Macroeconomia

Por que as instituições fiscais de FHC não evitaram a crise das contas públicas?

22 fev 2019

O olhar retrospectivo nos leva para um período, segunda metade da primeira década deste século e início da segunda, em que parecia que a solvência da dívida pública no Brasil era um tema do passado.

Em abril de 2008, a S&P estabeleceu que a dívida soberana brasileira apresentava grau de investimento. Essa decisão foi seguida pela Fitch em maio de 2008, e pela Moody’s em setembro de 2009.

O Brasil tinha atingido um nível superior de civilidade em termos de finanças públicas. Era uma sociedade que lidava de forma civilizada com o problema distributivo: por meio de negociação no Congresso Nacional, que termina em elevação de receita ou em corte de gastos. Não mais em inflação.

A melhora na classificação de risco da dívida soberana brasileira era o reconhecimento desse estágio civilizatório superior.

Os marcos de nossa consolidação fiscal foram a negociação das dívidas dos Estados com a União e a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

A acordo relativo às dívidas estaduais com a União impedia os Estados cujos contratos de renegociação estivessem em vigor de assumir novas dívidas. Ou seja, a Secretaria do Tesouro Nacional tinha o direito de autorizar ou não novo endividamento, além de poder conceder ou não aval para novas dívidas.[1]

Adicionalmente, como já acontecera no contrato de renegociação anterior, no governo Itamar de 1993, quando um Estado ficasse inadimplente, o Tesouro tinha o poder de não transferir a cota respectiva do Fundo de Participação dos Estados (FPE). E, se a inadimplência fosse superior à cota parte do Estado no FPE, o Tesouro poderia sequestrar receita de ICMS.

Pelo acordo do governo FHC, os Estados tinham que transferir de 6,5% até 15% da receita corrente líquida (RCL) para o Tesouro como pagamento da dívida, a depender de o Estado ter dado maior ou menor entrada no momento da renegociação. Se, após 20 anos, a dívida persistisse, teriam dez anos para acertar o restante, agora sem o limite superior da RCL.

A LRF, entre inúmeros outros dispositivos, impedia que o gasto dos Estados com a folha salarial suplantasse 60% da RCL. Se esse teto fosse atingido, uma série de cláusulas de correção era acionada até a queda do gasto abaixo deste limite.

A lógica era cristalina. A renegociação das dívidas obrigava os Estados a produzirem superávit primário para pagar suas dívidas que, com a renegociação, havia sido federalizada. Tratava do estoque passado de dívida.

A LRF era instrumento para impedir que houvesse piora futura das contas públicas.

Havia outro princípio por detrás das instituições fiscais construídas no governo FHC. Este foi menos notado.

As instituições fiscais de FHC amarravam as mãos dos Estados e deixavam todo o espaço de discricionariedade da política fiscal nas mãos do Executivo nacional, na figura da STN.

A hiperinflação brasileira do final do governo Sarney e do governo Collor tinha sido essencialmente fruto do descontrole dos gastos estaduais. Os governadores utilizavam os bancos estaduais como forma de financiamento.

A economia política é muito clara. Os governadores são cobrados pelos seus eleitores por sua capacidade de ofertar os serviços de saúde, educação e segurança, além da construção de infraestrutura – estradas e infraestrutura urbana, principalmente mobilidade nas grandes cidades e saneamento básico.

Adicionalmente, os governadores sofrem fortíssima pressão das corporações – principalmente de servidores públicos – para elevar os salários.

Se o financiamento de todas essas demandas produzir como efeito colateral o desequilíbrio macroeconômico do país – inflação, elevação de risco, fuga de capitais, queda do crescimento ou mesmo recessão, além do aumento do desemprego –, o Executivo estadual não será punido pelo eleitor.

O eleitor punirá o Executivo nacional e, principalmente, o seu partido político.

Essa é a economia política da democracia brasileira.

As instituições fiscais de FHC incorporaram esse aprendizado. Por esse motivo, era necessário amarrar as mãos dos Estados e deixar todo o espaço que houver de discricionariedade da política fiscal a cargo da União. Somente o governo central é punido pela bagunça macroeconômica. Ele, portanto, maneja os instrumentos que podem gerar desequilíbrio macroeconômico.

É por essa razão, por exemplo, que nunca se preocupou com o estabelecimento de um limite de endividamento da União, apesar de haver uma previsão de que este teto seria estipulado por meio de lei.

