Macroeconomia

Por que a adesão ao uso de tecnologia é lenta na Segurança Pública

26 nov 2019

No último post, descrevi exemplos de tecnologias já disponíveis para construir cidades inteligentes e melhorar a Segurança Pública. Aqui discuto alguns desafios para as polícias brasileiras, e especial as do Rio de Janeiro, incorporarem essas ferramentas. São eles: acesso e qualidade a bancos de dados, sistema de compras públicas, treinamento policial e cultura de gestão.

Acesso e qualidade a bancos de dados. Tecnologias de informação são ferramentas que geram, cruzam e analisam dados. Assim, seu potencial é diretamente relacionado à quantidade de dados disponíveis. Só que o compartilhamento de dados é um enorme desafio no Brasil. Nossa cultura pública é de promover silos de dados, onde nem instituições públicas compartilham dados entre si sob a lógica de que informação é poder. Mesmo instituições como Ministérios Públicos estaduais que já estão convencidos do poder da análise de dados e que têm prerrogativa legal de acessá-los enfrentam dificuldades práticas enormes.

O caso de identificação de veículos clonados e roubados no Rio de Janeiro talvez seja o mais evidente de como problemas simples impedem maior uso dados para reduzir crimes. Hoje já existem na cidade do Rio de Janeiro centenas de câmeras com OCR capazes de ler placas. A integração dessas câmeras e o cruzamento de banco de dados da polícia e DETRAN permitiria uma identificação imediata de veículos roubados em circulação. Por que isso não é feito? Porque cada órgão coloca sua lista de dificuldades para não integrar informação e interesses institucionais prevalecem sobre o interesse do cidadão. Em outras cidades como São Paulo, Niterói, Florianópolis e Vitória, a detecção automática de carros roubados a partir da leitura de placas já é uma realidade.

Quebrar essa cultura que silos de dados é fundamental para também avançarmos a discussão. Passamos tanto tempo discutindo acesso a dados, que não conseguimos nem discutir as informações que precisam ser criadas. Por exemplo, o potencial de câmeras de reconhecimento fácil é tanto maior quanto o tamanho da base de pessoas com ficha criminal cadastradas. São Paulo oferece um exemplo a ser imitado. A PMESP junto com o sistema penitenciário começou em 2000 a montagem do FotoCrim que reúne fotos e informações de criminosos procurados, cumprindo pena ou presos em flagrante. Hoje o sistema tem mais de 500 mil perfis e permite a identificação fotográfica, do modus operandi e da região de atuação de suspeitos de crimes e facções criminosas, sendo elemento fundamental para fazer um sistema de reconhecimento facial funcionar em plena potência.

Compra de tecnologia. O setor público tem enorme dificuldade em adquirir tecnologia porque as compras públicas são reguladas pela Lei 8666. Empresas privadas compram tecnologia visitando fornecedores, entendendo seus produtos, barganhando por um preço mais baixo, negociando termos de atualização de softwares. O setor público tem que elaborar um termo de referência especificando tudo que se deseja comprar para que a qualidade técnica possa ser considerada como item para selecionar o ganhador além de preço. Esse processo leva meses e na velocidade que a inovação ocorre não é raro terminar o processo e a tecnologia adquirida já estar ultrapassada. Outro grande desafio é o custo de manutenção, que costuma ser a maior parcela dos recursos necessários para operação. Encontrar orçamento de custeio para incorporar essa despesa é outra questão importante e que dificultará seu uso em cidades com fortes restrições e variações orçamentárias, o que costuma ser a regra em cidades de países em desenvolvimento marcadas pela violência.

Aqui vejo a oportunidade para sermos mais inovadores em parceiras público-privadas. Há inúmeras câmeras sendo usadas por moradias e estabelecimentos comerciais. Essas câmeras poderiam ser conectadas com a polícia, que teria acesso gratuito e rápido ao conteúdo. O custo de aquisição e manutenção seria custeada por recursos privados, que seriam beneficiados pela polícia ser capaz de agir mais rápido e de forma mais eficiente com acesso a essa informação.

