Macroeconomia

Por que ainda é possível apostar no Brasil

12 ago 2020

A pandemia levou o Índice de Incerteza da Economia Brasileira (IIE-Br), do FGV IBRE, a registrar seu recorde de alta, atingindo níveis muito acima dos verificados em outras fortes crises desde 2000, quando se inicia a série histórica do indicador.
 

Em abril de 2020, o IIE-Br alcançou 210,5 pontos. Em comparação, nos picos anteriores – a eleição presidencial de 2002, a crise financeira de 2008/09 e a perda do grau de investimento do Brasil junto à S&P em 2015 –, o índice chegou a, respectivamente, 132,1, 132,4 e 136,8 pontos.
 

A chamada “janela de padronização” do IIE-Br é de janeiro de 2006 a dezembro de 2015. A incerteza média desse período corresponde ao valor 100 do índice, que pode ser considerado um nível “normal” do indicador. Como se vê, o patamar de 210,5 pontos atingido em abril de 2020 é extremamente elevado para os padrões do IIE-Br. Em julho, o IIE-Br já havia recuado para 163,7 pontos, mas ainda permanece muito acima dos prévios picos históricos. 
 

Em recente artigo de Altig et al., publicado em 24/7/2020, no site VoxEU, do Centre for Economic Policy Research (CEPR, rede de pesquisa europeia) – “Economic uncertainty in the wake of the COVID-19 pandemic (Incerteza econômica na esteira da COVID-19)” –, são destacados os diversos aspectos da incerteza trazida pela Covid-19.
 

Em termos epidemiológicos, há dúvidas sobre o grau de contágio e a letalidade do vírus, sobre o tempo necessário para criar uma vacina e aplicá-la às populações e sobre a duração e a eficácia do distanciamento social. Na vertente econômica, há incerteza sobre os impactos econômicos de curto prazo e os efeitos das reações de políticas públicas, sobre a velocidade da retomada quando a epidemia retrocede, e sobre qual será a persistência das mudanças induzidas pela pandemia em padrões de gastos de consumo, viagens de negócios e trabalho em casa.
 

Como se pode constatar pelos números, o Brasil foi pego em cheio pela pandemia, situando-se entre os países com maior contagem de registros de infectados e de mortes pelo vírus. Dessa forma, o país não só tem que lidar com as enormes e inegáveis consequências negativas da Covid-19 no curto prazo, mas também com a tremenda incerteza que paira sobre como será o médio e longo prazo no pós pandemia.
 

O que indicadores como o IIE-Br apontam é que apenas estender para o futuro a conjuntura sombria do presente é uma forma de autoengano semelhante, mas em direção contrária, à do excesso de otimismo. É verdade que a incerteza, por si só, pesa na atividade econômica, reduzindo o investimento e os gastos com bens de consumo duráveis mais caros, como aponta a literatura econômica. Por outro lado, como a própria palavra incerteza sugere, o futuro está nublado, e há poucos elementos visíveis para se construir cenários “confiáveis”. Em outras palavras, não se podem descartar, no horizonte, nem quadros pessimistas nem os que surpreendam positivamente.
 

Contudo, a alta incerteza não pode servir de justificativa para que economistas e outros analistas abram mão de produzir projeções, mesmo que esse exercício se torne muito mais difícil. E, ao se trabalhar com o que está por vir, não se pode negligenciar uma consequência direta da crise pela qual o mundo passa: o aumento do endividamento público global, que inclui, evidentemente, o do próprio Brasil.
 

Recente artigo dos economistas Victor Gaspar e Gita Gopinath, no Blog do FMI, indica que a dívida pública global deve atingir 101,5% do PIB do mundo este ano, o patamar mais elevado de todos os tempos, superior inclusive ao pico após a Segunda Guerra Mundial. No caso dos países avançados, o salto previsto na relação dívida/PIB em 2020 é de 26,5 pontos porcentuais (p.p.) do PIB, de 104,7% (previsão para o final do ano feita antes de a pandemia entrar em cena) para 131,2% do PIB. Já em relação aos emergentes, o aumento, no mesmo tipo de comparação, é de 6,8 p.p. do PIB, de 56,3% para 63,1% do PIB. 
 

O Brasil, por sua vez, deve ter um aumento da relação dívida/PIB em 2020 na casa dos 20 p.p., o que o aproxima mais do padrão do mundo rico do que daquele das nações emergentes. O valor absoluto da dívida bruta brasileira, como proporção do PIB, deve avançar para o intervalo entre 95% a 100% ao final deste ano, também acima da média dos demais países emergentes.
 

