Macroeconomia

A pandemia deixará a economia mais vulnerável, mas não destruída

12 jun 2020

Com a eclosão da pandemia da Covid-19, o Brasil e o mundo vivem um problema de gravidade inaudita. Embora não deva se estender por mais de ano, o processo de disseminação do coronavírus traz muito sofrimento e tristeza. Vidas se perdem, famílias são desestruturadas e as condições de empregabilidade pioram brutalmente. Na economia, o impacto é dramático. Segundo as últimas previsões do FMI – que já soam otimistas – a economia global deve recuar 3% em 2020, enquanto o Brasil deve ter queda de 5,3% do PIB.

Ao buscar um paralelo histórico, a gripe espanhola de 1918 tem sido apresentada como o melhor exemplo. No entanto, a equiparação dá margem a dúvidas. Afinal, de lá para cá as mudanças sociológicas e culturais foram imensas. O número de óbitos por um surto virótico com essa intensidade nos tempos atuais é inaceitável, motivo pelo qual a economia mundial foi voluntariamente travada de maneira inédita, como consequência das políticas de isolamento social adotadas na maior parte dos países.

Dentro desse cenário, muitas dúvidas permanecem no ar. Não se sabe nem quando precisamente a primeira onda da pandemia vai passar em cada país (o que já ocorreu em algumas nações orientais e começa a acontecer em países da Europa), nem se e quando virão novos surtos. Tampouco se conhece a intensidade dessas possíveis novas ondas da epidemia, e como serão operacionalizadas novas rodadas de lockdown. Como consequência, também é muito difícil prever como será a recuperação das diversas economias após o tombo inicial. Entre os economistas, discute-se se a retomada será em “V”, isto é, rápida e intensa, em U, gradual, ou em “W”, com novos mergulhos.

A crise econômica da pandemia do coronavírus, adicionalmente, trouxe uma exigência de intervenção governamental mais óbvia e urgente mesmo do que a de grandes crises financeiras, como a de 2008 e 2009, na qual o papel do Estado também foi fundamental. No caso do atual episódio, há, em primeiro lugar, a agenda humanitária. A necessidade evidente de aumentar muito, e em caráter de urgência, os gastos com saúde, comprando testes e equipamentos, montando hospitais de campanha e contratando mais médicos e profissionais de atendimento hospitalar.

A paralisação da economia, por seu turno, obriga o governo a prover recursos para a população que perdeu o emprego e, por conseguinte, seus meios de subsistência. Além disso, o apoio às empresas, através de programas de crédito e de subsídio, para que sobrevivam após a tormenta, é importante caso se queira preservar a infraestrutura produtiva do país. Em praticamente todos os países em que o isolamento social foi adotado como estratégia sanitária, governos intervieram pesadamente para apoiar famílias e negócios.

Todos esses gastos criam desafios fiscais que terão de ser enfrentados simultaneamente por todas as nações do mundo nos anos à frente. No caso brasileiro, a dívida bruta, que fechou 2019 abaixo de 80% do PIB e havia entrado em uma trajetória na qual provavelmente cairia ao longo dos próximos cinco a dez anos, mudará de rumo. Dará um salto de grandes proporções. Passado o desastre sanitário, os analistas estimam que chegue a 95% ou mesmo a 100% do PIB.

Embora, à primeira vista, o quadro fiscal seja desalentador, esta Carta buscará argumentar que a inegável dramaticidade do cenário de curto prazo está contaminando exageradamente as expectativas de médio e longo prazo.

Há alguns anos, a simples perspectiva de que a dívida pública brasileira atingisse 100% do PIB bastaria para frustrar por completo as expectativas quanto ao bom desempenho da economia nacional. Hoje, apesar da desvalorização forte do real e da alta volatilidade dos ativos brasileiros, há estabilidade financeira, a inflação cai para seus mínimos históricos e o setor externo transita de uma posição deficitária para superavitária. O risco Brasil subiu, mas se situa em nível incomparavelmente menor do que o de crises passadas. Sem minimizar a terrível recessão, o arcabouço macroeconômico vigente permite que a economia busque novo equilíbrio sem rupturas.

É verdade, todavia, que a abundante liquidez externa ditada pela injeção monetária e fiscal das principais economias como reação à pandemia – e que já veio em cima de um ambiente prévio de juros internacionais extremamente baixos – é condição indispensável para tornar possível o ajuste dos emergentes. Mas é importante notar que se aproveitam mais dessas circunstâncias favoráveis justamente os países que conseguiram evoluir institucionalmente nas últimas décadas, como parece ser o caso brasileiro.

