Fiscal

Surpresa fiscal positiva já foi em boa parte consumida por novos gastos e desonerações

10 jan 2023

Apesar de melhora fiscal ajudada por receitas ligadas ao setor extrativo, expectativa sobre dívida/PIB até 2030 piorou com PECs que abalaram teto de gastos. E faltam R$ 120 bi por ano em 2024 e 2025 para equilibrar o fiscal.

Os anos de 2021 e 2022 apresentaram resultados fiscais no Brasil que surpreenderam de forma fortemente positiva os analistas. O resultado primário do setor público consolidado, em 2021 e 2022, foi de, respectivamente, +0,7% e +1,1% (estimativa) do PIB – não se observava superávit primário em um biênio desde 2012/13. Já a despesa federal como proporção do PIB ficou em, respectivamente, 18,1% e 18,4%, chegando ao último ano do governo Bolsonaro abaixo do nível de 19,3% do PIB em 2018, logo antes de ele tomar posse (também fechando abaixo do pico histórico de 19,9% registrado em 2016).

É preciso, no entanto, qualificar essa melhora das contas públicas, que derivou em parte expressiva de fatores positivos que não exatamente refletem a política fiscal corrente – embora seja inegável que a Reforma da Previdência aprovada em 2019 e a contenção real do salário-mínimo nacional e nominal da folha dos servidores também contribuíram para a melhoria dos resultados fiscais.

O fechamento do hiato do produto no segundo semestre de 2022 (após quase sete anos de economia operando aquém do pleno emprego) também ajudou a melhorar o resultado fiscal. Entre 2016 e 2019, o hiato fortemente negativo subtraiu cerca de 2 pontos percentuais (pp) do PIB ao ano do resultado primário recorrente do governo geral. Convém assinalar que esse fechamento teve como um dos grandes impulsionadores a forte alta dos preços das commodities desde meados de 2020.

Ainda assim, como aponta Bráulio Borges, pesquisador do FGV IBRE, não se pode ignorar o impacto, pelo lado da arrecadação, do salto das receitas associadas ao setor extrativo mineral, com grande destaque para o petróleo/gás. Esses ingressos corresponderam a 1,8% do PIB em 2021 e a 2,6% do PIB em 2022, bem acima da média de 0,9% do PIB entre 2011 e 2020 (bem como da média de 1,1% do PIB observada em 2019-20).

Quando as receitas associadas ao setor extrativo mineral são agregadas aos ingressos relacionados às concessões e permissões (rubrica que engloba receitas com outorgas de campos de petróleo, bem como as receitas com a privatização da Eletrobras), constata-se que elas adicionaram em média 1,1pp do PIB à arrecadação bruta federal entre 2015 e 2019 (1,3pp na média 2011-20). Em 2021, elas chegaram a 1,9% do PIB e devem fechar 2022 em 3,1% do PIB. Não fosse o salto nesse grupo específico de receitas, o setor público brasileiro muito provavelmente teria registrado déficits primários em 2021 e 2022.

A magnitude da surpresa na arrecadação fica patente quando se compara a projeção de receita líquida primária do governo federal que consta do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2022, divulgada em agosto de 2021, que era de R$ 1,60 trilhão, com a estimativa de dezembro de 2022 apresentada no Relatório Extemporâneo de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias da Secretaria do Ministério da Economia, de R$ 1,86 trilhão. Em um ano e meio, descobriu-se que a receita de 2022 era R$ 263,5 bilhões, ou 2,65% do PIB, maior do que a projetada inicialmente. Na verdade, quando se levam em conta também as desonerações de IPI, PIS/Cofins sobre combustíveis e TEC Mercosul implementadas ao longo de 2022 (e que não constavam do PLOA 2022), com impacto de cerca de R$ 27 bilhões nas receitas, constata-se que a surpresa favorável na arrecadação líquida da União em 2022 seria mais próxima dos R$ 290 bilhões (2,9% do PIB).

