As políticas da política: continuação da conversa
Na minha coluna da Folha de São Paulo de domingo, 26 de julho, publiquei uma resenha crítica de “As Políticas da Política”, volume publicado em 2019 pela editora da Unesp, organizado pelos professores Marta Arretche, Eduardo Marques e Carlos Aurélio Pimenta de Faria. O livro apresenta um balanço do resultado das políticas públicas nos governos FHC e no período petista. Apontas as continuidades e as quebras ou mudança de rota nos períodos.
Em coluna na Folha de SP na quarta-feira, dia 29/7, os organizadores defenderam o volume, além de terem apontado erros em minha coluna. Pela importância, volto aqui ao tema, já avisando que o espaço do Blog do Ibre está franqueado aos colegas que organizaram o livro para continuar a conversa.
Avaliei o volume como fraco por um motivo que me parece importante: o volume não apresenta avaliação sistemática de desempenho das políticas. Tem muitos olhos para a execução orçamentária e pouquíssimos olhos para o desempenho das políticas. Note que, diferentemente do que o texto dos colegas sugere – “visamos precisão e rigor, mas evitamos propositalmente a avaliação econométrica das políticas - talvez almejada pelo colunista” – minha crítica não se refere à ausência da econometria. Minha avaliação é que a ausência de indicadores sistemáticos de desempenho (efetividade) das políticas invalida boa parte das conclusões. Política pública não é gastar o recurso, mas sim atingir um objetivo. Se o objetivo não foi atendido, a política foi ineficaz, mesmo que os recursos tenham saído da conta única da União no BC e pagado a ação.
Eu havia estranhado a ausência de indicadores de reforma agrária. Os autores corretamente apontam minha leitura ligeira que não notou o tema tratado no capítulo 12 das terras indígenas. De fato, os números lá estão, à página 338, no gráfico 2. Mea culpa! Surpreende como o governo FHC desapropriou maior extensão de terras do que o período petista. Não conhecia esse fato. O texto sugere que a menor área desapropriada no período petista foi compensada pelo “incremento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), com uma série de linhas de financiamento agrícola, e a criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), (...) considerados avanços importantes do período”. Difícil saber se os avanços ocorreram ou não. Não há nenhum indicador de desempenho. Como avaliar se os recursos gastos no Pronaf e no PAA foram eficazes?
Também reclamei de que não há os dados referentes à evolução do salário mínimo. Os autores apontam o gráfico à página 54. O problema é que gráfico não é tabela. Aprendi esse fato com meus colegas jornalistas. A precisão da informação requer o dado. Devido ao fato de estarmos discutindo a política pública mais importante do período, seria necessária a tabela. Por exemplo, no capítulo de conclusão lê-se à página 462 que “a valorização do salário mínimo – cuja valorização real começou a aumentar, ainda que timidamente, sob Fernando Henrique Cardoso e se acelerou com Lula – teve impacto sobre a redução da desigualdade de renda (...)”. Entendo que os autores avaliam que houve significativa elevação da velocidade de aumento do salário mínimo real no governo Lula. No entanto, lê-se na tabela que se encontra no Blog do Ibre, de autoria de Manoel Pires, que a elevação do salário mínimo real nos oito anos de FHC foi de 44%, ante 54% nos oito anos do governo Lula, e 12% no primeiro quadriênio de Dilma. Não parece que a subida em FHC foi tímida: nos oito anos de FHC, a alta foi de 4,7% ao ano e, nos 12 anos do petismo, a elevação foi de 4,6% ao ano.
