Revista Conjuntura Econômica

“Reconstrução, o Brasil nos anos 20” – uma avaliação

10 jun 2022

Livro “Reconstrução, o Brasil nos anos 20”, importante agenda de políticas públicas, parece se propor a superar a polarização atual e olhar para a frente. Mas é possível avançar sem cuidadoso escrutínio do que fizemos?

Felipe Salto, João Villaverde e Laura Karpuska acabam de publicar, pela Saraiva, “Reconstrução, o Brasil nos anos 20”. A coletânea, reunindo diversos autores, estabelece a agenda, os temas principais e propostas de política econômica e política pública em termos mais gerais, em um ano eleitoral. Por si só já tem espaço importante como texto que deve liderar nossa reflexão dos diversos temas.

O país encontra-se muito polarizado, há muito tempo – desde, pelo menos as jornadas de junho de 2013, mas possivelmente até antes.

A minha impressão ao ler “Reconstrução” é que os organizadores tomaram o seguinte caminho: “Nós somos uma nova geração que veio depois do desastre. Não queremos remoer a polarização e vamos olhar para frente”.

Entendo a escolha dos organizadores. Vamos juntar os cacos do que sobrou de país e tentar reconstruir, da melhor forma possível. Segue daí o título do livro “Reconstrução”.

A dúvida que fica é a seguinte: é possível avançarmos sem um cuidadoso escrutínio do que fizemos?

O livro se equilibra nessa difícil escolha e, penso, suas maiores fragilidades resultam dessa opção. Por outro lado, a força do livro tem origem nessa escolha. O texto é leve e possível de ser lido por todos e, portanto, talvez sinalize um acordo possível nos próximos anos. Talvez a chapa Lula-Alckmin seja a expressão política desse denominador comum.

Há vários capítulos importante para nosso debate. Temas como os desafios da imprensa no mundo digital, principalmente da imprensa local, tão bem tratado no capítulo 5. Também me chamou a atenção o capítulo sobre Federalismo fiscal, que nos brinda com cuidadoso escrutínio da estrutura de distribuição de recursos no interior da Federação brasileira. O capítulo 12 tem proposta para elevar a receita em uns 2% do PIB com o aumento da progressividade dos impostos de renda. Importante contribuição para o debate de 2022, inclusive em função de ainda vivermos sob desequilíbrio fiscal estrutural. E os dois belíssimos capítulos que tratam respectivamente do tema da infância e juventude e do ingresso na vida adulta no mercado de trabalho. Importantíssimo o capítulo “Subsídios para uma reforma orçamentária no Brasil”. Mas o livro tem muito mais.

O capítulo inicial apresenta interessante análise do papel do Estado na economia. No front da política econômica, o capítulo 16 sumariza a leitura que o livro faz de nossa grande estagnação e da queda na armadilha da renda média, na qual estamos desde o início dos anos 1980. Aí a ambiguidade do projeto do livro se apresenta. Como discutir a grande estagnação brasileira sem exame mais detalhado de nossos erros passados de políticas públicas?

A resposta do livro, imagino, seria: “Fizemos muitas coisas, muitas medidas, muitas políticas. Algumas deram errado; outras deram certo. Mas, no frigir dos ovos, estamos aqui. Estagnados há quatro décadas”. Ok, mas como avançar sem um diagnóstico mais cuidadoso?

Por exemplo, na discussão recente, apresentam-se os erros do que ficou conhecido como Nova Matriz Econômica. Sem problemas, pois hoje é consensual que se errou ali. Acho que até os petistas não terão muito problema com esse reconhecimento. O livro também é claro em reconhecer a não sustentabilidade da política econômica do primeiro mandato de Dilma Rousseff. Mas segue a indagação: a falta de sustentabilidade da política começou ali? Essa questão divide economistas e interessados no debate político-econômico brasileiro. Será por isso que o tema não foi tratado em “Reconstrução”? Essa questão é importantíssima se desejamos fazer um diagnóstico adequado da nossa estagnação. Para mim, a insustentabilidade da política econômica é um fenômeno muito anterior. Remonta a 2006 provavelmente. Para sustentar meu ponto de vista, emprego a série de superávit primário estrutural da União, como calculado pela Instituição Fiscal Independente.[1]

Entre 2003 e 2014, houve contínua redução do saldo primário estrutural da União, de superávit de 2,2% do PIB para déficit de 2,4% do PIB. Note-se que a piora no governo Lula foi tão intensa quanto a do primeiro mandato de Dilma. A política fiscal do governo mais popular de nossa história era claramente insustentável. A mesma constatação pode ser documentada se olharmos a série das exportações líquidas, da inflação, da rentabilidade do investimento privado e da evolução dos salários reais em relação à produtividade do trabalho.

E, portanto, o capítulo sobre as instituições fiscais me deixou com dúvidas. Na página 391, lê-se: “De maneira geral, é possível dizer que os resultados primários foram positivos, de 1997 a 2013, com grande robustez especialmente durante a década de 2000, mantendo uma média anual de 2,0% do PIB entre 2000 e 2009”. Essa afirmação não sobrevive bem frente aos dados da IFI se empregarmos o conceito de primário estrutural, que, me parece, é o mais relevante para a solvência.

