Salomão Quadros, o gentil e didático mestre da inflação e dos seus índices
Salomão Quadros, que faleceu em 24 de janeiro deste ano, era visto com um dos maiores especialistas do Brasil em inflação e nos seus muitos índices. Com o seu temperamento tranquilo e cordial, e um grande senso didático, ele conseguia transmitir informações, análises e conhecimento como poucos, e era um economista muito estimado por seus colegas e por jornalistas, com os quais mantinha intenso contato.
Salomão também possuía a capacidade de escrever de forma clara, precisa e elegante, como pude testemunhar como revisor do Boletim Macro Ibre, publicação mensal de conjuntura econômica do FGV/Ibre. Entre os cerca de dez textos do Boletim que eu revisava (e ainda reviso) a cada mês, a seção de Inflação, escrita pelo economista, já “vinha pronta”. Era difícil encontrar uma vírgula para mudar no texto de Salomão.
Nascido em Salvador, Salomão formou-se em Engenharia Elétrica na PUC-Rio em 1978, e concluiu mestrado em engenharia de produção na Coppe-UFRJ em 1981. Ele entrou no Ibre em 1980, e, ao longo de várias décadas, teve uma intensa atividade profissional na Fundação Getúlio Vargas. Isto incluiu uma ligação de cerca de seis anos com a EPGE, período em que foi aluno de Mario Henrique Simonsen, Fernando Holanda, Clovis de Faro e Raul Ekerman (já falecido). Embora não tenha concluído a pós-graduação, Salomão recordou-se dessa fase – no depoimento para o livro Memória do Ibre – como um tempo de intenso estudo de Economia.
Ele foi diretor adjunto do Ibre em 1992. Por muitos anos, e até seu falecimento, Salomão ocupou o cargo de superintendente adjunto de inflação, sendo responsável pelo cálculo e divulgação do Índice Geral de Preços (IGP) da Fundação. Neste posto, ele se tornou uma autoridade e figura conhecida na área de inflação, fonte preferencial dos melhores jornalistas econômicos e inclusive autor do livro “Muito além dos índices – Crônicas, história e entrelinhas da inflação”.
Abaixo, seguem alguns depoimentos sobre Salomão:
Karina Carvalho Quadros, especialista em análises econômicas do Ibre/FGV
Muito além dos índices*.... Conheci o Salomão em junho de 1989 numa entrevista para o cargo de economista júnior no antigo Banco de Dados do IBRE. De lá pra cá, já trabalhei em vários setores do instituto e tive vários chefes, todos ótimos, mas o Salomão foi especial, tão especial que nos casamos em 1995!
Posso dizer que essa coisa de levar trabalho para casa era rotina. Eu, até, muitas vezes insistia, “vamos terminar isso depois do jantar”. Somos da época pré-internet, Google e tal, tudo era mais demorado. Fazer uma pesquisa significava horas de biblioteca. E, detalhista como era, Salomão ficava até tarde escolhendo a palavra certa para finalizar um artigo. Na minha opinião, sempre conseguia. Seus textos eram muito bem escritos, elegantes, mesmo quando era um simples memorando interno.
Salomão descobriu a economia depois de formado em engenharia. Poderia ter sido um bom médico, quem sabe escritor. Também adorava música. Tocava piano e estudou Sax. Não deu para conciliar todos os interesses, ficou só na economia. Esperava retomar os estudos musicais na aposentadoria. Mas hoje em dia, quem se aposenta?
Os amigos diziam que parecíamos o casal 20 (alusão ao seriado da TV do início dos anos 80). Apesar da perda tão precoce (faria 63 em março), fico feliz de ter vivido a experiência. Tivemos uma filha juntos, a Julia, que herdou o jeito discreto e meigo do pai, hoje com 21 anos. O Salomão teve antes a Isadora, hoje com 26 anos, que conheci com menos de 2. Ela herdou do pai a aparência física, o gosto pela literatura e o estudo de línguas, o italiano, em particular.
O momento é difícil e ainda muito recente. Agradeço a todos do IBRE pelo carinho e preocupação comigo e com as meninas e pelas homenagens ao Salomão.
* Título do livro do Salomão publicado pela editora FGV em 2008
Paulo Picchetti, Professor da EESP/FGV e pesquisador do IBRE/FGV
Salomão era uma referência nas várias dimensões por trás do trabalho cuidadoso necessário para o cálculo de índices de preços. A primeira diz respeito à fórmula ideal para aquilo que o índice se propõe a medir, e isso é bem menos evidente do que transparece para o público consumidor da informação, com um corpo considerável de teoria econômica expondo várias opções e suas vantagens relativas. Depois, o processo de coleta e tratamento de dados, incluindo definição amostral e análise das informações obtidas para filtrar erros. Em seguida, o cálculo do índice em si através de algoritmos computacionais. Depois do índice pronto, uma etapa fundamental é a análise e comunicação dos resultados de forma clara e transparente para a sociedade. Nesta última Salomão brilhava, tanto em entrevistas quanto na redação de textos, mas esta era apenas a ponta final do trabalho no qual ele estava envolvido em todas as etapas acima.
