Por que é prematuro pensar na criação de uma renda universal mínima no Brasil
Tem crescido o apoio, em nível mundial, à implementação de programas que visem garantir uma renda universal mínima a todos. Essa corrente de apoio a programas de renda universal mínima tem ganhado força como forma de proteger a população mundial do cada vez mais rápido processo de automação, que é a substituição de trabalhadores humanos por robôs, que vem se alastrando por diversos países do planeta (veja aqui um exemplo de artigo recente sobre o tema).
Em terras brasileiras essa proposta de criação de uma renda universal mínima pode ganhar força, especialmente diante das preocupações crescentes com os supostos efeitos negativos que a reforma trabalhista, realizada recentemente em nosso país, poderia produzir sobre a qualidade do emprego (para exemplos de textos preocupados com uma “precarização” do emprego em função da reforma trabalhista brasileira ver aqui, aqui e aqui).
No entanto, a despeito de partilhar de alguns dos anseios que vêm sendo levantados na mídia nacional em relação às grandes mudanças que devem acontecer nas relações trabalhistas brasileiras nas próximas décadas (em virtude da crescente automação do emprego e da reforma trabalhista), acredito ser prematura a ideia de criar um programa de renda universal mínima em nosso país. Minha crença está baseada, principalmente, em três fatores.
Primeiro, não está claro quais os potenciais efeitos da reforma trabalhista sobre o mercado de trabalho. Particularmente, há grande preocupação com a fragilidade da rede de proteção oferecida pelos novos contratos de trabalho criados pela reforma trabalhista, como: o intermitente e o de tempo parcial[1].
Juristas renomados têm apresentado críticas bastante razoáveis a esses novos contratos de trabalho, o intermitente e o de tempo parcial, que foram criados pela reforma trabalhista (para conhecer as críticas mais estruturadas ao primeiro ler aqui, e ao segundo ver aqui). Em minha opinião, uma crítica que vem sendo levantada merece lugar de destaque, dado que pode representar um forte desestímulo à adesão dos trabalhadores a estes dois novos tipos de contrato de trabalho. Essa crítica é referente ao recolhimento complementar da previdência que, na prática, obriga aquele trabalhador vinculado aos novos tipos de contrato de trabalho a pagar uma alíquota maior do que aquela efetivamente paga pelos demais trabalhadores (para uma visão mais detalhada dessa crítica recomendo olhar aqui).
Se a minha percepção estiver correta, e a crítica ressaltada acima de fato desestimular a adesão aos dois novos tipos de contrato de trabalho criados pela reforma, então não deve haver grande criação de postos de trabalho nestas duas novas formas de contratação. Com poucas vagas sendo criadas nestas novas categorias de emprego, como o intermitente e o de tempo parcial, não parece haver necessidade de desperdiçar capital político com a criação de um programa de renda universal mínima, cujo objetivo seria exatamente de contrabalançar as perdas advindas da proliferação destas novas formas de contratação.
Na prática os dados parecem corroborar minha visão (e a dos críticos), dado que a criação de vagas intermitentes e de tempo parcial tem sido pífia. Desde a reforma trabalhista, em novembro de 2017, foram criadas inexpressivas 20.213 vagas para trabalhadores intermitentes e 11.569 vagas para trabalhadores em tempo parcial. Números bastante tímidos se comparados ao estoque total de mais de 37 milhões de trabalhadores que existiam no nosso país em janeiro de 2018 (segundo dados do CAGED).
Entretanto, mesmo que minha visão esteja incorreta – e que, portanto, a criação de postos de trabalho nos novos tipos de contrato trazidos pela reforma não venha a ser fortemente desestimulada pelo malfadado desenho da contribuição complementar para a previdência –, ainda deve demorar até que seja estabelecida uma jurisprudência mais sólida acerca das novas formas de contratação. Dessa maneira, a criação de postos de trabalho nos novos contratos trazidos pela reforma deve permanecer, ainda por muitos anos, em ritmo bastante lento, em virtude da já conhecida morosidade da justiça brasileira. Essa constatação, de que mesmo no melhor cenário ainda deve demorar muitos anos até que haja um crescimento mais expressivo da geração de vagas nos dois novos tipos de contrato de trabalho, reforça a ideia de que não vale a pena desperdiçar capital político, no presente momento, com a implementação de um programa de renda universal mínima.