Ocorre, porém, que a política monetária e fiscal do mundo avançado mergulhou os mercados globais em uma abundância de liquidez jamais vista. Esse fenômeno cria condições diferenciadas para os países ajustarem suas contas públicas depois da necessária explosão de gastos causada pelo imperativo de combater, nos fronts sanitário, humanitário e econômico, os efeitos da epidemia. O Brasil está aumentando drasticamente o seu endividamento público, mas a grande maioria dos países relevantes da economia global também o está fazendo. Há uma espécie de tolerância excepcional, atrelada ao choque extraordinário do novo coronavírus. Depois de um forte pânico inicial em março, quando o mundo ocidental foi abalroado pelo surto virótico, que até então só havia afetado a China e outras nações orientais, os mercados se tranquilizaram, inclusive os de ativos brasileiros. Hoje, o mercado acionário nacional, o risco país e a curva de juros sinalizam uma macroeconomia estável.
 

É verdade que o câmbio continua muito depreciado, mas isso parece fazer parte de uma reprecificação mais fundamental do dólar, acoplada a um ajuste de preços relativos no Brasil possivelmente mais estrutural. A inflação e as expectativas inflacionárias no Brasil permanecem, por seu turno, em níveis de recorde histórico de baixa, o que dá à depreciação da moeda um caráter inteiramente distinto daquele de episódios do passado associados a crises do balanço de pagamentos. 

Todo esse quadro de trégua nos mercados não significa, porém, que não haja riscos. Na verdade, voltando ao leitmotif desta Carta, os tempos são de grande incerteza. Para alguns analistas, as maciças injeções de liquidez e expansões fiscais dos países ricos, somadas à possibilidade de “repressão financeira” para reduzir o fardo do endividamento público, poderiam levar a uma volta da inflação global no médio prazo. Nesse caso, quase tudo o que se mencionou até aqui sobre a tolerância e a extensão de prazos para ajustes de desequilíbrios macroeconômicos se desfaz. Um cenário de alta repentina da inflação e dos juros internacionais com certeza traria dificuldades quase insuperáveis para países emergentes como o Brasil, com expressivas vulnerabilidades fiscais.
 

Na seara sociopolítica, a polarização dos últimos anos pode ser fortemente vitaminada pelas inevitáveis consequências de curto e médio prazo da pandemia. O desemprego e a precarização do trabalho caminham para atingir níveis recorde, e a perspectiva do fim ou da drástica redução do auxílio emergencial – impossível de financiar de forma duradoura ou permanente – aponta na direção da agudização das tensões sociais.
 

Em todo o mundo, desde 2019, os germes das revoltas sociais e dos movimentos populares estão no ar. Na Carta do IBRE anterior, de julho de 2020, abordamos esse tema, com destaque para a onda global de protestos na esteira da morte, nas mãos da polícia, de George Floyd, cidadão negro norte-americano. As condições extremamente adversas do mercado de trabalho no Brasil no período à frente, em função da Covid-19 – e que tendem a se agravar com o fim dos megaprogramas de apoio à renda e ao emprego do governo federal – podem em tese levar a um cenário de embate sociopolítico entre as camadas mais vulneráveis da população e a elite capitalista, com risco para os consensos mínimos que dão base à integridade do tecido socioinstitucional.
 

Como se vê, o que não faltam são motivos de preocupação com a evolução da conjuntura nacional nos próximos anos. Entretanto, apesar desse alerta, e da veracidade dos riscos aqui descritos, a parte final desta Carta tentará sustentar uma visão moderadamente otimista do futuro nacional no médio prazo.
 

Em primeiro lugar, é preciso mencionar o importante papel desempenhado pela ciência moderna diante do desafio do coronavírus. Impressionam os resultados do esforço hercúleo, em inúmeros países, para compreender e combater o novo coronavírus. Em menos de um ano, inúmeros aspectos da doença foram desvendados, medicações testadas e entendidas nos seus limites e possibilidades, testes massificados, protocolos médicos de tratamento desenvolvidos e aperfeiçoados e, principalmente, diversas frentes para a criação de uma vacina eficaz avançaram celeremente, de forma que esse imenso feito científico e humanitário pode se concretizar num período de tempo bem menor do que até então se considerava como um prazo mínimo para esse tipo de conquista. Em outras palavras, já se vê no horizonte a cavalaria da ciência em galope acelerado para dar uma solução definitiva à pandemia, o que pode se concretizar – gradativamente, é claro – ao longo de 2020/2021.
 

Em termos do ambiente financeiro internacional, os avanços das autoridades econômicas e monetárias, desde a grande crise global, no manejo de grandes crises também é notável. Em que pese a menção anterior à visão de risco inflacionário, a maior parte dos analistas e a atual literatura econômica dão suporte à ideia de que o cenário à frente, por um longo período, deve ser mesmo o de muita liquidez, e baixos juros e inflação. Permanece, é verdade, o desafio do baixo crescimento, que já atinge boa parte do mundo desenvolvido e é também problema de parcela dos emergentes, como o Brasil. De qualquer forma, é pouco provável que uma repentina irrupção da inflação e dos juros encurte o período de “dias de sol” durante o qual as nações devem tentar ajustar suas contas públicas. Não significa dizer que o risco não exista, como mencionado acima, mas sim de dimensioná-lo adequadamente.
 

