Sobre dívida pública, mercado financeiro e o conflito entre o soberano e o mercado
Conflito latente entre governos e mercado data de séculos. Mas história mostra que superação desse conflito melhora as condições de financiamento do setor público, com impactos positivos sobre a execução das políticas públicas.
Tiveram grande destaque na imprensa, chamaram a atenção de economistas e repercutiram no mercado as declarações do presidente eleito do Brasil em que faz críticas ao mercado financeiro e ao teto de gastos, e aponta possível contradição entre a expansão de gastos sociais e a responsabilidade fiscal. Tais pronunciamentos geraram, de um lado, memes ironizando as reações do mercado financeiro, alguns artigos de opinião reforçando as críticas ao mercado, e, de outro lado, muitos artigos defendendo que não há conflito entre a responsabilidade fiscal e as políticas públicas em favor dos mais pobres. Como forma de contribuir para este debate, irei recorrer à história dos mercados financeiros, com base em dois bons livros sobre o tema[1], para mostrar que o conflito entre governos, ou “o soberano”, e os mercados que o financiam é antigo, mas que uma boa relação com os mercados ajuda a melhorar as condições de financiamento do setor público.
Os bancos modernos tiveram origem na Europa, ainda no final da Idade Média, e expandiram suas operações ao longo da Idade Moderna. Essas instituições recebiam depósitos, faziam pagamentos, transferência de recursos, câmbio de moedas e concediam crédito. Nessa época, os primeiros Estados nacionais já recorriam aos mercados para financiar seus recorrentes déficits e tinha início uma história de conflitos entre soberanos e o mercado financeiro, marcada por calotes de dívidas e desvalorizações das moedas de Estados endividados. Por exemplo, entre 1544 e 1551, o governo inglês, com grandes volumes de dívidas no exterior, viu os mercados desvalorizarem a libra esterlina em 50%. A reação das autoridades foi culpar os agentes de câmbio, misteriosos italianos cuja opinião negativa em relação à fiabilidade do crédito inglês não passaria de uma farsa para obter lucros injustificados.
No final do século XVII, as finanças do governo inglês continuavam precárias, ao mesmo tempo em que o país passava por um processo de revolução política, com a instituição da monarquia parlamentarista. Nesse importante momento histórico, foi criado o Banco da Inglaterra, uma instituição de capital privado que nasceu com o objetivo principal de financiar o governo inglês, recebendo em troca o monopólio da emissão de moeda . Tal arranjo visava a alinhar os interesses do mercado financeiro e do soberano e, ao melhorar as condições de crédito do governo inglês, é considerado um dos fatores para o sucesso econômico e militar britânico nos dois séculos seguintes.
Rogoff e Reinhart (2010) relatam oito séculos de crises financeiras, marcadas por crises bancárias, calotes de dívidas públicas, crises cambiais e surtos inflacionários, e mostram que os governos da maior parte dos países atualmente desenvolvidos já deram calotes de suas dívidas no passado. Entretanto, ao longo das décadas e dos séculos passaram por um processo de graduação para a condição de países desenvolvidos, que incluiu a assiduidade no pagamento de suas dívidas soberanas. Esse selo de bom pagador permitiu melhores condições de financiamento da dívida pública, com impactos positivos sobre a disponibilidade de recursos para a execução das políticas públicas.
Os autores também mostram que, no outro espectro das finanças internacionais, estão países que não têm acesso ao mercado de crédito, ficando dependentes de subvenções e empréstimos oficiais de instituições multilaterais ou outro países. O governo brasileiro pertence ao grupo mais numeroso, de países com acesso ao mercado de crédito interno e externo, mas que têm condições de financiamento piores e mais instáveis que as dos países desenvolvidos.
Muitas críticas aos mercados financeiros são justificáveis pois, quando não limitados por regulações impostas pelo setor público, eles tendem a gerar instabilidade financeira, alternando momentos de euforia, expansão do crédito e excesso de endividamento com momentos de pessimismo e restrições ao crédito, o que afeta negativamente a economia real. Além disso, algumas de suas operações podem ser consideradas eticamente discutíveis, como, por exemplo, financiar de bom grado o governo de um ditador que controla rentáveis reservas de petróleo e negar crédito a governos de países de baixa renda incapazes de oferecer boas garantias. Outro ponto negativo é que, em momentos de crises, com risco de quebra de instituições financeiras, esse mercado costuma recorrer ao socorro do setor público, socializando prejuízos.
Tudo isso torna politicamente atraente culpar o mercado pelas restrições financeiras inerentes a governos que administram demandas por gastos praticamente infinitas e receitas limitadas. Não obstante, alimentar o conflito de governos com o sistema que os financia não atende aos interesses da população, pois, em caso de restrições de acesso a crédito, os governos serão forçados a limitar seus gastos à disponibilidade de receitas ou, alternativamente, usar seu poder coercitivo para forçar o direcionamento da poupança nacional para o financiamento do déficit público, ou, ainda, utilizar a emissão de moeda para cobrir o excesso de despesas, com impactos negativos sobre a inflação e o bem estar da população. Lembrarmos que entes subnacionais no Brasil chegam a atrasar o pagamento de fornecedores e de seus funcionários dá uma boa ideia do impacto das restrições de acesso ao mercado financeiro.
Um último ponto a destacar é que, na financeirizada economia moderna, os agentes econômicos operam alavancados, ou seja, com elevado volume de dívidas, e descasamento da liquidez de ativos e passivos. Este sistema complexo é dependente da confiança e de expectativas sobre o futuro construídas de forma precária, o que faz com que ele seja intrinsicamente instável e sujeito a crises de confiança. Isso ajuda a explicar o criticado nervosismo e a sensibilidade do mercado, e torna mais importante o cuidado em relação à gestão da dívida pública, bem como evitar conflitos desnecessários com seus financiadores.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Kenneth Roggof e Carmen Reinhart (2010). “Oito Séculos de Delírio Financeiro: Desta Vez é Diferente” e Felix Martin (2016).“Dinheiro: Uma biografia não autorizada”.
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