Quatro restrições ao Plano Biden de emprego
O governo Biden lançou seu “plano de emprego”: US$ 2,3 trilhões em investimentos públicos, distribuídos em oito anos, focados em infraestrutura de transporte, ciência e tecnologia e rede de proteção social, incluindo mais assistência para crianças (creches) e idosos e pessoas portadoras de necessidades especiais (cuidadores).
A nova iniciativa se soma ao “plano de resgate” já aprovado pelo Congresso norte-americano, no valor de US$ 1,9 trilhão, focado em transferências para famílias de renda baixa e reforço no gasto com saúde. Para “pagar” as duas iniciativas, o governo Biden também anunciou aumento de tributos sobre grandes empresas, desfazendo parte da desoneração realizada por Trump e propondo um piso de tributação sobre lucros retidos.
Nos cálculos da equipe econômica de lá, o aumento de impostos será distribuído em 15 anos, com valor presente equivalente ao aumento de gasto previsto nos planos de resgate e emprego. Em outras palavras, o governo Biden anunciou um programa clássico de “gastar e tributar” (spend and tax), onde o governo primeiro recorre à emissão de títulos públicos e depois “paga” o aumento de dívida com crescimento econômico e maior tributação no futuro.
Os detalhes do plano Biden de emprego ainda estão sendo analisados e sua aprovação não é certa, uma vez que a proposta de tributar mais as grandes corporações de Wall Street (Big Finance) e Silicon Valley (Big Tech) rompe a lógica de desoneração do capital que domina a política econômica norte-americana desde Reagan.
Para avaliar as principais restrições ou dificuldades do plano Biden, vale a pena dividir o debate em quatro questões: fiscal, monetária, alocação e política. Vejamos cada uma separadamente.
1 - Restrição Fiscal
Assim como em qualquer outro país, a dívida líquida do governo dos EUA é igual ao valor presente de seus resultados primários esperados para o futuro. Dado o cenário de crescimento e juro real, ao aumentar a dívida pública hoje, o Plano Biden eleva a expectativa de superávit primário futuro, ou reduz a expectativa de déficit futuro. Se também houver aumento da expectativa de crescimento, o aumento de esforço fiscal futuro pode ser pequeno, mas sejamos conservadores e trabalhemos com crescimento de longo prazo constante.
Em situação normal (dominância monetária), a expectativa de resultado primário se adapta ao aumento de endividamento. No caso do Plano Biden, o aumento do gasto hoje e nos próximos oito anos será compensado pelo aumento de receita tributária nos próximos 15 anos. Considerando as duas iniciativas, não haverá aumento permanente da dívida pública em proporção do PIB.
Qual é então a restrição fiscal? Se o “mercado” achar que a sociedade americana não aceitará o maior esforço fiscal futuro, a expectativa de superávit primário deixa de ser variável de ajuste e outra coisa toma o seu lugar. Que outra coisa? O nível de preço.
Em situação anormal (dominância fiscal), a limitação do superávit primário futuro faz com que o aumento da dívida gere aumento de preço hoje. O “ajuste fiscal” ocorre via inflação imediata, reduzindo o valor da dívida pública em proporção do PIB.
E se o BC tentar combater o “ajuste” acima via subida de juro? Como juro maior eleva o primário necessário para rolar a dívida de modo não explosivo, elevar juro piora o problema, fazendo o preço subir ainda mais hoje. Em outras palavras, na dominância fiscal, subir juro perde eficácia em reduzir a inflação.
O raciocínio acima é a base da Teoria Fiscal do Nível de Preço (TFNP), que substituiu a Teoria Quantitativa da Moeda (TQM) como explicação da inflação a partir do estoque de uma obrigação do governo. Na TQM a quantidade de moeda determinava o nível de preço. Porém, como hoje quase todos os bancos centrais do munda fixam juro e deixam a quantidade de moeda flutuar, só monetaristas de museu ainda usam a TQM como guia de análise.
No monetarismo do século 21, a quantidade de dívida pública pode se tornar o principal determinante dos preços em situações de crise fiscal. Mas o que é crise fiscal? A situação na qual os agentes não esperam que o Tesouro produzirá superávit primário necessário para rolar a dívida pública de modo não explosivo.
