Trabalho

Rendimento médio do trabalho: alta de salários ou melhora de composição?

5 abr 2024

Decompondo a variação do rendimento médio do trabalho da PNAD, verifica-se que parte das altas de salários dos últimos trimestres deve-se a mudanças na composição da população ocupada, e não só ao aumento das remunerações.

Introdução - Na última divulgação da Ata do Copom, referente à 261ª reunião de política monetária, o Banco Central destacou que os indicadores recentes de atividade econômica seguem consistentes com o cenário de desaceleração da economia. Contudo, destacou: “(..). em sua análise, o Comitê demonstrou maior preocupação com possíveis efeitos da ampliação de ganhos reais no período mais recente e da aceleração de crescimento observada nos dados referentes à massa salarial sobre a dinâmica prospectiva da inflação de serviços”.

A preocupação deriva do fato de o aumento dos rendimentos reais poder gerar pressões inflacionárias por duas vias: levando ao aumento do consumo das famílias (se acompanhados por uma evolução do pessoal ocupado que gere aumento da massa salarial) e pressionando custos de produção, que poderão ser repassados aos preços caso não esteja havendo um aumento de produtividade.  Então, observar aumentos na magnitude que temos visto (gráfico 1) faz acender uma luz amarela para o COPOM.

Porém, nem todo aumento registrado de rendimento médio real significa um aumento do custo do trabalho, já que a evolução da variável também é afetada[1]: pelo efeito composição, ou efeito mix.  Esse efeito deriva do fato de que a variação do valor de uma variável que é calculada a partir da agregação de itens de uma cesta pode se alterar em função da mudança na composição dessa mesma cesta – ou seja, da alteração dos pesos de cada item entre a base de comparação e momento em que se está realizando a comparação. Por exemplo, uma empresa pode ter um aumento de faturamento entre dois períodos vendendo o mesmo número de itens, apenas porque a participação de itens de preço mais alto cresceu; assim, se o objetivo da empresa for aumentar seu market share, o crescimento do faturamento não é necessariamente uma boa notícia – o que faz do efeito mix uma questão muito abordada por economistas da área de inteligência de mercado. 
 

No caso do mercado de trabalho, os efeitos podem ser demonstrados a partir do exemplo numérico que apresentaremos a seguir. A tabela 1 traz valores da PNAD referentes ao quarto trimestre de 2022 e de 2023: i. população ocupada segundo a posição na ocupação (empregado, empregador e conta própria); ii. rendimento médio real do trabalho e iii. massa salarial real. A população ocupada total avançou 0,8% entre um trimestre e outro, mas o mesmo não aconteceu com o número de ocupados em todas as posições na ocupação: o número de empregados cresceu 2,5% e o de trabalhadores conta própria 0,6%, mas o de empregadores recuou 0,6%. E isso gerou pequenas mudanças na composição da força de trabalho, com aumento da participação dos empregados sobre o total, que passou de 69,6% para 70%. O rendimento médio real do trabalho também apresentou um comportamento heterogêneo: a categoria Empregador obteve um ganho expressivo, de 6,5%, enquanto o rendimento médio da população ocupada cresceu 2,6%. Mas de onde veio esse valor médio, como ele foi calculado? Primeiro, o IBGE calcula a massa de rendimentos de cada posição na ocupação, ou seja, multiplica o rendimento de cada categoria pelo número de ocupados; depois, o instituto soma esses valores, chegando à massa total, e divide pelo total de pessoas ocupados.

Pode passar desapercebido, mas a variação do rendimento médio do total de ocupados, portanto, não depende apenas do quanto cada categoria passou a receber, mas também do quanto cada tipo de ocupado representava do total de pessoas trabalhando. Vamos mostrar isso fazendo um exercício contrafactual, mostrado na Tabela 2. Nela, o número total de ocupados e o valor do rendimento médio de cada categoria de ocupação é o mesmo da Tabela 1; no entanto, supomos que, ao contrário do que realmente aconteceu, a ocupação cresceu à mesma taxa em cada uma daquelas categorias, e a composição dos ocupados permaneceu a mesma. Fazendo isso, a variação do rendimento médio real total cresceu um pouco mais, 2,7%, e isso aconteceu principalmente porque a participação dos empregadores (cujo rendimento é muito maior do que o dos empregados e conta própria) no total de pessoas ocupadas, não caiu, como aconteceu “no mundo real” mostrado na Tabela 1.
 

Essa diferença, portanto, se deve à mudança na composição da população ocupada, o que mostra que o valor do rendimento médio, a variável que é acompanhada com cuidada pelos economistas, não reflete apenas o quanto cada categoria, isoladamente, está recebendo. Nesse exemplo o impacto sobre a variável foi pequeno, mas, quando se analisa séries mais longas, constata-se que a influência da mudança da composição pode ser muito maior, o que nos motivou a procurar estimar os impactos do efeito composição sobre a variável rendimento médio do trabalho obtida pela PNAD, seguindo a linha de trabalhos anteriores que já trataram do tema[2].