No plano pessoal, era uma pessoa dedicada à sua família e aos amigos, e dono de uma cultura vasta e insuspeitada para aqueles que o conheciam apenas pelo trabalho de economista. Filho de uma professora de piano, também tocou saxofone por um tempo e tinha um conhecimento amplo e de bom gosto sobre música clássica e jazz, além de literatura. Outro ponto de destaque para aqueles que o conheciam mais pessoalmente era o senso de humor único. Uma vez perguntado sobre dicas de turismo no Rio de Janeiro respondeu “Você tem que subir ao Corcovado pelo menos uma vez na vida. Ainda bem que eu já fui a minha...”
Aloisio Campelo, Superintendente de Estatísticas Públicas do IBRE/FGV
Salomão Quadros tinha graduação e mestrado em Engenharia quando veio fazer o Doutorado em Economia na EPGE. Essa formação talvez ajude a explicar seus caminhos profissionais na FGV, sua única casa profissional por quase 40 anos. Por sua ótima formação quantitativa e capacidade organizacional, foi chamado em 1982 para ajudar na criação de um banco de dados de economia brasileira. Era um primeiro esforço no sentido de se facilitar o trabalho daqueles que pretendiam entender nosso país a partir da pesquisa científica, com conteúdo empírico. O projeto foi sendo aperfeiçoado ao longo do tempo, até chegar, já nos tempos da internet, ao atual FGVDADOS, banco de dados de estatísticas econômicas produzidas na FGV IBRE e de estatísticas econômicas selecionadas, produzidas por outras instituições.
Entre suas principais características profissionais destaco também a procura pela melhor forma de comunicação com o público. Ao final da década de 1990, quando acumulou a gestão do Banco de Dados com a coordenação do setor que então produzia a Sondagem Trimestral da Indústria, uma de suas primeiras medidas foi reformular o até então enfadonho tipo de relatório, para buscar uma linguagem mais acessível e que comunicasse não apenas a especialistas no assunto, mas a toda a comunidade econômica, governo e imprensa. Concomitantemente, tomou o importante passo de “digitalizar” a produção estatística da Sondagem. Já a partir de 2001, as empresas passaram a ter a opção de responder o questionário da Sondagem Industrial em ambiente Web, todos os cálculos foram unificados numa plataforma eletrônica e os microdados passaram a ser armazenados de forma mais moderna e segura.
Embora tenha passado as décadas de 1980 e 1990 concentrado no projeto do Banco de Dados e, mais ao final do período, na produção estatística, Salomão nunca deixou de refletir sobre a economia brasileira. Somente na revista Conjuntura Econômica, Salomão publicou 57 artigos nesse período, sobre temas como crescimento econômico brasileiro ou da América Latina, política monetária, política fiscal e inflação. A partir de 2004, quando assumiu o Núcleo e Índices Gerais do IBRE, seus artigos passaram a focar na inflação. Embora não tivesse se especializado nisso durante seu período acadêmico, tornou-se um dos maiores especialistas brasileiros no assunto. Nos seus cerca de 50 artigos publicados sobre o tema para Conjuntura, a busca pela combinação certa entre profundidade técnica e comunicação direta era evidente. Os textos eram ao mesmo tempo relevantes, tecnicamente corretos e agradáveis de se ler. Títulos de artigos como Ata-me ou Paulo Coelho e a Inflação expunham sua busca por um texto mais saboroso, além de revelarem um pouco de suas preferências culturais: cinema e música. Gostava principalmente do cinema de grandes diretores (europeus e americanos) e de jazz. Arrisco dizer que seus textos e comentários contribuíram bastante para o aperfeiçoamento da comunicação sobre temas econômicos, principalmente daqueles relacionados à divulgação de estatísticas no Brasil.
Como pessoa, Salomão era discreto. Falava pouco, mas não deixava de expor sua opinião. Muitas vezes acrescentava pitadas de humor em assuntos potencialmente enfadonhos, criando imagens para facilitar a comunicação. Como a imagem de que o IPA ficaria “grávido do IPC”, para retratar o canal de transmissão entre os preços no atacado e no varejo. Ou a imagem da “visita ao centro da meta”, quando avaliou que um período de bonança seria apenas temporário e que a inflação voltaria a subir e a preocupar nos meses seguintes.
No convívio no trabalho era extremamente transparente e preocupado em ser justo e correto com os colegas de todos os níveis. Entre amigos, uma pessoa suave, agradável, atenciosa. Deixará muitas saudades.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor do artigo e das pessoas que deram depoimentos, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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