Seguindo o princípio de Herbert Stein, se uma coisa é insustentável, um dia ela acaba. No caso de dívida pública excessiva isso significa “ajuste fiscal” via aumento substancial da inflação ou calote do principal. Nos dois casos há redução súbita do valor real da dívida pública.
Agora a pergunta principal: os EUA estão próximos da situação acima? Acho que 99,99% dos economistas (nos quais me incluo) diriam não. Porém, na era das redes antissociais, há muito Napoleão de hospício posando de especialista, geralmente com diploma de supletivo em economia austríaca, dizendo que a hiperinflação está logo ali, virando a esquina.
É possível ocorrer dominância fiscal nos EUA? Sim, pois em economia quase tudo é possível. É provável ocorrer dominância fiscal nos EUA? Não, pois em economia nem tudo é provável.
O próprio fato de Biden ter anunciado aumento de imposto junto com seu plano de gasto diz que ele planeja um política fiscal balanceada. Uma espécie expansão via multiplicador do orçamento equilibrado, só que com equilíbrio distribuído ao longo do tempo.
Traduzindo para o economês, a expectativa de superávit primário ainda é a variável de ajuste na identidade contábil das expectativas nos EUA. A TFNP não se aplica e, talvez, o esforço fiscal necessário para “pagar” o Plano Biden nem seja tão grande, caso o aumento gasto eleve o crescimento potencial da economia. Nesse último, caso o ajuste pode vir no crescimento, não só no resultado primário.
2 – Restrição Monetária
Assumindo que os EUA não estão na iminência de crise fiscal, com ataque especulativo contra o dólar (para fugir para qual moeda?) e hiperinflação (que nunca ocorreu na história de lá), passemos à crítica mais plausível ao plano Biden: e se o estímulo for maior do que a economia precisa? Essa é a crítica de alguns economistas keynesianos, como Blanchard e Summers, para quem o aumento de gasto anunciado por Biden elevará a inflação e fará com que o Federal Reserve (Fed, o BC de lá) eleve o juro mais rápido do que o esperado.
Se o juro subir muito para controlar a inflação, o pacote Biden pode apenas remar e remar para ficar no mesmo lugar. A política fiscal empurrará o nível de atividade para cima, mas a política monetária puxará baixo, fazendo com que a economia fique no mesmo lugar.
No jargão de nós economistas, um pacote fiscal muito expansionista pode gerar “crowding out” de 100%. O aumento do gasto público pode apenas deslocar o gasto privado, com o PIB permanecendo no mesmo lugar. E dado que a expansão fiscal aumentará o juro, haverá apreciação do dólar e redução do saldo comercial norte-americano nessa visão.
Será que o cenário Blanchard-Summers se justifica? As opiniões não são 99,99% versus 0,01% como na seção anterior. Há uma minoria não desprezível que concorda com Blanchard e Summers, prevendo aumento de juro mais cedo do que o anunciado pelo Fed. Especificamente, o BC de lá disse com todas as letras que só subirá juro em 2023, tolerando uma inflação temporariamente acima de 2% em 2021-21 porque a inflação ficou abaixo de 2% nos últimos anos.
Creio que o cenário Blanchard-Summers não se justifica. Ainda há elevado desemprego disfarçado nos EUA, se considerarmos que a taxa de participação caiu depois da crise de 2008 e novamente após o choque da Covid. Também há muitas pessoas em tempo parcial ou emprego precário na “gig economy”, o que também é uma forma de subemprego de última instância. Se esse contingente de trabalhadores se mover para atividades de maior produtividade devido ao estímulo de Biden, podemos ter aumento do emprego sem grande impacto inflacionário.
E mais importante, se os investimentos planejados por Biden conseguirem aumentar a produtividade do trabalho nos EUA, é possível ter redução da taxa de desemprego e aumento real de salário sem pressão excessiva sobre preços.
Como diz qualquer modelo de conflito distributivo entre capital e trabalho, o crescimento real do salário real é excessivo quando ele é maior do que o crescimento da produtividade do trabalho. Se a produtividade subir, cai a chance de “crowding out” e aumenta a probabilidade de “crowding in”, de o aumento do investimento público puxar também o investimento privado para cima.