Em contraposição a certo discurso alarmista, não se pode esquecer o histórico de importantes conquistas e superações pelas quais o Brasil passou. Desde a redemocratização na década de 80, houve muitos avanços. Uma nova etapa nacional foi erigida a partir da Constituição de 1988, que pela primeira vez buscou integrar na vida política do País toda a gama multifacetada de atores sociais, boa parte dos quais atravessou séculos de história na condição de figurantes subalternos. Questões de pobreza, desigualdade, origem racial, identidade sexual, meio ambiente, povos tradicionais, etc., ganharam visibilidade na vida nacional e deram substância ao desafiador e riquíssimo processo político, social e cultural das últimas décadas. O país também se viu envolvido com a agenda explosiva de combater a corrupção estrutural que remonta a estruturas e práticas sociopolíticas entranhadas na história de nação de origem colonial.

Não se podem subestimar as dificuldades de um país em desenvolvimento, de economia instável e profundamente desigual e injusto, com abismos de renda, educação e capital social entre seus cidadãos, e níveis muito elevados de violência, ao enfrentar o caos criativo de um processo democrático como o descrito acima. Seria ingenuidade supor que a vida política brasileira pudesse ter cursado o caminho pacato e ordeiro de uma socialdemocracia da Europa ocidental. Ao contrário, a história social e política desde a redemocratização tem sido extremamente tumultuada, como atestam dois impeachments entre os cinco presidentes eleitos pelo voto popular nessa fase. Porém, apesar de tudo, a democracia seguiu em frente, as instituições amadureceram e grandes avanços foram realizados do ponto vista econômico, social e institucional.

Na economia, depois da hiperinflação quase na largada da nova fase democrática, e do fracasso de vários planos para combatê-la ao longo da década de 80 e início dos anos 90, o plano Real finalmente estabilizou a moeda a partir de 1994. Mas o Brasil ainda estava longe da estabilidade macroeconômica atual. A fragilidade externa pós-Real levou ao período de “ataques especulativos” contra a moeda nacional, até a desvalorização forçada de 1999. A partir daí, estabeleceu-se o famoso “tripé” macroeconômico de responsabilidade fiscal, metas de inflação e câmbio flutuante.

Mas nada chegou pronto e todos os fundamentos foram duramente testados em diversos momentos de crise, num processo que ainda não terminou. Na área fiscal, com grande dificuldades, uma agenda complexa, e muitas vezes impopular e politicamente antipática, foi sendo implantada: fim dos bancos estaduais, renegociação da dívida dos Estados, Lei de Responsabilidade Fiscal e a série de reformas da Previdência de Fernando Henrique Cardoso, de Luiz Inácio Lula da Silva (arrematada por Dilma Rousseff) e, finalmente, de Jair Bolsonaro.

Essa última reforma surpreendeu pela abrangência e robustez. Enquanto, em diversos outros países, governos eram postos em xeque por tentarem adaptar suas Previdências ao processo de envelhecimento populacional – como na França, Rússia e Equador –, no Brasil houve notável apoio popular à reforma, cultivado por anos de debates que acabaram trazendo a mídia e a opinião pública mais educada para o campo decididamente a favor da mudança. Da mesma forma, o amplo apoio do sistema político e dos formadores de opinião à aprovação de uma Emenda Constitucional cujo objetivo é o controle das contas públicas, durante o governo de Michel Temer, também atesta que a questão fiscal no Brasil hoje é levada a sério.

Outro sinal do amadurecimento político brasileiro foi a chegada de um governo de esquerda ao poder em 2003, que produziu robustos superávits fiscais na maior parte da sua duração. É verdade que, após a crise global de 2008 e 2009 e, principalmente, depois do fim do boom de commodities em 2011 e 2012, a situação fiscal se deteriorou. Mas políticas de austeridade foram reintroduzidas em 2015, ainda com a esquerda no poder, num sinal de que o valor da responsabilidade fiscal é hoje amplamente compartilhado ao longo do espectro político brasileiro. Esse avanço fica claro também nos governos subnacionais e especialmente nos Estados, em que cada nova safra de secretários da Fazenda é mais preparada tecnicamente e comprometida com o equilíbrio orçamentário que a anterior. E isso independe de a situação das contas públicas estaduais ainda padecer de sérios desequilíbrios estruturais.

É verdade que ainda persiste um imenso desafio fiscal estrutural para o País como um todo, perpassando todos os níveis da Federação e todos os Poderes e órgãos de Estado. Mas esse problema não acontece no vazio, por alguma sina de irresponsabilidade nacional. Na realidade, o gasto público primário federal cresceu a 6% anuais durantes mais de 20 anos, e esse foi o ritmo compatível com o atendimento pelo sistema político das múltiplas demandas de diversos grupos em busca de justiça social e perseguindo o interesse de suas bases eleitorais.

É inegável que, em uma democracia jovem como a brasileira, na qual a defesa do interesse difuso ainda vai se consolidando, parte do aumento dos gastos das últimas décadas atendeu a agenda de grupos que muitas vezes adentrou o terreno do privilégio. Mas houve, por outro lado, expansão do gasto público em áreas como educação, saúde, segurança e numa ampla rede de seguridade social, com programas como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida. A política de elevação real do salário mínimo proporcionou o aumento de benefícios previdenciários e assistenciais e das faixas salariais inferiores do mercado de trabalho formal, promovendo durante muitos anos uma notável redução da pobreza e da desigualdade.