Os objetivos desse texto são apresentar a metodologia aqui utilizada para estimar o efeito composição, assim como as conclusões da análise. Conclui-se que a composição da população ocupada teve forte impacto nos números divulgados pelo IBGE durante a pandemia e ao longo de alguns trimestres subsequentes, e que, ao longo do ano passado, o efeito mix também teve um papel na elevação rendimento médio dos ocupados.  Além disso, é possível observar que o mercado de trabalho brasileiro passa por um momento raro, considerando seu histórico recente: há, simultaneamente, uma melhora tanto na remuneração do trabalho propriamente dita (graças a reajustes salariais, no caso dos empregados, ou ao aumento do faturamento, quando se consideram os empregadores ou os que trabalham como “conta própria) quanto na composição da população ocupada – portanto, a elevação do rendimento médio do trabalho não significa pressão sobre os custos de produção, ao menos não em toda a sua magnitude. Para tornar a leitura mais fluida, iremos iniciar com os resultados, que serão seguidos da descrição do método.

Resultados e discussão

No gráfico abaixo mostramos duas séries calculadas a partir da metodologia apresentada ao final do texto; o ponto de partida é do ano de 2016, porque a análise para anos anteriores é comprometida por mudanças metodológicas em relação ao modo como era computado o rendimento efetivo do trabalho, e o ponto final é 2023, pois a análise necessita de informações só disponibilizadas trimestralmente.  A linha azul (Índice Fischer) representa a parcela do rendimento médio da PNAD que não depende da composição do mercado de trabalho, relativa à variação  da própria renda dos indivíduos, seja por reajustes salariais, no caso dos empregados, ou por aumento de faturamento, como no caso de trabalhadores por conta própria ou empregadores. Ela é volátil porque capta integralmente efeitos sazonais sobre o rendimento do trabalho, como, por exemplo, o pagamento do décimo terceiro ou períodos de festas. Já a linha preta (Índice Mix Fischer) representa a parcela do rendimento médio determinada pela composição da população ocupada.  Como seria de se esperar, ao longo da maior parte do tempo, ela é menos volátil que a linha azul, pois alterações significativas na estrutura da ocupação de um país não acontecem de forma abrupta – a não ser em situações extraordinárias, como a pandemia.

Vamos agora incluir o rendimento médio real no gráfico, para mostrar que ele é uma composição das séries mostradas no gráfico anterior:

Ao realizarmos a análise do dado dessazonalizado, apresentado abaixo, é possível ter uma ideia dos determinantes das flutuações do rendimento médio ao longo do período. Durante a pandemia, houve forte queda do índice de Fischer, sinalizando a redução de renda de categorias importantes, como trabalhadores por conta-própria ou empregadores. Esta queda foi compensada pelo aumento do índice de mix, na medida em que trabalhadores menos qualificados, e com menores remunerações, perderam suas ocupações. Já no período pós pandemia, observa-se uma alta relativamente moderada do índice de mix e uma alta mais significativa do índice de Fischer, do ano de 2022 em diante.

Vejamos a seguir a contribuição de cada um dos componentes para a variação da variação em relação ao mesmo período do ano anterior, com base nos gráficos 6 e 7. 

Há várias informações a serem extraídas dos gráficos acima.  É possível perceber, por exemplo, que, a partir da pandemia, as contribuições de cada um dos componentes situaram-se, por um bom tempo, bem acima da faixa entre -1,1 pp e +2,8 pp dentro da qual haviam se mantido entre o primeiro trimestre de 2017 e o primeiro trimestre de 2019.  Isso reflete a instabilidade gerada pela crise sanitária no universo do trabalho, mas talvez também seja um indício das dificuldades pelas quais o IBGE passou a ter para coletar as informações, o que exigiu um aumento do uso de ferramentas de imputação de valores.  A análise mostra ainda que, durante a pandemia, apesar de o rendimento médio efetivo ter mostrado queda apenas no ano de 2021, o índice de Fischer já havia caído no ano anterior, mostrando redução da renda real das pessoas que permaneceram ocupadas no período. Mas essa queda em 2020 foi compensada completamente pela “melhora” do índice de mix, na medida em que pessoas menos qualificadas e pior remuneradas perderam seus empregos.

Os anos de 2021 e 2022 mostraram uma piora da composição do mercado de trabalho, na medida em que um grande contingente de pessoas que estava sem emprego retornou ao mercado de trabalho, em ocupações com menor remuneração média, o que “amorteceu” a variação positiva registrada pelo índice de Fischer. Com a diluição do efeito piora do mix, o ano de 2023 foi bastante positivo, com uma contribuição positiva expressiva para a variação anual (yoy) dos dois índices – algo que não ocorrera antes, pelo menos desde 2017.

Mas é importante, notar, por fim, que a contribuição da evolução do índice de Fischer para o total da variação yoy vem caindo nos últimos trimestres; nesse sentido, o impacto da melhora do mix, que permanece positivo e relativamente estável desde o último trimestre de 2022, de certa forma mascarou uma desaceleração do índice de Fischer (gráfico 8).