Outro aspecto de destaque dos resultados fiscais do Brasil nos últimos anos é o fato de que a dívida bruta do governo geral (DBGG) e a dívida líquida do governo geral (DLGG), ambas como proporção do PIB, deverão encerrar 2022 em níveis praticamente iguais àqueles de 2019, em contraste com o quadro observado em boa parte dos demais países (em função do choque da Covid), nos quais o endividamento em 2022 ainda era significativamente maior do que em 2019.

No entanto, como aponta recente documento do FMI (edição de outubro do Fiscal Monitor), a inflação muito acima das metas em 2021 e 2022 explica boa parte da evolução benigna da relação dívida/PIB brasileira. Isso se dá pelo aumento do denominador da relação dívida/PIB, efeito reforçado pelo fato de que o deflator do PIB tem sido sistematicamente superior à inflação ao consumidor (o que também faz com que as receitas tributárias, que tendem a acompanhar a variação nominal do PIB, corram na frente das despesas, mais vinculadas à inflação ao consumidor, IPCA/INPC). Por outro lado, projeta-se, desde meados de 2022 – portanto, bem antes da discussão da PEC da Transição – um salto de pouco mais de 3pp da relação dívida/PIB em 2023, refletindo a expressiva majoração da Selic para trazer a inflação de volta às metas (maior custo da dívida e menor crescimento do PIB nominal).

A dinâmica favorável da relação dívida/PIB pode ser mais bem compreendida quando se constata que o célebre “r-g” (custo da dívida menos a taxa de variação do PIB; quanto maior, pior para a relação dívida/PIB) foi bastante negativo no biênio 2021-22, algo inédito. Em 2021, o “r-g” foi de -8,6pp, devendo fechar 2022 em -1,7 pp. Já em 2023 ele deverá se aproximar de +5,0pp. Vale lembrar que, na média 2001-19, ele foi de +2,7pp.

Fica bem claro, portanto, que diversos fatores contribuíram para a surpresa fiscal positiva de 2021-22, com uma “conjunção de astros” extremamente favorável para as receitas do governo.

Não obstante, desde o final de 2021, as expectativas em relação à trajetória futura da relação dívida/PIB tiveram forte deterioração. Esse fato torna-se evidente quando se observa, como aponta Borges, a diferença entre a projeção de consenso para a relação DBGG/PIB em 2030 e aquela esperada para 2022. No segundo semestre de 2021, até novembro daquele ano, essa diferença chegou a ser negativa. Em outras palavras, o mercado esperava que a DBGG/PIB recuasse até 2030. Veio então a PEC dos Precatórios, o primeiro grande drible no teto de gastos, e a diferença saltou para o terreno positivo, chegando a uma projeção no início de 2022 de DBGG/PIB, em 2030, 8pp do PIB maior do que a de 2022.

Essa diferença deu saltos também logo após a aprovação da chamada “PEC Kamikaze”, em julho de 2022, e finalmente, da PEC da Transição, chegando recentemente a +12pp do PIB de alta. Não é coincidência que esses saltos da expectativa da trajetória da relação dívida/PIB até 2030 tenham acontecido após a aprovação de PECs que, de tanto contornar, acabaram por desmoralizar por completo o papel de âncora fiscal desempenhado pelo teto de gastos federal criado pela EC 95/2016.

Esses dribles no teto de gastos em 2022 podem ser mais bem compreendidos quando se constata que, caso a regra original tivesse sido cumprida, a despesa primária federal em porcentual do PIB encerraria 2022 em cerca de 16,6% do PIB, 1,8pp menos do que os 18,4% que devem ser efetivamente registrados.

Com efeito, nota-se que, da surpresa favorável de arrecadação observada em 2022, de cerca de 2,9% do PIB, aproximadamente 60% foram consumidos em gastos adicionais (alteração do teto em 2021 com a PEC dos Precatórios e “furo” da PEC Kamikaze em 2022), pouco menos de 10% em desonerações tributárias, e apenas 30% se transformou efetivamente em melhoria do resultado primário.

Aliás, a implementação de reduções de tributos em 2022 foi tremendamente facilitada pelo fato de que a meta de resultado primário (outra regra fiscal brasileira), definida no Projeto de Diretrizes de Lei Orçamentária (PLDO) de abril de 2021, era extremamente “frouxa”, estipulando um déficit de R$ 170,5 bilhões para 2022.

