Macroeconomia

Regras fiscais e federalismo

19 ago 2021

Governos subnacionais não têm mecanismos adequados de suavização de receita para financiar despesas perenes. Reformulação do sistema requer criação de condições para que entes sejam menos afetados pela volatilidade da economia e que se reduza o grau de dependência da União.

Muito tem se falado sobre a regra do teto de gastos, da sua importância enquanto âncora fiscal e as dificuldades para o seu cumprimento ao longo dos anos. Tal dificuldade tem resultado em uma série de manobras que minam sua credibilidade, mas tentam prolongar sua vida enquanto não se encontra uma solução que agrade aos vários espectros da opinião pública.

O mesmo tipo de atenção não se dá ao tema do federalismo fiscal. Assim como no nível federal, uma profusão de regras engessa a política pública e gera volatilidade. Os governos subnacionais não possuem mecanismos adequados de suavização de receita para financiar despesas perenes. Por um lado, não obtêm financiamento em mercado para se endividar em períodos de menor crescimento. Por outro lado, em períodos de maior crescimento, há pressões para aumento desorganizado das despesas.

Alguns governos possuem uma base de arrecadação própria bastante volátil em função da importância dos royalties do petróleo ou minério de ferro nos orçamentos públicos e as vinculações e mínimos constitucionais são feitas com base no desempenho da receita federal. Esse arcabouço dificulta sobremaneira o funcionamento dos estabilizadores automáticos, desestimulando a poupança e o planejamento governamental.

O federalismo fiscal brasileiro tem um longo histórico. Foram inúmeros episódios em que o Governo Federal teve que assumir dívidas dos demais entes, que posteriormente não eram honradas. A reformulação desse sistema, nos anos 1990, passou por mudanças nos bancos públicos estaduais e pela reestruturação das dívidas do Governo Federal com Estados e Municípios que resultou em grande subsídio para estes entes.

Com a LRF, criou-se um sistema de controle fiscal para uma situação em que as finanças subnacionais estavam organizadas. A LRF, portanto, teve como prioridade proteger a situação fiscal, que se construiu no início dos anos 2000, e não em criar instrumentos para uma eventual situação de insustentabilidade.

Esse sistema funcionou bem por mais de 10 anos, mas não se pode ignorar que o elevado crescimento daquela década reduziu o conflito distributivo em torno das finanças subnacionais. Na década seguinte, contudo, a desaceleração da economia combinada com práticas fiscais que burlavam os limites da LRF tornou a situação fiscal muito difícil e novas reestruturações de dívida voltaram a acontecer.

Depois da crise de 2015/16, o sistema fiscal foi reformulado criando novos instrumentos porque o desafio era a reconstrução fiscal. No Regime de Recuperação Fiscal, o Governo Federal oferece incentivos para que os Estados em situação grave adotem medidas de ajuste. Posteriormente, criou-se um regime intermediário com medidas mais suaves para os demais Estados com situação menos drástica.

A cooperação fiscal entre os entes, no entanto, tem sido enfraquecida por decisões do Judiciário que suspendem o pagamento das dívidas estaduais com o Tesouro. Tais decisões criam risco moral e enfraquecem o poder do Governo Federal em exigir o cumprimento das contrapartidas requeridas em lei. Depois que tais decisões criam esse ambiente, qualquer regime de cooperação fiscal desmorona.

Uma reformulação estrutural do sistema requer a criação de condições para que os entes sejam menos afetados pela volatilidade da economia e que se reduza o grau de dependência do Governo Federal. Para reduzir a volatilidade fiscal, seria necessário desvincular as transferências federais do comportamento das receitas. Uma alternativa seria transferir recursos com base no crescimento médio do PIB ou com base em projeções do PIB potencial.

A desvinculação facilitaria a implementação de uma reforma na tributação direta, pois essa discussão não afetaria mais os governos subnacionais. Nas últimas décadas, o Governo Federal aumentou as contribuições para evitar distribuir os ganhos de arrecadação com os demais governos. A atual reforma do imposto de renda gerou protestos dos entes federados por produzir efeitos negativos sobre suas respectivas finanças.

Para evitar contrapor a flutuação das receitas próprias, os governos subnacionais poderiam voltar a emitir dívida em mercado. Inicialmente, a permissão ocorreria com limites para governos com boa gestão, dívida baixa e bom nível de liquidez. Adotar uma regra fiscal para controlar diretamente as despesas com pessoal, principal gasto governamental, definindo uma taxa de crescimento sustentável para essa rubrica ao longo do ciclo econômico seria uma contrapartida desejável.

Para reforçar esse arcabouço, é importante desenvolver uma legislação para falências que ofereça meios para renegociação das dívidas entre as partes. A experiência mostra que a disciplina de mercado é uma forma importante de criar responsabilidade fiscal, desenvolver um mercado autônomo de avaliação de risco de títulos para monitorar governos e para reduzir o risco moral que atingiu níveis contraproducentes na Federação. Com mais atores envolvidos, a tendência é que as decisões judiciais se tornem mais equilibradas.

Vários desses temas estão em níveis diferentes de maturidade na sociedade brasileira. Mas as oportunidades de avanços estão sempre presentes para serem aproveitadas. A crise federativa que surgiu durante a pandemia e na reforma do imposto de renda nos mostra os custos que o sistema atual produz e que precisam ser enfrentados porque impedem avanços. Colocar o Governo Federal no centro da estabilidade macroeconômico com suporte dos demais entes é um pilar importante do pacto federativo.


Este artigo foi publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 18/08/2021, quarta-feira.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.  

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