Uma segunda razão é que, com base nas afirmações de especialistas, parece razoável supor que ainda deve demorar pelo menos duas décadas até que as práticas de automação comecem a afetar mais fortemente o mercado de trabalho brasileiro. Os especialistas afirmam que a disseminação dos processos de automação deve se acelerar, nos países desenvolvidos, a partir de 2020. Porém, esses mesmos analistas dizem que deve demorar entre 15 e 20 anos, a partir de 2020, até que as novas tecnologias de automação estejam completamente disseminadas naqueles países (para maiores detalhes sobre as projeções dos especialistas acerca do tempo que levará para a completa disseminação dos novos processos de automação nos países desenvolvidos ver aqui).
Note que a projeção acima refere-se aos países desenvolvidos. Diante dos custos trabalhistas menores nos países em desenvolvimento, e da defasagem temporal natural para que novas tecnologias sejam adotadas nestas economias, é provável que o processo de disseminação da automação leve um período ainda mais longo para afetar os emergentes (para ver um estudo que projeta maior defasagem temporal na disseminação da automação nos países em desenvolvimento, comparativamente aos países desenvolvidos, clicar aqui). Portanto, parece razoável assumir que o mercado de trabalho brasileiro, por estar localizado em um país em desenvolvimento, só será mais severamente afetado pela disseminação das novas práticas de automação daqui a duas décadas. Será nesse momento, quando essas novas tecnologias já estarão completamente difundidas nos países da fronteira da inovação, que começarão a produzir impactos mais expressivos nos países na periferia dos avanços científicos.
A projeção discutida acima, de que levará ao menos duas décadas até que os processos de automação comecem a produzir impactos mais expressivos no mercado de trabalho brasileiro, também corrobora minha visão de que parece ser prematuro investir capital político na aprovação de um programa de renda universal mínima. Este programa teria como objetivo criar uma rede passiva de proteção ao trabalhador que seria de pouquíssima serventia nas próximas duas décadas, dado que as projeções feitas pelos especialistas em novas tecnologias sugerem que a automação só deve começar a produzir efeitos mais negativos no mercado de trabalho brasileiro daqui a mais de vinte anos.
Em terceiro lugar, parece-me inoportuno propor um programa que tenderia a aumentar os gastos do governo diante da grave crise fiscal que acomete o Estado brasileiro. É verdade que poderiam ser pensadas novas formas de arrecadação para viabilizar financeiramente a implementação de algum programa de renda universal mínima em nosso país. No entanto, caso novas receitas venham a ser realmente criadas, acredito que a melhor forma de gastar esses recursos seria com o estabelecimento de políticas ativas, focadas em preparar melhor o trabalhador para os desafios previstos para o seu futuro. Essa alternativa seria melhor do que utilizar esses novos fundos na implementação de políticas passivas, como um programa de renda mínima universal, desenhadas apenas para ajudar o trabalhador após este já ter sido afetado pelas mudanças esperadas.
Em resumo, concordo com os anseios que vem sendo levantados na mídia nacional sobre o futuro do emprego em nosso país. Porém, discordo da estratégia proposta de criação de um programa de renda universal mínima para lidar com as mudanças que devem afetar o mercado de trabalho brasileiro nas próximas décadas.
[1] Na verdade, o contrato de trabalho em tempo parcial não foi formalmente criado pela reforma trabalhista. Porém, parece razoável dizer que o referido contrato de trabalho foi criado pela reforma trabalhista, visto que as mudanças produzidas neste contrato foram bastante expressivas.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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