E mesmo que o juro suba no bojo do Plano Biden, cabe destacar que a queda do juro real da última década decorreu do crescimento mais lento a economia. Em outras palavras, juro real muito baixo pode ser sinal de problema, de estagnação secular, com a economia incapaz de gerar aumento de produtividade e de emprego no volume requerido para o bem-estar de sua população.
Se o Plano Biden tiver sucesso em acelerar o crescimento do PIB e da produtividade da economia dos EUA, haverá aumento do juro real por lá, sem comprometer a estabilidade fiscal e financeira. Por enquanto a elevação das expectativas de inflação e juro de longo prazo por lá apenas refletem um “retorno à média”, um retorno à situação pré-pandemia. Ainda é cedo para decretar o fracasso do Plano Biden. Tudo dependerá do impacto das medidas anunciadas sobre a produtividade.
3 – Restrição de Alocação
Toda expansão de gasto público corre o risco microeconômico de alocar mal os recursos. No linguajar da Faria Lima, o Plano Biden também pode falhar pela “misallocation” do gasto público em coisas que não aumentem a produtividade dos EUA na proporção necessária para não causar inflação.
Há risco de misallocation nos EUA? Sim, há. Isso é provável? Não sei. Usando a história dos EUA como guia, eles têm mais exemplos de boa alocação de recursos do que de má alocação de recursos por parte do Estado. E há evidências de que aumentar o estoque de capital de infraestrutura por trabalhador eleva a produtividade do trabalho.
Também há evidências de que mais apoio público para ciência, tecnologia e inovação eleva produtividade. O efeito do gasto militar e do projeto Apolo sobre a revolução em tecnologias de informação e comunicação é o exemplo mais recente desse tipo de receita. No passado, o gasto militar e de infraestrutura do governo dos EUA também foi catalisador de várias mudanças tecnológicas por lá (sistema de produção padronizada em massa, ferrovias, eletrificação etc.).
No caso do Plano Biden, os recursos são públicos, mas a execução dos projetos é privada ou compartilhada com governos estaduais e locais (condados e municípios). Essa descentralização, junto com transparência e cobrança de resultados, gera competição e estimula a boa alocação de recursos. Por estes motivos, creio que seja baixo o risco de má-alocação de recursos nos EUA.
A grande questão é quanto o aumento do gasto público em infraestrutura e inovação aumentará a produtividade. No caso de infraestrutura, o impacto positivo é mais certo, uma vez que a associação de engenheiros dos EUA já mapeou diversas áreas com carências claras de mais recursos.
No caso de inovação, o investimento público é uma aposta em novas tecnologias e processos que podem ou não dar certo. Nesse ponto os EUA parecem reagir não só à necessidade de recuperar sua economia rapidamente, mas também ao grande investimento em inovação realizado na China. Há uma corrida mundial por novas tecnologias de informação (Big Data, Machine Learning, Inteligência Artificial etc.) e nova matriz energética (fontes renováveis, veículos elétricos, mais reciclagem etc.).
Novamente usando o passado dos EUA como guia, iniciativas horizontais de apoio à inovação geraram resultados positivos por lá (Projeto Manhattan e desenvolvimento da indústria nuclear, Projeto Apolo e diversas inovações industriais, gasto militar e desenvolvimento da internet etc.). Resta saber se o mesmo acontecerá no atual momento tecnológico e geopolítico. O plano Biden é uma aposta que sim, adotando estímulo horizontal (para atividades) em vez de vertical (para empresas). Com supervisão e competição adequadas, há maior chance de sucesso.
4 – Restrição Política
Assumindo que os EUA não correm risco de dominância fiscal, que o estímulo fiscal não será muito inflacionário e que o risco de “misallocation” é baixo, ainda assim o Plano Biden pode dar errado, por restrição política.
Em um texto clássico dos anos 1940, Kalecki apontou que, apesar da política fiscal poder estabilizar a economia e promover o desenvolvimento, há limites políticos para a atuação do Estado. A restrição do grande capital ao papel mais ativo do governo é uma barreira importante que pode impedir o sucesso de políticas públicas, mesmo que elas funcionem “na planilha”. E quais seriam essas restrições sobre o Plano Biden? Para não chover no molhado, vale repetir o texto de Kalecki, cuja tradução está disponível online.
