa e menor impacto marginal da ajuda recebida. Em contrapartida, áreas mais vulneráveis — marcadas por menor capacidade institucional e produtiva — correm o risco de permanecer sub atendidas, ainda que nelas os efeitos multiplicadores negativos da retração exportadora sobre renda, emprego e arrecadação sejam muito mais severos.

Essa assimetria evidencia que uma distribuição proporcionalmente igualitária de recursos não apenas reforça desigualdades do ponto de vista social, como também resulta em alocação ineficiente do ponto de vista econômico. Ao direcionar recursos para onde produzem menor efeito de amortecimento, o Estado corre o risco de perpetuar fragilidades estruturais em vez de enfrentá-las, reduzindo o alcance e a eficácia das medidas emergenciais

Desafios na Diversificação das Exportações Brasileiras

Embora o Plano Brasil Soberano contemple medidas voltadas a sustentar a capacidade produtiva — como crédito subsidiado, incentivos fiscais, prorrogação de prazos tributários e apoio logístico —, sua ênfase recai quase exclusivamente sobre o lado da oferta. As ações mantêm máquinas em operação, empregos preservados e contratos internos honrados, mas deixam em aberto a questão central: como e para onde direcionar os produtos que perderam competitividade nos Estados Unidos após o tarifaço.

Essa lacuna é crítica porque a substituição de mercados, em muitos setores, não ocorre de forma imediata nem linear. Bens como calçados, móveis, confecções e manufaturados de maior valor agregado são moldados por especificações técnicas, padrões de design, certificações e redes de distribuição adaptadas ao perfil do consumidor norte-americano. Redirecionar essa produção a outros destinos exige adaptações técnicas, abertura de canais comerciais, negociação de contratos que podem levar anos e campanhas de promoção para reposicionar marcas. Além disso, a concorrência internacional em mercados alternativos é intensa: fornecedores já consolidados tendem a ocupar rapidamente os espaços deixados pelo Brasil, dificultando a inserção tardia das empresas nacionais.

O setor calçadista ilustra de forma clara a vulnerabilidade brasileira diante do tarifaço. Os Estados Unidos seguem como o principal destino internacional do calçado nacional e, apenas entre janeiro e julho de 2025, importaram US$ 134,9 milhões, o que representou cerca de 23,5% do total exportado pelo Brasil, de acordo com dados da Abicalçados/Secex divulgados pelo DatamarNews. Embora boa parte das empresas mantenha atuação relevante no mercado interno, há exportadoras que concentram quase toda a sua produção no exterior, sobretudo no mercado norte-americano.

Nesse contexto, a sobretaxa de 50% praticamente inviabiliza as vendas, pois encarece de imediato o produto brasileiro frente a concorrentes diretos, como os calçados chineses, que enfrentam tarifas significativamente menores. Redirecionar essa produção para outros mercados não é tarefa simples: nenhum país tem a mesma escala de demanda dos EUA, e os grandes importadores já contam com fornecedores consolidados. Além disso, o design e o posicionamento de muitos modelos foram concebidos especificamente para o gosto do consumidor norte-americano, o que limita sua aceitação em regiões como Ásia ou Europa. A adaptação exigiria investimentos adicionais em produto, reposicionamento de marca e campanhas de marketing — mudanças estruturais que dificilmente se implementam em prazo curto.

A experiência internacional reforça essa dificuldade de substituição rápida de mercados. No caso da guerra comercial com a China, as tarifas de 25% sobre a soja norte-americana levaram as exportações dos EUA ao país a despencarem de US$ 12,2 bilhões em 2017 para apenas US$ 3,1 bilhões em 2018, sem que outros destinos conseguissem absorver o excedente, o que resultou em estoques recordes e queda nos preços internos. A Austrália enfrentou situação semelhante quando a China aplicou tarifas de até 218% sobre seus vinhos: mesmo com aumento das vendas para Reino Unido e Estados Unidos, não conseguiu compensar a perda do mercado chinês, acumulando estoques e retração no setor. Já o Canadá, diante das restrições chinesas à sua canola, esbarrou em barreiras comerciais e limitações logísticas que impediram uma diversificação rápida, evidenciando como a dependência de um grande comprador cria vulnerabilidades difíceis de corrigir em pouco tempo

Esses exemplos demonstram que a reorientação de exportações não ocorre da noite para o dia. A dependência excessiva de poucos mercados torna qualquer economia vulnerável, mas a diversificação real exige anos de investimentos em promoção comercial, adaptação de produtos, construção de redes de distribuição e negociações diplomáticas. Ao concentrar esforços quase exclusivamente na sustentação da oferta e negligenciar estratégias robustas de abertura de mercados, o Plano corre o risco de preservar a capacidade produtiva, mas sem destino certo para sua produção. No curto prazo, isso se traduz em estoques crescentes, margens comprimidas e perda de empregos. Diante disso, torna-se fundamental também, além do foco na abertura de novos mercados, retomar a negociação com o governo americano, via a recomposição de pontes diplomáticas, reforçando os custos para ambos os lados, caso ela não ocorra.

