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Política econômica nos anos 2000 era insustentável

13 jul 2022

Nos anos 2000 a economia brasileira operava a pleno emprego e havia elevado grau de artificialidade na política econômica. Quando as vacas gordas passaram, caímos e ainda não conseguimos nos levantar plenamente.

Na coluna Ponto de Vista de agosto de 2021, mostrou-se que estamos construindo no Brasil as condições para um novo ciclo de crescimento. Tanto a situação fiscal, as contas externas e a rentabilidade do investimento privado têm melhorado desde o nadir de 2014.

Naquela oportunidade vimos que o ciclo de crescimento dos anos 2000 foi precedido de um longo período – entre 1998 até 2004, aproximadamente – de arrumação da casa macroeconômica.

Infelizmente não conseguimos sustentar o ciclo. Ele terminou com profunda e extensa crise econômica. O objetivo desta coluna é documentar que a trajetória de crescimento desde o segundo mandato do presidente Lula já apresentava claros sinais de falta de sustentabilidade. Isto é, a grande crise deveu-se a desequilíbrios que foram se avolumando. Nossa grande crise não foi fruto de choque externo, como a queda dos preços das commodities. O choque externo somente expressou uma realidade que já ocorria. Ou dito de outra forma, o choque externo positivo e anterior, isto é, a elevação dos preços das commodities, permitiu que o desequilibro do setor público fosse escondido.

No site da Instituição Fiscal Independente (IFI) é possível baixar a série do superávit primário estrutural do governo central.[1] Na aba G3 do arquivo Excel, lê-se que o superávit primário estrutural saiu de 1,8% do PIB em 2005 para déficits de 0,4%, 1,2% e 2,4% em, respectivamente, 2010, 2013 e 2014. Ou seja, houve, em praticamente todos os anos entre 2004 e 2014, impulso fiscal positivo, isto é, a política fiscal estimulou a demanda agregada.[2]

No entanto, a política fiscal não deve ter contribuído muito para o crescimento econômico pois, segundo a mesma base de dados da IFI, no período a economia operou a pleno emprego. Na aba G2 da planilha da IFI encontra-se o dado de hiato de recursos. Sempre que o hiato é positivo, como vigorou entre 2004 e 2014, é sinal de que a economia opera à plena carga.

De fato, meu colega Bráulio Borges do FGV-Ibre calculou a taxa de desemprego neutra, isto é, a aquela que mantém os salários crescendo no mesmo ritmo da produtividade do trabalho. Nos 11 anos entre 2004 e 2011, segundos os cálculos de Bráulio, a taxa de desemprego observada foi sistematicamente menor do que a neutra.

De fato, entre 2004 e 2014 a renda real do trabalho principal medida pela PNAD cresceu 50%. Segundo o Observatório da Produtividade, no mesmo período a produtividade do trabalho por hora trabalhada para a média da economia cresceu 21%.

Se há pressão de demanda em excesso à capacidade produtiva da economia, devemos observar um processo permanente de elevação da inflação. De fato, do nadir em junho de 2006 de 2,1% para a inflação acumulada em 12 meses dos preços livres do IPCA, ela sobe para 7,3% em dezembro de 2013.

Mas se há pressão inflacionária permanente, os preços dos bens e serviços que são passíveis de serem comprados no mercado internacional devem subir menos do que os demais. Isto é, a inflação de serviços deve ser maior do que a inflação dos preços livres em geral. De fato, da mínima em outubro de 2007 de 4,7%, a inflação acumulada em 12 meses dos serviços rodou a 9,2% em junho de 2014. Ao longo de todo o período, a inflação dos serviços superou a inflação da média dos preços livres. Produtos industriais, por exemplo, saem de 2,8% em junho de 2004 para 5,6% em julho de 2014. Evidentemente, o trabalho é o bem menos comercializável internacionalmente. Como vimos, os salários subiram bem acima da produtividade.

A maior inflação dos bens não comercializáveis internacionalmente é compatível com a valorização do câmbio. O câmbio real a preços do 1º trimestre de 2022 (o deflator é a diferença de inflação entre o Brasil e os parceiros comerciais) saiu, durante aquele mesmo período, de R$5,6 por dólar americano para R$3,8, valorização de 33%.

