Programa Reformar e o desafio da inadequação habitacional no Brasil

O programa Reformar pode contribuir para reduzir o déficit habitacional qualitativo no Brasil. Tem ainda o potencial de gerar mais emprego e renda no setor, mas o mercado de trabalho, que já opera bastante pressionado, pode ser um gargalo.
A carência habitacional brasileira é tradicionalmente medida pelo déficit habitacional — indicador que expressa o número de moradias necessárias para atender adequadamente às famílias que vivem sem casa própria ou em condições precárias. Em 2023, a Fundação João Pinheiro estimou esse déficit em 5,977 milhões de domicílios, uma leve redução de 3,8% em relação a 2022. O resultado aponta uma melhora, mas o passivo continua elevado e reflete a dificuldade em de se garantir o direito à moradia digna para todos.
Contudo, há outro componente igualmente relevante e muitas vezes negligenciado: a inadequação dos domicílios. Diferente do déficit quantitativo — que exige novas moradias —, a inadequação diz respeito à qualidade das condições habitacionais existentes. Trata-se de um déficit qualitativo, que reflete problemas de infraestrutura urbana, posse do terreno ou condições edilícias precárias. Segundo a Fundação João Pinheiro, 27,6 milhões de domicílios apresentavam algum tipo de inadequação em 2023, o equivalente a 40,8% das moradias urbanas duráveis do país, com crescimento de 4,3% em relação ao ano anterior.
Entre as formas de inadequação, a edilícia envolve o armazenamento precário de água, coberturas danificadas, ausência de banheiro exclusivo, piso inadequado e improvisação de dormitórios. O dado mais alarmante é o de nove milhões de moradias sem caixa d’água, afetando principalmente famílias com renda de até três salários mínimos. Esses números revelam que o problema da habitação no Brasil vai muito além da construção de novas unidades, sendo também, em ampla medida, uma questão de requalificação do estoque habitacional existente.
É nesse contexto que surge o Programa Reformar (Reforma Casa Brasil), lançado pelo governo federal em 2025 como uma resposta concreta à precariedade das moradias. Com um orçamento inicial de R$ 40 bilhões, o programa oferece crédito facilitado e assistência técnica para reformas e melhorias em residências já existentes. A política abrange desde intervenções estruturais em telhados, pisos e instalações elétricas e hidráulicas, até obras de acessibilidade e ampliação.
O Reformar foi desenhado para atingir três faixas de renda:
- Faixa 1: até R$ 3.200, com juros de 1,17% ao mês;
- Faixa 2: entre R$ 3.200 e R$ 9.600, com taxa de 1,95%;
- Faixa 3: acima de R$ 9.600, com crédito de até 50% do valor do imóvel, voltado à classe média.
A gestão dos financiamentos ficará a cargo da Caixa Econômica Federal, com prazos de pagamento entre 24 e 180 meses, limitando as prestações a 25% da renda familiar nas faixas mais baixas. A meta inicial é realizar 1,5 milhão de contratações, mobilizando cerca de R$ 20 bilhões em investimentos diretos no setor da construção.
Mais do que um programa de crédito, o Reformar representa uma mudança de foco nas políticas habitacionais brasileiras. Depois de décadas concentradas na produção de novas unidades — como no caso do Minha Casa, Minha Vida —, o país passa a olhar para o enorme contingente de moradias inadequadas. Essa estratégia é coerente com a estrutura do déficit habitacional brasileiro, em que a maior parte das carências está ligada à inadequação das moradias e não à falta absoluta delas.
Ao financiar reformas e melhorias, o programa tem potencial para elevar a qualidade de vida das famílias, aumentar a segurança e salubridade das casas e valorizar os imóveis, ao mesmo tempo em que estimula a geração de emprego e renda no setor da construção. Além disso, ao incluir assistência técnica, o Reformar pode corrigir deficiências históricas das autoconstruções, garantindo soluções mais seguras e duradouras.
O sucesso do programa, contudo, dependerá de uma execução eficiente, capaz de articular crédito, subsídio e assistência técnica de forma integrada, especialmente nas regiões de maior vulnerabilidade.
Nesse caso, a execução pode encontrar alguns grandes entraves, especialmente no que diz respeito à mão de obra necessária. O setor já vive um momento de forte escassez de mão de obra.
É fato que os impactos serão expressivos, não apenas no mercado de trabalho, mas determinará um grande aumento na demanda de materiais de construção, com reflexos também na indústria.
De acordo com os dados mais recentes da PIM – Pesquisa Industrial Mensal e da PMC – Pesquisa Mensal do Comércio, estava em curso uma desaceleração da demanda. O programa deve reverter essa tendência, assim será essencial também acompanhar os efeitos sobre os preços.
Estimativas preliminares apontam que, se a demanda gerada pelo programa se distribuir igualmente entre as empresas do setor e as atividades de autorreforma, a geração direta de emprego pode chegar a cerca de 84 mil postos de trabalho no setor formal e 250 mil no setor informal. O impacto da soma desses efeitos corresponde a 3,6% do pessoal ocupado na construção em 2024.
Supondo que todo o valor do programa (R$ 40 bilhões) seja liberado em um único ano, o impacto total sobre o PIB da construção (empresas e autoconstrução) é estimado em R$ 17,7 bilhões. Esse valor corresponde a 4,9% do PIB setorial estimado para 2024. Considerando a economia como um todo, esse efeito poderia acrescentar 0,38 ponto percentual ao PIB por conta da soma dos efeitos diretos (construção), indiretos (seus fornecedores) e induzidos (gasto da renda resultante dos dois primeiros).
Os efeitos indiretos que resultam em demanda para a indústria e para o comércio de materiais devem ser da ordem de R$ 35,2 bilhões, o equivalente a 4,8% da produção desses elos da cadeia produtiva da construção.
Um ponto importante se refere à geração de impostos. Juntos, os efeitos diretos, indiretos e induzidos do programa devem elevar o montante total de tributos arrecadados em R$ 19,6 bilhões – sempre supondo que o total dos recursos anunciados será liberado em um único ano. Essa arrecadação adicional equivale a quase metade do valor anunciado. Isso se deve, em grande medida, aos fortes efeitos de encadeamento produtivo que o setor da construção é capaz de gerar, beneficiando o conjunto da economia.
Essas estimativas de impacto sugerem dois pontos de atenção relativos aos preços e ao mercado de trabalho setoriais. Dado o impacto sobre a demanda por materiais, caso houvesse elevação de preços, o efeito sobre a economia real (empregos, volume de produção etc.) acabaria diluído em parte. No entanto, a Sondagem setorial da FGV sugere que as empresas do setor operam com relativa ociosidade e níveis de estoque considerados, via de regra, como adequados, o que tende a reduzir o impacto inflacionário do programa.
Um aspecto mais crítico refere-se ao mercado de trabalho que já opera bastante pressionado, sendo a principal limitação das empresas do setor, como vem sendo reportado há algum tempo pela Sondagem da Construção do FGV IBRE.
Em suma, o programa deve suprir uma lacuna importante relativa às carências habitacionais do país, mas para que seus efeitos não se diluam, será preciso acompanhar e corrigir a tempo eventuais distorções.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.










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