Saudades de São Paulo
O recente conflito entre o governador João Doria e o ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello, em torno da vacina contra a Covid-19 parece ser típico do momento ímpar que o Brasil tem vivido ao longo de 2020. Todavia, a disputa remonta a um fenômeno marcante da história republicana, nomeadamente, os frequentes embates entre o governo central e o maior estado da Federação, São Paulo, cuja principal expressão foi a chamada revolução constitucionalista de 1932. Não à toa, intensas discussões sobre o tamanho da representação de São Paulo na Câmara dos Deputados também caracterizaram as Assembleias Constituintes de 1946 e 1987-1988.
Refletir sobre o lugar de São Paulo na ordem política nacional é fundamental para compreendermos o Brasil de ontem, hoje e amanhã. Em livro clássico sobre o assunto publicado em 1982, Simon Schwartzman sustentou que, a partir da década de 1930, a política brasileira tivera como eixo geopolítico a constelação formada por Minas Gerais, o Nordeste, o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, à exclusão justamente da região economicamente mais dinâmica do país, São Paulo[1]. Do ponto de vista político, São Paulo produziu, no máximo, lideranças populistas, as quais não foram capazes de transcender a fronteira do estado. De maneira intimamente ligada àquela constelação, o Estado Nacional brasileiro, ainda segundo Schwartzman, não seria o representante de interesses orgânicos da sociedade, mas objeto de conquista por parte de um estamento político parasitário.
Com o desenvolvimento do país, Schwartzman esperava que uma política mais representativa emergisse, com partidos apoiados nas classes sociais modernas, a burguesia e o operariado, e originários da região mais capitalista do país, São Paulo. De fato, a partir da redemocratização em 1985, mas sobretudo com a chegada do PSDB, partido nascido em São Paulo, ao Planalto dez anos depois, o estado se firmou como a unidade subnacional politicamente dominante, tendência reafirmada com a ascensão do PT, outra agremiação de berço bandeirante, ao poder central em 2003.
Sob a hegemonia política paulista, entre 1995 e 2013 o Brasil logrou cinco feitos que, anteriormente, nunca conseguira combinar simultaneamente: (1) ter um regime democrático; (2) ter relativa estabilidade política; (3) gerar crescimento econômico, ainda que modesto; (4) reduzir consideravelmente a pobreza e a desigualdade social; e (5) usufruir de inédito prestígio internacional. Não foi pouco. É também prova da presciência da análise de Schwartzman.
De forma trágica e ainda não plenamente compreendida por nós, a partir de 2014 os feitos referidos acima começaram a se perder aceleradamente. Hoje em dia, sobrou apenas o regime democrático, mas este se encontra em estado crítico. De maneira coerente com a obra de Schwartzman e no rastro do acentuado declínio do PSDB e do PT, São Paulo, hoje, não é mais o estado-líder da política nacional.
Para mostrar como é confusa a circunstância em que nos encontramos, o fim da hegemonia política paulista foi consequência, em boa medida, de ações protagonizadas por paulistas. O mensalão teve a indelével marca de políticos petistas de extração paulista. Como reação à debacle da seção paulista do PT, Lula, político paulista apesar de nascido em Pernambuco, indigitou a inexperiente Dilma Rousseff como sucessora. Como é sabido, os dois mandatos de Rousseff à frente do Executivo Federal demoliram os pilares econômicos da obra iniciada em 1995.
Destituída em 2016, Rousseff foi substituída por seu vice, Michel Temer, político paulista. A presidência do último, contudo, não foi fruto da força de São Paulo, mas, isto sim, de manobras de bastidor extremamente controversas, as quais muito ajudaram a deslegitimar a ordem política vertebrada por São Paulo.
Como se tudo aquilo não bastasse, no primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, os paulistas deram ao candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, governador do estado por doze anos, apenas 9,5% dos seus votos. Jair Bolsonaro, político carioca apesar de nascido em São Paulo, recebeu 53% dos votos paulistas. No segundo turno, Bolsonaro colheu nada menos que 68% dos sufrágios bandeirantes. Foi a pá de cal sobre a hegemonia política paulista.
Para encerrar a cerimônia de enterro, na eleição para o governo de São Paulo em 2018, João Doria, candidato do PSDB, cria a figura do “Bolsodoria” para designar seu alinhamento à campanha de extrema-direita de Bolsonaro ao Palácio do Planalto. É preciso que se assevere enfaticamente: a transformação da seção paulista do PSDB – organização criada pelas mãos progressistas de estadistas como FHC, Franco Montoro e Mário Covas em 1988 – em veículo de uma liderança personalista de extrema-direita como João Doria, em 2018, foi um dos mais assombrosos fenômenos políticos da história nacional. É algo raro na história mundial da democracia. Quantas vezes se vê um partido indo da centro-esquerda para a extrema-direita?
Por isso, há de se perguntar: será Doria capaz de liderar o centro político contra Bolsonaro em 2022, como se tem especulado recentemente?
Sem dúvida, Doria se distanciou de Bolsonaro em 2019. Ao longo de 2020, ele e o presidente brigaram o tempo inteiro. Viraram inimigos figadais. O governador de São Paulo está tentando se reinventar, mas conseguirá um dos coveiros do antigo PSDB paulista e um dos grandes patrocinadores da radicalização de 2018 representar as virtudes da moderação e do diálogo?
Diante da perspectiva de Doria vir a liderar uma coligação de forças centristas, só resta a este analista político carioca dizer baixinho: Que saudades de São Paulo de outrora...
Este artigo é a seção Observatório Político do Boletim Macro Ibre de dezembro de 2020.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Simon Schwartzman, Bases do Autoritarismo Brasileiro (Editora da Universidade de Brasília, 1982).
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