Uma economia a pleno emprego que sofre pressões constantes de demanda apresentará piora nas contas externas, pois parte da demanda terá que ser atendida pela oferta externa, caso contrário a inflação será ainda maior. De fato, entre 2005 e 2014 as exportações líquidas se reduzem de 4,3% do PIB para um déficit de 3,7%, numa virada de 8 pontos percentuais do PIB!

Evidentemente essa dinâmica produz redução da taxa de retorno do capital. A melhor estatística de retorno do investimento é a geração de caixa, medida pelo lucro antes dos juros e impostos pagos e da depreciação e amortização, conhecida por LAJIDA, como proporção do faturamento, ou, no jargão da contabilidade, da receita operacional liquida (ROL), dada pelo faturamento líquido dos impostos indiretos pagos. Como proporção do ROL, o LAJIDA, para a média das empresas abertas (dado da base da Economática), caiu de 27% em 2004 para 18% em 2013 e 16% em 2014.

Todas essas estatísticas contam a mesma história: nos anos 2000 a economia operava a pleno emprego. Adicionalmente, os números mostram que havia elevado grau de artificialidade na política econômica. Quando as vacas gordas passaram, não estávamos preparados para enfrentar as vacas magras. Caímos e ainda não conseguimos nos levantar plenamente.

Como tratei em texto recente escrito com Bráulio Borges,[3] é necessário que a política fiscal seja contracíclica. Segundo nossos cálculos, para que a política econômica dos anos 2000 não fosse insustentável, deveríamos ter praticado uma política fiscal muito mais superavitária. Não é um objetivo impossível. Chile e Colômbia praticam políticas fiscais contracíclicas e têm colhido bons resultados.

O programa do próximo presidente da República deveria levar em conta que a melhor fase recente da economia brasileira, justamente o período de governos petistas abordado nesta coluna, mostrou-se insustentável no longo prazo. É preciso que a retomada do crescimento se dê em bases duradouras, ou o Brasil permanecerá na estagnação da chamada “armadilha da renda média”.

Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de julho de 2022.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 


[2] Basta ver a aba GB1 do arquivo Excel.

[3] Ver “Expansão fiscal durante o superciclo das commodities”, em Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil, editado por Marcos Mendes, editora autografia, capítulo 1, páginas 38 até 71.

Comentários

Alexandre Montes
Brilhante artigo, só não concordo completamente com o exposto no parágrafo 12. Embora considere o indicador LAJIDA/ROL muito interessante, a relação EBITDA/EV diz mais a respeito da rentabilidade de um dado negócio. EV aqui = enterprise value = valor de mercado + dívida financeira líquida. Mas este detalhe não diminui em nada o brilhantismo do artigo. Obrigado pela aula de teoria econômica e de história econômica brasileira também.
Samuel Pessoa
Prezado Alexandre: Muito obrigado pelo seu comentário. Prefiro a razão LAJIDA/ROL pois ela somente envolve fluxos. É mais adequado principalmente se o objetivo for conhecer a situação da economia e não a situação de uma empresa específica. Medidas que consideram estoques – como o valor patrimonial da empresa – podem ser muito voláteis em função do câmbio. Grande abraço, Samuel
Alexandre Montes
Obrigado Samuel pela resposta e mais uma vez parabéns pelo interessantíssimo artigo. Grande abraço.
Sylvio Xavier
Prezado Samuel. Antecipadamente, parabéns pelo seu trabalho e honestidade intelectual.Igualmente no que tange ao Bráulio. A leitura do seu trabalho com o Bráulio (nota 3 desse texto) foi, para mim, um certo "alívio". Isso porque venho trabalhando há algum tempo no que chamo de "víés de sinal" na política fiscal: impulso positivo em expansão e negativo em contração. "Alívio" no sentido de ver que não estou só! Não tenho segurança, porém, que o resultado fiscal estrutural seja contracíclico. Na minha visão (talvez equivocada) é "cíclico neutro". A regra fiscal de teto de gastos é parcialmente contracíclica. Ou seja, só é contracíclica em função do comportamento das receitas (maior em expansão e menor em contração), mas não ,exatamente, em função da despesa. Com o suposto que isso seja verdadeiro, tenho refletido na possibilidade de uma regra fiscal automática na qual o teto de despesas também varie em situações de expansão (para baixo) e contração (para cima). A magnitude da variação se daria em função do tamanho do hiato do PIB (seja positivo ou negativo) e do multiplicador fiscal que pode ser diferente a depender do regime. Formulei uma equação, mas não consigo anexar através desse canal. Grande abraço.

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