Em 2013, após anos de aumento da renda e do consumo, parte expressiva da sociedade brasileira foi às ruas pleitear mais e melhores serviços públicos. A situação fiscal, porém, já começava a se deteriorar, e foi ficando claro que o ritmo de expansão do gasto público que proporcionou a forte inclusão da primeira década deste século não seria sustentável à frente. Não é uma situação fácil para nenhuma democracia do mundo, e menos ainda para um país desigual como o Brasil. Resultou um processo político com nível bem mais elevado de beligerância do que o experimentado durante vários mandatos presidenciais anteriores, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e um aumento da polarização ideológica, que levaria o atual presidente Jair Bolsonaro ao poder.

No entanto, ao contrário do que sugerem narrativas mais apressadas, o País não despencou em nenhum abismo nem recuou no tempo nem foram perdidos os avanços institucionais desde a redemocratização. Como já apontado nesta Carta, ainda que num processo acrimonioso, tumultuado e sempre difícil, os avanços prosseguiram. Para ficar apenas na seara fiscal, há exemplos como o teto de gastos (mesmo com suas imperfeições) sancionado no governo Temer e a reforma da Previdência aprovada no primeiro ano de Bolsonaro.

É no campo das contas públicas, aliás, que surge boa parte da preocupação dos analistas mais pessimistas. Há o risco de que programas para lidar com a pandemia sejam perenizados, e tornem ainda pior a situação fiscal estrutural do País. No Congresso Nacional, parece haver renovada disposição dos parlamentares para aprovar auxílios com dinheiro público aos mais diversos grupos.

À luz de experiências pregressas, esse tipo de preocupação não soa absurda. Por outro lado, é exagero pensar que toda a lenta e penosa trajetória de ajuste fiscal dos últimos anos vai se perder num estalar de dedos. É da natureza do processo político que “pautas bombas” surjam e assustem, ainda mais numa conjuntura como a atual. No entanto, nos últimos anos, o Congresso tem indicado que caminhos mais radicais e irresponsáveis tendem a ser evitados. Ainda há muito espaço para negociação e cabeça fria, e a transição da política fiscal da pandemia para a da fase pós-pandemia não deve ser muito diferente do tipo de compromisso a que se conseguiu chegar em temas como Previdência e teto de gastos. Certamente o Brasil não caminha para um rigor fiscal germânico, mas tampouco para uma irresponsabilidade bolivariana.

E ainda há muitos fatores macroeconômicos, domésticos e internacionais, que podem ajudar nessa transição. O mundo pós pandemia deve ser extremamente líquido e, apesar de alguns diagnosticarem algum risco de inflação à frente, o mercado em si e uma grande corrente de analistas veem inflação e juros baixíssimos, ou mesmo negativos, a perder de vista. Com a inflação doméstica em queda livre, os juros estão muito baixos e podem cair ainda mais – já se discute a possibilidade de atingimento do chamado “zero lower bound” no Brasil. Os juros muito baixos são um fator crucial na dinâmica Dívida/PIB.

O outro grande fator potencial de melhora da relação dívida/PIB é o crescimento econômico, e esse é sem dúvida o desafio mais complicado para o Brasil. O País já crescia mediocremente antes da pandemia, sem conseguir se recuperar a um ritmo satisfatório da grande recessão de 2014-16. Aqui, porém, entra a fundamental agenda da produtividade, tema que o FGV IBRE elegeu como um dos seus núcleos de pesquisa, mas para o qual o Brasil parece apenas começar a despertar. Pautas aventadas pelo atual governo, mas que estão longe de frutificar, como a reforma tributária e a administrativa, são passos importante nessa direção. Os desafios são enormes. A discussão tributária, por exemplo, tende a derivar para uma disputa entre potenciais ganhadores e perdedores imediatos, perdendo de vista o horizonte de melhoria da produtividade almejado.

Como todos os avanços brasileiros desde a redemocratização, a agenda da produtividade não terá vida fácil, e vai render conflitos, resistência, sabotagem, desvios etc. Mas como todos os demais temas, também avançará de forma lenta, descontínua, sofrida, mas ainda assim na direção do aperfeiçoamento. O país vai gradativamente amadurecendo as instituições democráticas e de defesa do interesse difuso. A visão de que tudo desmorona e está sendo perdido é, antes de tudo, uma ilusão típica de momentos muito difíceis. Isso não quer dizer que a cidadania deva se acomodar porque a melhora é inevitável. Pelo contrário, é um sinal de que há muito a ser feito. Vale a pena, portanto, continuar trabalhando e lutando para o país superar esse novo desafio.


Esta é a Carta do Ibre de junho de 2020, publicada na revista Conjuntura Econômica do mesmo mês.

O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa forma, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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