No capítulo de política habitacional não é possível saber como que evoluiu o déficit habitacional no país. Não sabemos. Sabemos que:
“Como resultado da rápida implementação e da forte prioridade política do programa, a produção atingiu uma escala muito elevada em um curto período de tempo. Entre 2009 e 2014, foi contratada a construção de 3,8 milhões de unidades habitacionais, sendo que cerca de 2,3 milhões já haviam sido entregues no final de 2014 e o restante ainda estava em construção. Entre as unidades entregues, 1,7 milhão correspondiam à primeira faixa; outros 1,6 milhão, à segunda; e apenas 450 mil, à terceira. Em termos de investimento, essa produção envolveu R$ 244 bilhões, uma escala recebida positivamente mesmo pelos maiores críticos do plano”. (Páginas 262 e 263).
A questão é que, lendo o capítulo, não é possível saber o que ocorreu com o déficit habitacional. É importante sabermos qual era o déficit antes do início do programa e qual era o déficit após a entrega das 3,8 milhões de unidades. É possível que as novas unidades não tenham contribuído para reduzir o déficit. Se elas forem em lugares que sejam muito longe, sem infraestrutura, é possível que tenha havido forte desperdício de recursos. Para avaliarmos o desempenho do programa MCMV, temos que saber como que evoluiu o déficit habitacional.
O mesmo problema ocorre no capítulo de infraestrutura. Na conclusão lê-se: “Numa das raras janelas de oportunidade, em que o contingenciamento fiscal dos recursos não deu a tônica dos investimentos, foram construídos arranjos e instrumentos que possibilitaram a implementação da um grande número de obras rodoviárias, ferroviárias e hidroelétricas, gerando emprego e movimentando a economia nas diversas regiões do pais”. A pergunta que eu me fiz: Houve melhora nas estradas de rodagem e na rede ferroviária? Houve forte expansão da capacidade de energia? Houve ou não elevação da cobertura da rede de saneamento básico em geral? Essas informações não estão no capítulo. Não sabemos se “o grande número de obras” maturou ou não.
Com relação à minha crítica ao capítulo da política externa, afirmei que “há inúmeros temas que carecem de melhor avaliação. Por exemplo, o capítulo da política externa não avalia se a insistência no multilateralismo, em um período em que o mundo embarcou nos acordos bilaterais, foi ou não positiva ao país”. Em reação, um dos autores, Dawisson Belém Lopes, respondeu no seu Twitter que “fui alvo, neste domingo, da fúria santa de Samuel Pessôa”. Parece que “fúria santa” não qualifica o que escrevi. Meu texto foi bem moderado. Em seguida, em outros tweets, Dawisson oferece a sua explicação de que não há essa polarização entre multilateralismo e bilateralismo. Não tenho problema com isso. Poderia ter sido, inclusive, objeto do capítulo. O que não há no capítulo é alguma avaliação dos resultados das políticas. Na conclusão do capítulo Carlos de Faria e Dawisson afirmam:
“Por outro lado, a politica externa brasileira (PEB) de Lula reconheceu explicitamente, condenou com veemência e trabalhou com o objetivo de democratizar o sistema internacional e de reduzir as suas assimetrias, em parceria preferencial com os demais países do Sul global, a partir do interior das instituições do sistema e cooperando de maneira inovadoras em outras arenas. É nesse sentido que é possível pensar a PEB de Lula como revisionista, posto que ela buscou resistir à globalização e negociar os seus termos”. (Página 316.)
Questão: há algum indicador para avaliarmos se essas opções foram boas para o país? Ou é obvio que são melhores e o governo FHC não fez essas escolhas por incompetência?
À página 64, lê-se: “Quanto à educação, em comunhão com o notório subfinanciamento, que situa o país na retaguarda da região em termos de gastos por estudante, estão os deficientes indicadores de provisão e resultados educacionais”. Parece não ser o caso. A tabela abaixo apresenta o gasto como proporção do PIB para diversos países.
O Brasil gasta como proporção do PIB mais do que México, Peru, Colômbia e Paraguai. Como Peru, Colômbia e Paraguai tem PIB per capita menor, o gasto por aluno deve ser maior no Brasil. No gráfico 12 à página 14 do trabalho “Uma agenda econômica pós pandemia”, vemos que o gasto por aluno do Brasil é também maior do que o do México. Também está lá documentado que a eficiência econômica do gasto em educação é a menor para uma amostra de uns 40 países. Aumentar o gasto não parece que gerará muito resultado.
