Cenários

Rumo à dominância fiscal?

23 dez 2024

Embora a situação ainda possa ser revertida, está claro que o risco de dominância fiscal aumentou consideravelmente nas últimas semanas. Tudo indica que esse tema continuará bastante presente no debate nos próximos dois anos.

Desde a coluna passada (“Como Desperdiçar Uma Oportunidade de Crescimento”), o cenário fiscal piorou consideravelmente, o que tem se refletido de forma aguda no preço dos ativos, com forte desvalorização do real, elevação das taxas de juros de mercado e queda da bolsa.

Além de ser claramente insuficiente para controlar o crescimento das despesas, a proposta de ajuste apresentada pelo governo no final de novembro incluiu de forma desastrada um aumento da faixa de isenção de imposto de renda para beneficiar grande parte da classe média.

Para piorar a situação, o Congresso desidratou as medidas fiscais de forma substancial e abrangente, incluindo desde as mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC) aos supersalários do funcionalismo público. Isso demonstrou baixa preocupação com a solvência das contas públicas e com a redução de privilégios de grupos de interesse.

Além disso, o cenário internacional se agravou com a sinalização do Fed de que fará uma redução menor da taxa de juros que a esperada pelo mercado. Isso concretizou a perspectiva de que teremos que conviver com taxas de juros reais elevadas por um longo período, o que pode colocar a dívida pública em uma trajetória insustentável.

O Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) de dezembro da Instituição Fiscal Independente (IFI) divulgado esta semana evidencia esse cenário de descontrole da dívida. Segundo as projeções da IFI, a dívida pública deverá atingir 86,3% do PIB em 2026 e 91,0% do PIB em 2027. Em 2030, a dívida deve superar 100% do PIB (102,3%) e se elevar para 116,3% em 2034.

O relatório destaca que essas projeções divergem consideravelmente das estimativas apresentadas pela Secretaria do Tesouro Nacional no Relatório de Projeções Fiscais do 1º Semestre de 2024, que prevê a reversão do crescimento da relação dívida/PIB a partir de 2027.

Segundo a IFI, para estabilizar a relação dívida/PIB no nível de 2023 (73,8%), seria necessário gerar superávits primários de cerca de 2,4% ao ano. Essa necessidade contrasta fortemente com as projeções feitas pela IFI de déficit primário do governo central de 0,4% do PIB em 2024 e 0,7% do PIB em 2025, com agravamento a partir de 2026, alcançando 1,6% do PIB em 2032.

Diante deste cenário, não é surpresa que o debate sobre dominância fiscal tenha se intensificado nas últimas semanas. Em uma situação de grave endividamento do setor público, uma elevação da taxa de juros por parte do Banco Central com o objetivo de combater a inflação poderia aumentar o prêmio de risco, elevar as expectativas de inflação e resultar em desvalorização da taxa de câmbio, agravando ainda mais o quadro inflacionário.

Um estudo de Carlos Gonçalves, Mauro Rodrigues e Fernando Genta divulgado semana passada (“Monetary Policy Effectiveness in a Highly Indebted Economy: Evidence from Brazil”) investiga empiricamente essa possibilidade para o Brasil com base em dados diários entre outubro de 2009 e agosto de 2024.

Os autores mostram que, durante esse período, choques positivos na taxa de juros resultaram em redução das expectativas de inflação e apreciação da taxa de câmbio. Portanto, a política monetária foi efetiva apesar do elevado endividamento público da economia brasileira.

Além disso, a autonomia formal do Banco Central do Brasil aprovada em 2021 tende a reduzir o risco de dominância fiscal. Um estudo recente de Carlos de Resende e Jonathan Hoddenbagh (“A New Test of Central Bank Independence and Fiscal Dominance”) constrói um índice de dominância fiscal para 24 países da OCDE e mostra que situações de dominância fiscal estão associadas a um baixo grau de autonomia do banco central.

Embora esses estudos forneçam elementos para um menor pessimismo em relação ao risco de dominância fiscal no Brasil, o contexto atual tem algumas características que geram muita preocupação.

Primeiro, além de ter ficado claro ao longo deste ano que o governo não aceitou as restrições impostas pelo arcabouço fiscal, também tem ficado evidente que o Congresso não vai se contrapor ao Executivo com medidas de fortalecimento das contas públicas.

Embora a crise econômica do período 2014-2016 tenha inviabilizado a reeleição de muitos parlamentares, é possível que o aumento do montante e a crescente impositividade das emendas desde meados da década passada tenham reduzido a preocupação do Congresso com o desequilíbrio fiscal e suas consequências eleitorais. Em particular, o resultado das eleições municipais deste ano pode ter reforçado esta percepção.

Segundo, a crise atual ocorre em um momento delicado de transição na presidência e diretorias importantes do Banco Central, e a forte elevação da Selic que será necessária para levar a inflação para a meta representará um duro teste da autonomia do Banco Central.

Embora essa situação ainda possa ser revertida, está claro que o risco de dominância fiscal aumentou consideravelmente. Tudo indica que esse tema continuará presente no debate nos próximos dois anos.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 20/12/2024.

Comentários

Fernando
Sem a âncora fiscal e monetária recorre -se às boias heterodoxas(reservas no início).
Fábio
Essa crise começou a ser gerada antes mesmo do Lula subir a rampa. A pec da transição serviu pra comprar o lupem proletariado, políticos, barnabes, bilionários. Tudo pra conferir legitimidade social a um governante de manifesta ilegitimidade.

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.