Já em termos do risco sociopolítico, joga em favor do Brasil o amadurecimento institucional desde a redemocratização. Embora a distribuição de renda seja péssima, o Brasil montou uma razoável rede de seguridade social ao longo dos últimos anos, para o seu padrão de renda per capita, o que acolchoa as tensões deste momento disruptivo da economia e do mercado de trabalho. A pandemia engendrou também um momento “solidário” na relação entre os atores da vida social extremamente injusta e desigual do país. Com o advento do auxílio emergencial, ainda que temporário, a elite econômica brasileira apoiou tácita ou explicitamente que um adicional de 0,7% do PIB seja gasto mensalmente com a enorme legião de vulneráveis. Mesmo com a perspectiva de um déficit primário de 12,4% de um PIB que deve recuar 5,5%, o mercado financeiro assentiu, com reflexo no preço dos ativos, que uma gigantesca ajuda fosse dada aos mais necessitados. De certa forma, a tensão distributiva por trás da polarização política dos últimos anos pode ter se amainado.
 

Evidentemente, esses momentos de concórdia social não duram muito. Passada a pandemia, a tensão distributiva deve voltar, e a grande questão é saber como será encaminhada por quem detém o poder econômico e político. Dilemas concretos terão de ser enfrentados, como aquele entre criar um novo programa social abrangente, na picada aberta pelo auxílio emergencial, ou voltar à estratégia estritamente focalizada do Bolsa Família. Parece que nossos “invisíveis” se tornaram mais visíveis durante a crise. O mercado de trabalho debilitado também exigirá ações da esfera pública para que a classe trabalhadora consiga superar com menos sofrimento os danos causados à economia pela Covid-19. E haverá, finalmente, cobrança de ações governamentais de estímulo à economia, como, por exemplo, um novo programa de investimento público.
 

Diante desse quadro, o crescimento de temores com a situação fiscal se torna inevitável. Algumas perguntas já pairam no ar: em que velocidade o mercado cobrará que o déficit primário retorne para o nível de 2% do PIB? Haverá necessidade de aumentar a carga tributária para fazer o ajuste fiscal? Caso a resposta seja positiva, quais setores pagarão a conta?
 

Não há resposta fácil ou evidente para nenhuma dessas questões, e elas compõem o pano de fundo de grande incerteza do qual partem as ponderações desta Carta. Embora o momento seja difícil, não é hora de jogar a toalha. Não há razões para se cair no pessimismo radical ou no ceticismo absoluto. É preciso levar em conta o indiscutível amadurecimento institucional brasileiro, que nem sempre é devidamente apreciado no burburinho permanente das turbulências conjunturais. Nos últimos anos, houve notável evolução institucional no que tange à atenção com a situação fiscal, como fica claro na aprovação legislativa de duras medidas como as do teto do gasto (em que pesem seus equívocos) e da reforma da Previdência.
 

Esse avanço brasileiro, tantas vezes menosprezado pela própria intelligentsia do país, aparece, por exemplo, em recente relatório do JP Morgan, que sugere que o Brasil não deve ter pressa em fazer o ajuste fiscal pós pandemia, sob pena de frear demasiadamente a atividade. Esse tipo de recomendação é um claro sinal de que relevantes atores externos já percebem que o trato das finanças públicas no Brasil, ainda que não “germânico”, evoluiu para um nível de seriedade que inexistia até o passado recente.
 

Adicionalmente, a liquidez internacional, associada a alguns ganhos de credibilidade dos policy makers brasileiros, ajuda a prolongar o cenário de juros domésticos muito baixos. O resultado é que, mesmo com uma dívida muito maior, o serviço é contido, e a relação dívida/PIB pode ter uma dinâmica mais favorável.
 

São, portanto, diversos elementos, dos mais diferentes escaninhos da vida nacional – do aumento (ainda que momentâneo) da solidariedade social ao ambiente de juros baixos e aos avanços de governança macroeconômica – que indicam ser possível que os múltiplos atores da ebuliente democracia brasileira consigam chegar a acordos que, paulatinamente, removam os obstáculos à retomada do desenvolvimento socioeconômico do país. Embora a dimensão atual da incerteza traga muita ansiedade, ainda há razões racionais para se apostar no Brasil. 


Esta é a Carta do Ibre de agosto de 2020, publicada na revista Conjuntura Econômica do mesmo mês.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.      

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