Os dados da IFI são claríssimos: nossa grande crise tem componente interna evidente. Prevalecia em 2014 elevadíssimo déficit fiscal estrutural. O mundo não foi culpado por nossas escolhas que construíram uma crise fiscal estrutural. O mundo pode ter ajudado pois permitiu que o problema fiscal ficasse escondido pelo impacto positivo do boom de commodities na arrecadação. Mas a fonte do problema foi nós termos dado passos maiores do que a perna e termos tomado um tombo fenomenal.

Em alguns capítulos do livro senti falta de maior diálogo com o conhecimento acumulado. Penso que os dois capítulos que tratam da política, 2 e 3, têm esse problema. Talvez mais o terceiro do que o segundo.

A ciência política brasileira, desde os trabalhos clássicos dos anos 1990 de Fernando Limongi e Argelina Figueiredo, tem caminhado na direção de reconhecer a funcionalidade de nosso presidencialismo de coalizão. Escritos de Fabiano Santos, Octavio Amorim, Carlos Pereira e Marcus Melo, entre tantos outros, apontam essa direção.

Não obstante esse otimismo, caímos em longa crise política. Qual é o diagnóstico? O que deu errado? Há questões estruturais que não foram bem tratadas pela literatura? Ou nossa grande crise política foi fruto de uma conjuntura particularmente ruim? Por que a adoção do parlamentarismo ou do voto distrital misto, como sugerem os capítulos 2 e 3, irá resolver o problema? Vale lembrar que, segundo Jairo Nicolau, as eleições de 2022 ocorrerão com o melhor sistema eleitoral no Brasil de todos os tempos, resultado da minirreforma política de 2017.[2] Será que não é melhor esperarmos algumas eleições para que se consolidem os efeitos benéficos da reforma de 2017 e que pensemos em novas rodadas de aprimoramento de nosso sistema eleitoral mais para frente? Qual é a garantia de que o sistema distrital misto será melhor do que aquele que saiu da minirreforma de 2017?

Muito bom o capítulo de educação ressaltando as exitosas experiências do Ceará e de Pernambuco. Um tema de que senti falta e que me parece um dos grandes gargalos é o desenho da carreira do magistério. O que pode ser feito para atrair professores melhores?

No capítulo sobre política habitacional me parece haver um problema que aparece em outros trechos do livro. A microeconomia. A política pública precisa ser desenhada pensando na resposta das pessoas a ela. Assim, a ideia de que o déficit habitacional não deve ser indicador relevante para o desenho de uma política habitacional me parece equivocada. E a explicação fornecida pelo texto não ajuda: “Não há clareza sobre o efeito do programa sobre o indicador” (página 355). Pensar uma política habitacional sem saber qual será seu impacto sobre o comportamento das pessoas, e, consequentemente, sobre o indicador de déficit habitacional, me parece quase como jogar dinheiro de helicóptero. A política precisa ser melhor estudada.

Penso que o capítulo de infraestrutura tem a mesma dificuldade daquele sobre investimento habitacional. Lendo o capítulo de infraestrutura, parece que o problema desse tipo de investimento no Brasil é a falta de recursos públicos. Ora, não é o caso. Tivemos quase uma década de “vacas gordas”, com elevação do investimento público e das estatais. Qual foi o resultado? Novamente aparecem aqui os limites do projeto do livro. Sem cuidadosos estudos dos problemas que tivemos no último ciclo de investimentos, não avançaremos. Questões como as dificuldades de implantar um bom marco legal e institucional para a contratação de projetos de obras de elevado grau de complexidade e as dificuldades de instituir mecanismo crível e eficiente de seguro de desempenho, entre outros desafios, dificultam a execução da obra, geram litígios e aditivos, encarecendo e atrasando em demasia os projetos. Aqui, como em diversas outras áreas, o diabo está nos detalhes microeconômicos da confecção do diagnóstico e da execução da política pública.

O livro termina com o capítulo das ações de política externa. A premissa do capítulo é que havia continuidade das políticas externas desde a redemocratização e que o atual governo patrocina uma ruptura. Que há ruptura no atual governo não há dúvidas. Mas não me parece que o Itamaraty de Celso Amorim foi de continuidade ao que vinha dos governos anteriores. A ênfase em associações com ditaduras de esquerda da América Latina e na África representa clara ruptura com o Itamaraty do governo Sarney até FHC. É possível que a política de Celso Amorim de “falar grosso com o gigante do norte” seja o melhor para nossos interesses de longo prazo. Não me considero capaz de julgar. Mas certamente constitui uma ruptura com o que tínhamos antes.


[1] Os dados podem ser baixados diretamente do site da IFI (https://www12.senado.leg.br/ifi/dados/dados).

[2] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/03/camara-deveria-deixar....

Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de junho de 2022.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Comentários

barbara
Gostei do assunto de sua divulgação, gostaria de replicar o post no Blog de onde trabalho. É possível? https://www.juseconomico.com.br Obrigada
fernando.dantas
Bom dia, dando o crédito do Blog do Ibre e do autor, tudo bem. Abraço
fernando
A escolha dos 3 vices do PT indicou alguma coisa? Mais 2% de carga tributaria na Ingana?

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