Olhando para a frente, segundo os cálculos de Borges, independentemente de qual será o novo arcabouço de regras fiscais brasileiro de 2024 em diante, o Brasil terá que transitar de uma expectativa corrente de resultado primário nulo na média de 2024-2030 (que gera como consequência uma relação dívida/PIB subindo bastante até o final da década) para pelo menos +1% a +1,5% do PIB para restabelecer a sustentabilidade intertemporal do setor público (isto é, DLGG/PIB estável no nível de 2023 ou cadente). Isso permitiria alívios no câmbio do dólar (que hoje já poderia estar abaixo de R$ 5 caso a questão fiscal não estivesse tão desarrumada) e nos juros longos (que estão acima de 5,5% a.a. desde o final de 2021, tendo superado os 6% a.a. recentemente)

Para o economista, estão faltando aproximadamente R$ 120 bilhões (ou 1,2% do PIB de 2022) entre aumento de arrecadação (recorrente e/ou atípica) ou cortes de despesas em 2024 e 2025 para que a conta feche – isto é, para que o setor público brasileiro entregue superávits primários de cerca de 0,5% do PIB em 2024, 1% em 2025-26 e 1,5% de 2027 em diante. Não coincidentemente, essa “lacuna” é semelhante ao montante de aumento da despesa obrigatória associada ao programa Bolsa-Família/Auxílio-Brasil: entre 2011 e 2019, o governo federal gastou cerca de 0,44% do PIB ao ano com esse programa, valor que passou para 1,1% em 2022 (já com os valores adicionais liberados pela PEC Kamikaze) e que deve ir para 1,6% do PIB em 2023 (com a manutenção do valor médio do benefício em R$ 600, além do pagamento de R$ 150 a mais por criança).

A construção dessa trajetória de superávits primários crescentes a partir de 2024 não contará, ao menos em 2023-25, com a ajuda das receitas ligadas ao setor extrativo, que deverão passar de 2,6% do PIB em 2022 para 2% em 2023 e 2024, refletindo a queda esperada (que já vem ocorrendo) do preço do petróleo. A partir de 2025, o forte aumento previsto da produção de petróleo e gás brasileira ao longo da década (de quase 80%) deverá dar novo impulso a essas receitas, que subirão de 2% do PIB em 2023/24 para perto de 2,8% em 2031, aliviando a restrição fiscal (permitindo até algum crescimento real dos gastos sem reduzir o superávit primário).

Na visão de Borges, os cerca de R$ 170 bilhões de gastos adicionais (aos que constam no PLOA de 2023) liberados pela PEC da Transição (que se tornou a EC 126/2022) são excessivos e passam longe de indicar despesa estável como porcentual do PIB, como foi sinalizado ao longo da tramitação da medida (o gasto deverá chegar a 19,3% do PIB em 2023, contra 18,4% em 2022). Na verdade, R$ 100-120 bilhões de despesas a mais em relação ao PLOA seriam suficientes para readequar o Orçamento de 2023 à realidade, incluindo o Bolsa Família de R$ 600 e outros ajustes (como uma redução dos “vazamentos” do programa Auxílio-Brasil, que podem chegar a R$ 23 bilhões/ano).

Nesse sentido, tratou-se de uma sinalização que não ajudou a controlar as expectativas fiscais num momento em que a atual âncora, o teto, deixou de ser efetiva, e o novo arcabouço ainda nem foi apresentado. Pelo mesmo motivo de tentar ancorar provisoriamente as expectativas sobre as contas públicas, Borges considera que o prazo de apresentação do novo arcabouço que consta da PEC de Transição, até agosto de 2023, é longo demais. Para ele, as regras que substituirão o teto deveriam estar aprovadas até abril, de forma a constar da LDO 2024, cujo prazo de aprovação é o mesmo mês e que serve como balizador da proposta orçamentária para 2024 que o Executivo deve enviar ao Congresso até o final de agosto de cada ano.