Em primeiro lugar, a maior atuação do Estado diminui a importância da “confiança dos empresários” para o funcionamento da economia. Segundo Kalecki:
“Sob um sistema de laissez-faire, o nível de emprego depende em grande parte do chamado “estado de confiança”. Se isso deteriorar, o investimento privado declina, levando a uma queda da produção e do emprego (tanto diretamente como por efeito da queda da renda sobre o consumo e o investimento). Isso permite aos capitalistas um poderoso controle indireto sobre a política do governo: tudo o que pode abalar o estado de confiança deve ser cuidadosamente evitado, porque causaria uma crise econômica. Mas uma vez que o governo aprende o truque de aumentar o emprego por meio de suas próprias compras, esse poderoso dispositivo de controle perde sua eficácia. Portanto, os déficits orçamentários necessários para realizar a intervenção do governo são considerados perigosos. A função social da doutrina das “finanças sólidas” é tornar o nível de emprego dependente do estado de confiança.”
Em segundo lugar, se a política de pleno emprego e o aumento do investimento público derem certo, isso pode levar à expansão da atuação pública para outras esferas dominadas pelo capital privado. Por exemplo, se infraestrutura pública funcionar melhor do que a privada, para que temos empresas privadas? Se bancos públicos funcionarem melhor do que privados, para que bancos privados? A segunda restrição política apontada por Kalecki reflete bem a realidade dos anos 1940, quando o planejamento socialista ainda era visto como alternativa à descentralização capitalista, mas antes de comentar porque isso não mais se aplica, vejamos novamente o que diz Kalecki sobre esse ponto:
“Os princípios econômicos da intervenção do governo exigem que o investimento público seja restrito a objetos que não competem com os negócios privados (por exemplo, hospitais, escolas, rodovias). Caso contrário, a lucratividade do investimento privado poderia ser prejudicada, e o efeito positivo do investimento público sobre o emprego compensado, pelo efeito negativo do declínio do investimento privado. Essa concepção combina muito bem com os empresários. Mas o escopo para investimentos públicos desse tipo é bastante limitado, e existe o perigo de que o governo, ao adotar essa política, possa eventualmente ser tentado a nacionalizar transportes ou serviços públicos de modo a ganhar uma nova esfera de investimento.
Poder-se-ia, portanto, esperar que os líderes empresariais e seus especialistas fossem mais favoráveis aos subsídios ao consumo de massa (por meio de abonos familiares, subsídios para manter baixos os preços de artigos de primeira necessidade etc.) do que ao investimento público; pois, ao subsidiar o consumo, o governo não estaria embarcando em nenhum tipo de empreendimento. Na prática, no entanto, esse não é o caso. De fato, subsidiar o consumo de massa é combatido muito mais violentamente por esses especialistas do que o investimento público. Pois aqui está em jogo um princípio moral da mais alta importância. Os fundamentos da ética capitalista exigem que “você ganhará seu pão com seu suor” – a menos que você tenha meios privados.”
No ponto acima Kalecki também antecipou que “representantes do capital” seriam favoráveis a subsidiar o consumo privado via transferências em vez de aumentar o investimento público, desde que o subsídio não fosse generalizado a ponto de diminuir o incentivo (ou necessidade) de as pessoas trabalharem. Qualquer semelhança com o debate atual entre políticas universais e políticas focalizadas não é coincidência, mas sigamos no raciocínio Nostradamus de Kalecki.
A terceira restrição política ao papel mais ativo do Estado vem do efeito do pleno emprego sobre o poder de barganha dos trabalhadores. Com empregos abundantes, cai a disposição das pessoas para trabalhar por qualquer salário, bem como a “disciplina nas relações sociais”. Nas palavras de Kalecki:
“(…) a manutenção do pleno emprego causaria mudanças sociais e políticas que dariam um novo ímpeto à oposição empresarial. De fato, sob um regime de pleno emprego permanente, as demissões perderiam seu papel como medida disciplinar. A posição social do chefe seria minada e a autoconfiança e a consciência de classe dos trabalhadores aumentariam. Greves por aumentos de salário e melhorias nas condições de trabalho criariam tensão política. É verdade que os lucros seriam maiores sob um regime de pleno emprego do que sob o laissez-faire, e mesmo o aumento dos salários resultante do maior poder de barganha dos trabalhadores, sendo menos provável a redução nos lucros do que o aumento nos preços e, portanto, afetando negativamente apenas os interesses rentistas. Mas “disciplina nas fábricas” e “estabilidade política” são mais apreciadas do que os lucros pelos líderes empresariais. Seu instinto de classe diz-lhes que o pleno emprego duradouro não é saudável do seu ponto de vista, e que o desemprego é parte integrante do sistema capitalista ‘normal’.”