Caminhos para aperfeiçoar o Plano

Apesar dos riscos, algumas melhorias de governança poderiam aumentar a eficácia das medidas e reduzir efeitos adversos, sobretudo se incorporarem um eixo permanente de abertura de mercados. Essa dimensão estratégica é fundamental para que a preservação da capacidade produtiva no curto prazo se converta em competitividade no médio e longo prazo, evitando que o pacote se limite a sustentar artificialmente a oferta.

Um primeiro passo é a focalização direcionada, priorizando setores e estados mais atingidos — aqueles mais dependentes dos EUA e com pautas exportadoras concentradas —, com critérios transparentes e prazos bem definidos. Isso evita dispersão de recursos e reduz o risco de captura política. Outra medida importante é a adoção de condicionalidades. O apoio deve estar vinculado a metas claras, como preservação de empregos, obtenção de certificações, diversificação de mercados e aumento de produtividade. O descumprimento dessas metas deve levar à redução ou suspensão gradual dos benefícios, criando incentivos para inovação e ajustes estruturais.

Para as micro, pequenas e médias empresas, é essencial criar trilhas rápidas de inserção internacional: balcões únicos de atendimento, assistência técnica para adequação regulatória e vouchers para participação em feiras ou testes de exportação. Dessa forma, garante-se que o socorro alcance também negócios com menor capacidade de mobilização, mas potencial de inserção em nichos externos. No caso das compras públicas emergenciais, a governança deve ser reforçada com limites de volume, bandas de preço e processos de seleção isentos, aliados à integração com programas já existentes, como merenda escolar e abastecimento hospitalar. Assim, evita-se desperdício e amplia-se o impacto social, ao mesmo tempo em que se abrem canais que podem futuramente servir ao comércio internacional. Na logística, medidas como despacho digital, janelas portuárias exclusivas e rotas alternativas precisam estar atreladas a metas de redução de prazos e custos, garantindo que os ganhos se convertam em vantagem competitiva no exterior.

Por fim, é indispensável a criação de um monitoramento independente, capaz de medir a utilização efetiva das linhas de crédito, o custo fiscal por resultado, os empregos preservados e, sobretudo, os novos destinos de exportação alcançados. Transparência e avaliação contínua dão credibilidade e permitem correções de rumo.

Com essas melhorias, o programa pode deixar de ser apenas um escudo emergencial e se transformar em uma plataforma de renovação e expansão competitiva. Mais do que reagir a crises, o Brasil precisa de uma estratégia permanente de internacionalização: diversificar mercados e produtos, investir em diplomacia comercial ativa, apoiar certificações, reduzir o custo logístico e alinhar a produção nacional às exigências de diferentes regiões. Integradas a metas claras de expansão, essas ações podem reduzir vulnerabilidades externas, fortalecer a competitividade e reposicionar o país como fornecedor relevante no comércio global.

Considerações Finais

O plano lançado pelo governo responde a uma necessidade imediata: evitar que o tarifaço norte-americano provoque o colapso de empresas exportadoras e uma onda de demissões em setores fortemente dependentes dos EUA. Ao oferecer crédito subsidiado, diferimento de tributos, compras públicas emergenciais e apoio logístico, o pacote cumpre a função de preservar capacidade produtiva e renda no curto prazo. Trata-se de um escudo emergencial legítimo, desenhado para dar tempo a empresas e trabalhadores ajustarem-se ao novo cenário. Contudo, ao concentrar esforços quase exclusivamente no lado da oferta, deixa em aberto o desafio mais complexo: assegurar novos mercados para os produtos que perderam competitividade nos Estados Unidos.

A experiência recente mostra que a diversificação comercial é lenta e onerosa. Reorientar bens como calçados, móveis ou manufaturados de maior valor agregado exige adaptações técnicas, certificações, redes de distribuição e campanhas de promoção em mercados já disputados por fornecedores consolidados. Mesmo no agronegócio, em que o Brasil dispõe de vantagens comparativas, a substituição plena do mercado norte-americano é rara e geralmente implica reduzir preços para atrair novos compradores.

É nesse ponto que a diplomacia comercial e a negociação direta com Washington tornam-se centrais. O comércio internacional é, por natureza, regido pela lógica da troca e do diálogo permanente. Mais do que resistir, o Brasil precisa negociar ativamente para reduzir os efeitos das tarifas e conquistar exceções. A experiência do governo Trump mostrou que diversos países, inicialmente atingidos pelas sobretaxas, conseguiram flexibilizações após rodadas de negociação, poupando setores estratégicos ou obtendo cronogramas diferenciados. O Brasil não pode abrir mão desse caminho, sobretudo porque milhares de empregos estão em jogo.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.  

Bibliografia

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BARRETO, Flávio Ataliba; FREITAS, Thiago de Araújo. Tarifaço de Trump e seus impactos regionais. Blog do IBRE – Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 6 ago. 2025. Disponível em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/tarifaco-de-trump-e-seus-impactos-regionais.

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