A visão subjacente é de que não há necessidade de amarrar as mãos do governo central. Ele não promoverá bagunça fiscal pois, se o fizer, será severamente punido. Sabedor disso, não brincará com o orçamento público.

No parágrafo anterior fica claro a condição para que o mecanismo funcione: “sabedor disso...” E se os gestores não forem sabedores?

Foi isso que ocorreu no final de 2006, quando houve a saída do secretário do Tesouro Nacional, Carlos Kawall. Em junho de 2007, Arno Augustin assumiu a STN. Já Guido Mantega tornou-se ministro da Fazenda em 2006.

Dessa forma, passamos a ter no Ministério da Fazenda, na STN, e, a partir de 2011, também na presidência da República, com Dilma Rousseff, gestores que eram profissionais de economia formados na tradição heterodoxa.

Em função da forma como a teoria de Keynes foi absorvida pelo pensamento heterodoxo brasileiro, há neste grupo exagerado otimismo quanto ao impacto do gasto público na geração de crescimento econômico e, consequentemente, na queda do endividamento do governo.

Esse otimismo fez com que a STN deixasse de exercer o papel de zelar pela higidez fiscal dos Estados. Fechou os olhos à deterioração das contas estaduais ao longo do período de 2008 até 2014.

Dados levantados pela minha colega do Ibre, Vilma Pinto, mostram que a STN, entre 2012 e 2014, deu aval para endividamento dos Estados no valor de R$ 140 bilhões! Era muito comum que Estados que não tinham boa situação fiscal e, portanto, aos quais o Tesouro não poderia permitir a assunção de nova dívida, obtivessem esta permissão em função de uma regra de excepcionalidade.

Adicionalmente, a contabilidade fiscal de diversos Estados passou e adotar manobras fiscais. Como o beneplácito dos TCEs, as Secretarias da Fazenda estaduais passaram a esconder da contabilização dos gastos com pessoal o IRPF dos servidores e os gastos com aposentados e pensões.

Ou seja, o controle preventivo determinado pela LRF falhou e o Tesouro lavou as mãos: bastava deixar de dar avais aos Estados cujas contabilidades estivessem maquiadas.

Além do descuido com as contas estaduais, o Ministério da Fazenda exagerou nas medidas desenvolvimentistas, principalmente crédito subsidiado do BNDES.

Novamente temos aqui a questão da visão de mundo, ou do entendimento do funcionamento da economia. Os economistas heterodoxos acreditam que o crédito subsidiado para investimento de empresas, por meio de bancos públicos de fomento, produz forte aceleração do crescimento econômico. Eles assim interpretam a experiência de desenvolvimento dos tigres asiáticos, os casos mais evidentes de superação da armadilha da renda média na segunda metade do século XX.

Como já discutimos neste espaço, a desorganização fiscal associada à péssima alocação do investimento, e a um ciclo de endividamento das empresas sem que houvesse aumento da capacidade de geração de caixa – fruto da má alocação de capital –, explica a profundidade da crise dos anos recentes e parte de sua longuíssima extensão.

O Partido dos Trabalhadores, o principal responsável pela crise, foi severamente punido. A presidente Dilma foi impedida, o partido foi muito mal na eleição municipal de 2016 e houve transição política para um governo de direita.

Ou seja, ao contrário do que se pensa, nossas instituições funcionaram exatamente da forma como foram desenhadas. Elas somente não foram feitas à prova de uma presidente da República, um ministro da Fazenda e um secretário do Tesouro que têm o entendimento heterodoxo aqui descrito do funcionamento da economia.

A coluna considera que é impossível construir instituições fiscais que sejam imunes a gestores que pensam dessa forma. Simplesmente não é possível eliminar integralmente o espaço de discricionariedade da política macroeconômica. Ideias erradas no poder sempre manterão sua capacidade de levar a maus resultados.


[1] Sobre a renegociação da dívida dos Estados com a União, veja “Política Fiscal na Primeira fase do Plano Real, 1993-1997”, de Murilo Portugal, capítulo 19 de A Crise Fiscal e Monetária Brasileira, volume em homenagem ao economista Fábio de Oliveira Barbosa, organizado por Edmar Bacha, editora Civilização Brasileira, 2017.

Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de fevereiro de 2019.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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Ricardo Vianna
fernando
A.C
Carlos
fernando
fernando

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