Avaliamos que este trabalho colabora para o entendimento da recente dinâmica do rendimento médio do trabalho no Brasil, e que a decomposição de sua variação em séries de tempo distintas possibilita o seu uso por exemplo, como variáveis explicativas em modelos econométricos aplicados. Afinal, o exercício demonstrou que o índice de mix não pode ser desconsiderado na análise da evolução da variável, o que justifica uma investigação adicional sobre os seus determinantes, entre eles a relação com o ciclo econômico e com o grau de ociosidade da economia. Além disso, vale notar a possibilidade de que surjam insights para estudos sobre a produtividade do trabalho, se considerarmos a relação entre remuneração e valor adicionado.  Esperamos, no futuro, trazer mais elementos para o debate explorando essas possibilidades. A seguir, apresentamos breves comentários sobre a metodologia aqui adotada.

Nota metodológica: Construção de índices de rendimento a partir da amostra da PNAD Contínua

A construção de índices é uma ferramenta utilizada para medir variações para um conjunto agregado de dados ao longo do tempo, permitindo comparações entre períodos diferentes, sendo a aplicação mais comum em índices de preços. Os índices de Laspeyres, Paasche e Fischer são três abordagens comuns para a construção de números índices, cada um com suas particularidades.

Nesse contexto, no que toca à construção de índices de preços agregados:

  • O índice de Laspeyres utiliza os preços do período base e dos períodos subsequentes combinado às quantidades do período base para calcular a variação agregada de preços ao longo do tempo. Essa abordagem tende a sobre-estimar a inflação agregada, pois não leva em conta possíveis substituições de bens cujos preços relativos sobem de forma mais acentuada.
  • O índice de Paasche utiliza os preços do período corrente e dos períodos subsequentes, bem como as quantidades dos períodos subsequentes para construir um índice agregado de preços, refletindo mais precisamente as mudanças nos hábitos de consumo. No entanto, pode subestimar a inflação agregada, uma vez que já incorpora as substituições feitas pelos consumidores em resposta aos aumentos de preços relativos.
  • O índice de Fischer, por sua vez, é calculado pela média geométrica dos dois índices anteriores e tende a “equilibrar” os pontos fracos deles.

Uma análise semelhante àquela empregada para construir índices de preços pode ser feita para a evolução dos rendimentos da PNAD contínua, adotando o Índice de Fischer para captar, como dito anteriormente, as contribuições provenientes do crescimento da própria renda dos indivíduos, seja por reajustes salariais, no caso dos empregados, ou por aumento de faturamento, como no caso de trabalhadores por conta própria ou empregadores.

Para um determinado mês, o relativo do rendimento médio, em relação ao mês anterior, é dado pela multiplicação dos relativos do índice de composição e do índice de Fischer, calculado a partir dos rendimentos dos indivíduos na amostra:

Já o índice de Fischer é obtido através da média geométrica ente os índices de Laspeyres e Paasche:

Onde:

Rendimento i,t 0 é o rendimento médio do agrupamento i no período base t0.

Rendimento i,t 1 é o rendimento médio do agrupamento i no período corrente t1.

Ocupados i,t 0 é o número de ocupados do agrupamento i no período base t0.

Ocupados i,t 1 é o número de ocupados do agrupamento i no período corrente t1.

n é o número total de agrupamentos da base de dados.

É importante ressaltar que o cálculo ideal desses indicadores deveria levar em consideração a evolução dos rendimentos dos mesmos indivíduos ao longo do tempo, o que não é possível, dada a característica amostral da pesquisa (em contraste com registros administrativos, tais como a RAIS/Caged – que, no entanto, não estão disponíveis em alta frequência e englobam apenas o conjunto de trabalhadores com carteira assinada).

Nesse caso, a melhor forma de gerar a análise é a partir da agregação de grupos de ocupados pelas próprias variáveis disponíveis nos microdados da PNAD Contínua – nesse estudo, consideramos a agregação a partir da variável V4010, que define quatrocentos e trinta e quatro ocupações cargos e funções (a desagregação máxima) em cruzamento com a variável VD4009, que define as nove diferentes posições na ocupação. Consideramos que este cruzamento capta as principais flutuações de curto prazo relacionadas a composição do mercado de trabalho.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

[2] Entre algumas contribuições, ver https://blogdoibre.fgv.br/posts/renda-do-trabalho-tem-trajetoria-negativa-por-categoria-ocupacional-nos-ultimos-anos-o-que-e, e  Moura, Rodrigo L. de. Em Foco IBRE: Dinâmica da Renda do Trabalho, in  Boletim Macro IBRE.

Comentários

ADAUTO RICARDO ...
muito boa a análise. Você considerou todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores do setor público? Se sim, caso fizesse a mesma análise excluindo os trabalhadores do Setor Público, os resultados mudariam muito? obrigado
Cosmo De Donato...
Olá Adauto, tudo bem? Sim, o cálculo considera. É relativamente fácil fazer essa exclusão com a base pronta - vou brincar um pouco com os números aqui e retorno logo mais.

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