Por outro lado, são sinais razoavelmente positivos o fato de que o ministro nomeado para a Fazenda, Fernando Haddad, tenha se comprometido a apresentar o arcabouço fiscal até junho (antes do prazo definido pela EC 126/2022), sinalizado que a desoneração do PIS/Cofins dos combustíveis vai de fato acabar em 2023 (a renúncia de receita anual dessa “bondade” é estimada em aproximadamente R$ 52 bilhões/ano) e dito que não vai deixar o país incorrer no déficit primário máximo permitido pela EC 126/2022, que poderia chegar a 2% do PIB.

Adicionalmente, Haddad tem dado indicações de que deseja recuperar a arrecadação e montou a sua equipe de modo a reforçar esse lado que teria ficado em segundo plano nos últimos anos. Com a escolha de Anelize Almeida para Procuradora da Fazenda Nacional, sinaliza que terá como prioridade aperfeiçoar a cobrança de dívidas tributárias, já que a titular é grande especialistas nessa área, e deve trabalhar de forma bem entrosada com Robson Barreirinhas, nomeado para chefiar a Receita Federal, revisando benefícios e o planejamento tributário excessivo.

Outro front importante são as renúncias tributárias, mas Borges ressalva que cerca da metade do total hoje no Brasil é explicada pelas questões politicamente espinhosas do Simples/MEI e da Zona Franca de Manaus. Além disso, a própria reforma da tributação indireta (IVA) deverá acabar com boa parte dos regimes especiais de tributação, e não com o propósito de elevar a receita, mas sim de repartir de forma mais justa e eficiente a carga tributária.

Quanto às reformas tributárias em si, Borges e Manoel Pires, também pesquisador do FGV IBRE, alertam que não podem ser vistas como uma ferramenta de ajuste fiscal de curto prazo. A PEC 45, que tramita na Câmara, prevê um prazo de transição de dez anos para a materialização plena dos efeitos sobre consumidores e empresas, enquanto a PEC 110, do Senado, prevê seis anos. Eventual aumento de carga embutido nessa discussão de reforma da tributação indireta (sobre consumo) seria, portanto, bastante diferido no tempo.

Outra questão é que a alíquota neutra (em relação à carga tributária) do IBS, tributo que substituiria o IPI, PIS-COFINS, ICMS e ISS, se situaria em algo entre 25% e 27%. Esse nível é muito superior à mediana das alíquotas de IVAs mundo afora, mais próximas de 20%. Dessa forma, para manter a arrecadação atual na reforma tributária brasileira, já será necessária uma alíquota elevada. Aumentá-la ainda mais pode gerar perda adicional de bem-estar, já que a tributação indireta do consumo é, por definição, regressiva.

Uma possibilidade é que a reforma tributária permita alíquotas maiores nos chamados “excise duties”, tributos associados ao combate a externalidades negativas, como no caso de bebidas alcoólicas, fumo e combustíveis de origem fóssil. Mas são conhecidas as dificuldades políticas de elevação desses tributos.

Já a reforma da tributação direta poderá reintroduzir a tributação sobre os dividendos (isentos desde 1995), mas a contrapartida lógica seria a redução da alíquota nominal do IRPJ/CSLL, uma das mais altas do mundo. E ainda há outros potenciais “competidores” por essas receitas extras, tais como uma desoneração horizontal da folha de trabalho e a correção da tabela do IRPF.

De maneira geral, reformas da tributação tendem a focar em avanços de eficiência e equidade e não no aumento da carga tributária. Algum ganho pode advir da inclusão de parte da economia subterrânea na formalidade, mas é um efeito gradativo que certamente não trará até 2024/25 os R$100-120 bilhões necessários em cada um desses anos para equilibrar a trajetória da relação dívida/PIB.

Em resumo, apesar da melhora fiscal recente – muito concentrada na receita, parcialmente oriunda de fatores não-permanentes e em grande parte já consumida por novos gastos – e da intenção de aperfeiçoar a capacidade arrecadatória do governo, será necessário manter uma estratégia de controle das despesas. O novo governo tem um difícil desafio fiscal nos próximos três anos.


Esta é a Carta do IBRE de janeiro/2023, da Conjuntura Econômica.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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