Sobre o planejamento de estratégias de saída segura da quarentena
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, referindo-se ao planejamento da saída da quarentena em seu país, afirmou que esta seria “the biggest decision I’ve ever had to make”. Decisão tão importante exige qualidade das informações disponíveis e definição de parâmetros e diretrizes que guiem os gestores públicos. É sobre esse tema que trataremos neste artigo.
A quarentena é uma medida extrema, imposta pela necessidade de reduzir a velocidade de disseminação do novo coronavírus e, com isso, permitir o ganho de tempo necessário para ampliar a capacidade de atendimento da rede hospitalar, bem como o desenvolvimento de métodos para mitigar o espraiamento da doença e de formas mais eficazes de tratamento. Entretanto, ela não é sustentável por muito tempo, pois a sociedade humana foi construída com base em sofisticada estrutura de interações econômicas, sociais e pessoais, e a drástica redução destas interações gera elevado custo econômico, social e emocional. Por isso, é preciso planejar e implantar, o mais rapidamente possível, estratégias de saída segura das políticas de isolamento social severo.
Antes de qualquer coisa, é preciso entender os impactos da velocidade de contágio do vírus, chamada R(t). Quando não se tem nenhum tipo de cuidado de prevenção, o R(t) é chamado de R(0) e fica entre 2,5 e 3 para o novo coronavírus. R(0) igual a 3 significa que uma pessoa, em média, transmite a doença a outras três. Como isso ocorre ao longo de apenas cinco dias, o período médio de incubação do vírus, o número de novas contaminações é multiplicado por 3 a cada 5 dias ou 729 em um mês. Essa expansão tão rápida é que forçou quase todos os países do mundo a adotar a quarentena. Então, a primeira condição para sair dela é a redução da velocidade de contágio do vírus, para algo próximo de 1. R(t) igual a 1 implica que o número de novos casos diários da doença permaneça estável, eliminando o seu caráter exponencial de disseminação. Essa condição será alcançada quando indicadores diários de novos casos confirmados, óbitos e internações por Covid-19 mostrarem tendência de estabilidade ou queda.[1]
Uma vez atingido esse estágio, ainda seriam necessários ajustes em ambientes de trabalho, comerciais e de lazer, bem como no transporte coletivo, e a exigência de hábitos de higiene e outros cuidados da população para minorar a transmissão do vírus e, assim, manter a velocidade de transmissão do vírus próxima a 1, após a saída da quarentena. Nesse sentido, além da higienização frequente das mãos e da manutenção de certa distância entre as pessoas, levantamentos recentes confirmam a efetividade do uso universal de máscaras pela população, algo já adotado em países asiáticos com sucesso. Da mesma forma, a desinfecção de ambientes de uso coletivo tem sido apontada como medida eficaz. Outra medida importante é a diferenciação entre horários e dias de trabalho de diferentes setores, de forma a se evitar os momentos de pico do transporte coletivo. O estímulo ao teletrabalho deve continuar.
A segunda condição é a ampliação da capacidade de atendimento da rede hospitalar, pois é preciso ter condições de atender ao possível crescimento do número de internações diárias, ao sair-se da quarentena. Além da construção de “hospitais de campanha” e da transformação de leitos de enfermaria em UTI, o remanejamento de pacientes para a rede privada pode desafogar o sistema público. Outras medidas importantes são a formação de estoques estratégicos de materiais e equipamentos pelo Ministério da Saúde, os quais seriam encaminhados para estados e municípios de acordo com as necessidades, e o treinamento de pessoal da saúde para o atendimento de pacientes com a Covid-19 e para o rastreamento de casos e contatos. Importante registrar que, neste momento, estão sendo testados inúmeros tratamentos promissores para a doença, de modo que, num futuro próximo, poderemos ter alternativas que reduzam não apenas a letalidade da doença, mas também o tempo de internação, contribuindo para diminuir a ocupação dos leitos hospitalares.
A terceira condição é a disponibilidade de indicadores confiáveis sobre a evolução da disseminação da covid-19, que permitiria, após a saída da quarentena, identificar eventual necessidade de retomar restrições de movimentação. Por esse motivo, fala-se, em todo o mundo, da necessidade da ampliação do número de testes para a doença. Entretanto, isso esbarra em graves limitações, pois os testes precisariam ser repetidos rotineiramente e é impossível viabilizar a realização de milhões de testes a cada dia ou mesmo semana. O mais viável é manter os testes para indicações clínicas específicas e para profissionais das áreas de saúde e segurança, e desenvolver metodologia de testes por amostragem, a ser realizada semanalmente, para construir um indicador fidedigno da evolução dos casos da doença na população.
Indicadores da velocidade de disseminação do vírus já existentes, tais como os números de casos confirmados, de internações pela Covid-19 e de óbitos, são muito úteis, mas têm limitações, em função da subnotificação e do atraso em refletir a realidade da transmissão do vírus. O aprimoramento desses indicadores exige a ampliação da capacidade de processamento dos testes e maior agilidade na notificação, para que as informações sejam disponibilizadas rapidamente.
Outro indicador relevante é o número de casos notificados de síndrome respiratória aguda grave (SRAG). Apesar de ser menos específico, por incluir outras doenças respiratórias, ele tem boa correlação com a evolução da pandemia de covid-19 e independe da realização de testes de confirmação da doença, bastando o preenchimento de critérios clínicos ou laboratoriais facilmente aferíveis mesmo em unidades básicas de saúde. A SRAG já é afecção de notificação compulsória, conforme estabelecido pelo Ministério da Saúde, e sua incidência pode ser analisada quase que “em tempo real” pelos gestores locais. Basta, para isso, que se aprimorem os sistemas de informação em saúde.
Na condição de coordenador nacional das ações de enfrentamento à pandemia, o Ministério da Saúde pode fornecer, com base nos indicadores especificados anteriormente, as informações, os parâmetros e as diretrizes necessárias para a tomada de decisão de estados e municípios sobre as medidas de relaxamento das restrições à movimentação de pessoas. Com isso, os gestores públicos terão embasamento técnico para a escolha, que dependerá da situação específica de cada município ou região metropolitana.
Enfim, com a implantação das medidas adequadas para minorar a velocidade de disseminação do vírus, aumentar a capacidade de atendimento da rede de saúde e monitorar a evolução dos casos de covid-19, é possível uma saída segura e controlada da quarentena, evitando-se um falso conflito entre vidas e empregos, saúde e economia, por meio de planejamento cuidadoso e gestão eficiente.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Dados da Itália e da Espanha mostram que o número de casos diários de contaminações identificadas e de mortes por Covid-19 chegaram ao ápice após duas semanas, no caso de contaminações, e três semanas, no caso de óbitos, do início da quarentena, depois passaram a cair. Esses resultados são compatíveis com o ciclo de desenvolvimento estimado da doença e mostram que as medidas extremas de isolamento social conseguiram reduzir a velocidade de disseminação da doença, R(t), para abaixo de 1. No Brasil, a análise dos dados é dificultada pelo atraso na divulgação dos resultados dos exames, tanto para casos confirmados, quanto para óbitos.
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