No capítulo 15, à página 404, afirma-se “as políticas de inspiração no paradigma liberal tiveram influência no período Collor-FHC (1989-2002)”. A caracterização do governo FHC como liberal não resulta do próprio conteúdo do livro. Temos um governo que aumentou o valor real do salário mínimo no mesmo ritmo que o período petista; que desapropriou para efeitos da reforma agrária área maior do que a do período petista; institucionalizou o SUS e o BPC, além de ter criado os programas que, uma vez unificados, deram origem ao Bolsa-Família; que universalizou a educação fundamental com o FUNDEF; etc. O que não se fez, como elevar a progressividade dos impostos, também não foi feito no governo petista.
Questão: por que o governo FHC é liberal? Esse conjunto de ações refere-se a um governo socialdemocrata. A diferença que houve entre os dois governos, e esse fato está documentado no capítulo 15 do volume, foi nas políticas de desenvolvimento econômico. O petismo trouxe para o centro da agenda o intervencionismo com o objetivo de dirigir e liderar o processo de investimento e de desenvolvimento em geral. Essa não é necessariamente uma agenda de esquerda nem socialdemocrata. Foi a agenda do governo Geisel ou da ditadura sul-coreana nos anos 70. Lá com sucesso e aqui sem sucesso. Novamente, carece no volume uma avaliação de desempenho do intervencionismo petista. Funcionou? Valeu a pena? Os usos dos recursos públicos geraram resultados que compensaram os investimentos feitos? Foi uma boa medida o programa de renovação da indústria naval? A mudança do marco regulatório do petróleo? A política de conteúdo nacional? O programa Inovarauto? Entre tantos outros. Não há no livro uma análise que documente que o retorno dessas e outras políticas intervencionistas se justificou. Ficamos sem saber os motivos do tom relativamente favorável a elas no capítulo 15. Parece que se trata de uma opção puramente ideológica do autor, sem nenhuma base factual que a justifique.
O capítulo de conclusão termina com a seguinte afirmação forte à página 455: “Os partidos que tiveram autoridade política durável na Nova República divergiram quanto à centralidade da pobreza em suas plataformas de governo e principalmente quanto às estratégias para enfrentá-la”. Na página seguinte, afirma-se: “Assim, tantos os indicadores sociais quanto a expansão do aparato de proteção social foram mais intensos sob as presidências do PT, quando comparadas com as do PSDB”.
Essas conclusões não são consequências dos fatos observados no período. Como vimos, a taxa de crescimento do valor real do salário mínimo não foi diferente. A quantidade de terras desapropriadas idem. A universalização do ensino fundamental, bem como SUS, BPC etc. não ficam aquém das conquistas petistas do período anterior. Há um processo evolutivo.
Adicionalmente, essa conclusão minimiza a importância da estabilização macroeconômica – que demanda energia e recursos do governo – para o combate à pobreza. Boa parcela da melhora que houve no período petista, bem como da piora dos últimos anos, resulta da piora da estabilidade macroeconômica. É necessário, para avaliar a priorização de que cada grupo político deu à pobreza, sabermos qual foi a contribuição de cada grupo para construir equilíbrio macroeconômico durável, pré-condição para que um combate à pobreza ocorra. FHC entregou ao PT a economia crescendo 2,5% ao ano com 3% do PIB de superávit primário, bases a partir das quais, no primeiro mandato, Lula aprofundou o ajuste fiscal e a estabilidade macroeconômica, inclusive com a forte acumulação de reservas. No entanto, essas bases foram sendo destruídas com a contínua piora fiscal que se observou desde 2010 e, com mais intensidade, de 2012 até 2014.
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