Treinamento policial. É difícil imaginar como poderemos ter uma polícia que faz uso intensivo de dados sem treinamento específico para isso. Usar mais dados e tecnologia é uma mudança de visão do trabalho policial que deve ser fomentada nas academias de polícias, algo ainda incipiente em muitas polícias do Brasil. O uso da tecnologia nada mais é que fazer uso de diferentes fontes de dados para decidir onde alocar policiais, como despachar viaturas em momentos de emergência e identificar suspeitos. Isso é o cerne da atividade do analista criminal, que na prática em muitos estados têm pouquíssimo treinamento para exercer sua função e vê sua carreira muito pouco valorizada dentro das polícias. As polícias precisam passar a estimular o treinamento em análise de dados ou devem contratar pessoas com esse tipo de formação.

Mudanças gerenciais. As inovações tecnológicas podem modificar o paradigma de atuação das polícias, de forma que a “intuição” de como aplicar policiamento seja substituída pela análise de dados e avaliação de resultados. Só que esses investimentos serão inócuos se não forem precedidos ou acompanhados por uma nova cultura de gestão, que valorize diagnósticos empíricos de criminalidade; enfatize o monitoramento de eficácia de ações e correções de rumo; se preocupe com a eficiência na alocação de recursos policiais; e preze pela supervisão de trabalho por superiores hierárquicos. De novo, as mudanças gerenciais introduzidas pela polícia militar de São Paulo que criou instrumentos como “matriz operacional”, “matriz organizacional”, “plano de policiamento inteligente” e estão descritas pelo Álvaro Camilo e Tulio Kahn no livro “É Possível”, servem de inspiração.[1]

O Rio de Janeiro tem excesso de problemas e elevado volume de crimes e por isso é fundamental definir onde a política de segurança pública deve focar seus esforços. Qual o problema central da Segurança Pública no Rio de Janeiro? Qual o papel central da polícia na rua? Essas parecem perguntas elementares, mas há pouco consenso sobre suas respostas. As lideranças políticas precisam definir qual seu objetivo central (ex. redução de homicídios), comunicá-los e cobrar resultados através de um sistema de metas.

Acredito que a prioridade de investimento em tecnologia deva ser para aumentar o controle sobre recursos policiais e permitir avaliar o melhor uso de policiais no terreno. Há coisas imediatas que podem e devem ser feitas e são relativamente baratas: sistemas de informação georeferenciada para alocar recursos policiais onde mais precisa, ordens de serviço eletrônicas para registrar qual a missão que o policial foi destinado a cada dia, cerco eletrônico de viaturas para garantir que as ordens de serviço sejam cumpridas e avaliação do trabalho policial.

Também é importante investir em tecnologias que facilitem o trabalho de investigação, como sistemas de identificação de projéteis de armas de fogo. As câmeras de rua também são uma importante ferramenta para facilitar a investigação de crimes e podem funcionar como mecanismo dissuasório se for percebida como real mecanismo de identificação de criminosos. Há, entretanto, três considerações importantes sobre uso de câmeras em vias. Primeiro, elas têm custo de manutenção elevado, então se o objetivo é redução de crimes, é importante priorizar sua colocação em áreas que pontos quentes de roubos de rua e roubo de veículo. Segundo, devemos sair de um modelo onde a imagem de câmeras são consumidas apenas em tempo real, para um modelo onde a polícia consegue consultar de forma fácil e ágil seu conteúdo para subsidiar uma investigação via um sistema integrado de imagens. Terceiro, é preciso ter muito claro que câmeras são um instrumento que facilita a investigação e por isso é o início da cadeia do processo criminal. Para ela gerar identificação e prisão de criminosos, é preciso que os interesses e esforço da polícia judiciária estejam alinhados nessa direção. Com isso ocorrendo, as câmeras começam a ter um efeito dissuasório e seu impacto fica bastante potencializado.

A tecnologia é uma ferramenta de combate ao crime e deve-se buscar utilizá-la em sua potência, mas devemos começar com o básico, o que inclui definir onde queremos chegar e enxergar e supervisionar os recursos policiais.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

[1] Camilo, Álvaro Batista e Kahn, Tulio (2008). Sistemas de informações policiais em São Paulo: Copom on-line, Fotocrim e Infocrim, in: Veloso, Fernando e Ferreira, Sergio Guimarães (org), É Possível: gestão da Segurança Pública e Redução da Violência. Rio de Janeiro: Contra Capa/ Instituto de Estudos de Política Econômica, Casa das Garças, 2008.

Comentários

Charles Lacerda
Werley
Parabéns pelo artigo
Claudio
Artigo muito interessante e direto. Como profissional de segurança pública busquei essa informação e encontrei no texto o que procurava. Parabéns Joana, ótimo trabalho.

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