Em outras palavras, ao reduzir a escassez do capital e aumentar a escassez do trabalho, o pleno emprego é uma ameaça ao próprio sistema capitalista. Mesmo que o pleno emprego gere lucros maiores, o que normalmente acontece, ainda assim o grande capital se opõe a qualquer medida nessa direção pois isso romperia a disciplina nas empresas, levando trabalhadores a demandar maior participação nos resultados da empresa!
Muito aconteceu desde que Kalecki apresentou as três reflexões acima. Hoje sabemos muito mais do que Kalecki sabia nos anos 1940 e algumas das restrições por ele apontadas precisam de maior qualificação.
A ideia de que a maior atuação do Estado diminui a importância política da opinião do capital continua tão viva quanto antes e é uma barreira a propostas como o Plano Biden. Para diminuir isso, o governo norte-americano procura incluir o grande capital em suas iniciativas, promovendo incentivos horizontais com execução descentralizada, muitas vezes em parcerias público-privadas. Pode parecer pouco, mas atenua o primeiro problema político apontado por Kalecki.
Passando à segunda barreira política, o medo de que o Estado avance sobre várias áreas e mercados atendidos ou operados pelo capital privado, o problema apontado por Kalecki, parece menor hoje do que nos anos 1940. O fracasso da planificação econômica socialista demonstrou que o Estado tem limitações próprias na alocação de recursos. A ausência de incentivos e concorrência gera baixa produtividade e rendas injustificáveis para a burocracia, minando a própria atuação do Estado. O recente exemplo da China confirma essa percepção, onde incentivos de mercado são utilizados para diminuir o risco de má alocação de recursos pelo Estado.
Atualizando o pensamento de Kalecki, o risco de que uma atuação maior do Estado gere estatização ampla, geral e irrestrita da economia não se justifica. Desde os anos 1940, exemplos bem-sucedidos de desenvolvimento demonstraram que o Estado precisa do mercado para evitar má-alocação de recursos. Em termos do Plano Biden, como coloquei anteriormente, execução transparente e descentralizada dos programas públicos, com cobrança de resultados, diminui a segunda restrição política apontada por Kalecki.
Resta o terceiro aviso de Kalecki: mantido por muito tempo, o pleno emprego reduz a escassez do capital. Acho essa reflexão ainda válida e Keynes fez observação parecida, antes de Kalecki, ao comentar “as perspectivas econômicas de nossos netos”. Apesar da concordância com Kalecki, tenho que apontar que, no caso dos EUA, o quase pleno emprego nos anos Clinton e final dos anos Obama não ajudou a aumentar o poder de barganha dos trabalhadores.
Não houve ruptura da “disciplina do mercado” sobre demandas salariais porque, em paralelo à redução do desemprego, houve redução de leis e instituições que davam mais poder ao trabalho.
Desde Reagan, houve redução do valor real do salário mínimo e queda do número de trabalhadores sindicalizados. Mais recentemente, houve retorno a contratos de trabalho do século 19, só que disfarçados pela ilusão de empreendedores autônomos que trabalham para poucas plataformas de serviços, e os efeitos negativos da globalização e automação sobre a classe média dos EUA.
Pode ser que uma nova rodada de pleno emprego finalmente rompa a disciplina de mercado como disse Kalecki? Sim, mas isso não é provável. A dificuldade de Biden em aumentar o salário mínimo nos EUA demonstra que ainda estamos longe do ponto apontado por Kalecki.
O Plano Biden é bem reformista para o mercado de trabalho. A parte revolucionária está em outro lugar, no aumento da tributação progressiva sobre a renda do grande capital, o que pode disparar iniciativas semelhantes em outros países. É nesse ponto que Biden encontrará a maior resistência interna a suas propostas, por motivos políticos, não econômicos.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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