Energia

Tarifas 4.0 como elo de eficiência e equidade

25 out 2023

Encarecimento da energia no NO/NE leva ANEEL a pedir ação ao Congresso. Mas agência, que conhece o processo e tem informações sobre pessoas e empresas, não esgotou possibilidades proporcionadas pelo desenho de tarifas.

As regiões Norte e Nordeste concentram áreas de menor IDH, mais desafios de desenvolvimento e gaps na adequada prestação de vários serviços como eletricidade e saneamento. Contam também com tarifas elevadas e crescentes de energia elétrica. Crescendo tanto que, na reunião do dia 17 último, o Diretor Geral (DG) da ANEEL conclamou o Congresso a agir para evitar um “deslocamento muito grande de custos para as regiões que hoje no Brasil são as menos desenvolvidas.” O estopim aqui é um aumento de tarifas no Amapá de mais de 40% a partir de novembro. Segundo o Senador Randolfe Rodrigues, o tema estaria para ser tratado em Medida Provisória, informação contestada pelo Ministro Alexandre Silveira.

Fico me perguntando o que leva o regulador a fazer esse apelo público ao Congresso. Talvez revele percepção de desespero ou incapacidade de mudar essa realidade diante do imperativo de promover equidade e justiça na transição energética. Questiono neste artigo em que medida já esgotou suas possibilidades.

O principal instrumento à disposição do regulador para realizar esses objetivos de política é o desenho das tarifas. Quiçá o clamor por ajuda do DG revele sua leitura de que a Agência não tem capacidade de produzir esse novo modelo mais moderno de tarifa que, para além de eficiência alocativa, entregue uma versão 4.0 que promove também justiça e resiliência. (Tudo é 4.0 em tempos de revolução industrial na era digital!)

Muita gente não sabe como se constroem as tarifas. Grosso modo o processo se dá em duas etapas. Na primeira, se define uma receita requerida para fazer frente aos custos considerados prudentes, acrescidos de retorno sobre investimento. Na segunda etapa, o valor resultante deve ser então distribuído, dando origem a tarifas aplicáveis às diferentes classes de usuários. Um bom desenho é aquele que consegue transmitir sinais adequados para consumo eficiente e expansão oportuna da infraestrutura – energia e redes – e dar conta do crescimento do mercado.

Além da eficiência, o resultado tem que atender a um conjunto de princípios, que incluem simplicidade, estabilidade e adequação da receita. Contemporaneamente, se soma a esse processo um requisito de equidade na métrica de uma boa transição energética. Equidade é conceito amplo que envolve espaço,  alocação de direitos, recursos e informação e procedimentos – quem participa do processo decisório; além de uma dimensão intergeracional – compromisso com gerações futuras.

Será que a ANEEL já sabe qual é a nova máquina mais moderna que deseja ou acredita ser capaz de entregar o produto de novos tempos de digitalização e descentralização, que tem o consumidor à frente e no centro da transformação? E será que sabe o que pedir ao Congresso Nacional e ao Poder Executivo em termos de competências e comandos de que não disporia hoje para levar a cabo a tarefa de revisar o desenho das tarifas?  É difícil imaginar que esses Poderes tenham varinha mágica ou onisciência para fazer melhor do que quem de fato conhece o processo e tem informações sobre as pessoas e as empresas, que é o regulador. Ademais, o processo legislativo é complexo e muito pouco previsível, pautado por critérios que vão muito além da técnica.

O DG se insurge contra uma tendência de redistribuição dos custos das componentes da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) que hoje onera mais consumidores das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Mas o problema não se reduz a essa visão macro de região geográfica. Políticas modernas de proteção social demandam foco: atingir quem precisa. Há grandes bolsões de pobreza também em outras regiões do país. Transferir custos não é a solução. É preciso enfrentar suas causas.

A CDE é um grande desafio na primeira etapa da definição das tarifas: mais de 70% do montante é explicado pela Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), desconto de fio e geração distribuída.

O Brasil é sede eventos de repercussão internacional como o G20 e Clean Energy Ministerial, em 2024, e a COP 30, no Pará, no ano seguinte. Para atuar como credible broker na transição ecológica, é imperativo acelerar soluções para reduzir a geração fóssil, por meio de tecnologias de energia limpa na Amazônia, inclusive nos sistemas isolados, viabilizando redução estrutural da CCC. A atual seca histórica na região é mais um alerta da importância de criar resiliência a mudanças climáticas.

O futuro também preocupa: a proposta de Marco Legal do Hidrogênio (H2) de baixo carbono apresentada recentemente na Câmara prevê apropriação de recursos da CDE. Queremos sim uma parte dessa nova economia verde e moderna. Que venham o H2 verde e as eólicas offshore que tanto interesse despertam nos investidores internacionais. Mas não a qualquer custo.

Se sobre o volume da CDE o poder do regulador é limitado, talvez ainda haja espaço para melhorar a distribuição desses custos – a segunda etapa na determinação das tarifas. Em discussão recente na Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos, foi destacada a necessidade de acesso a dados mais ricos para informar políticas que permitam calcular verdadeiros custos e os ônus com nível maior de desagregação quanto ao uso que as pessoas fazem da energia e as necessidades nas várias comunidades. Aqui há muito espaço para modernizar as tarifas, melhorando a alocação dos custos da rede para fontes incentivadas e geração distribuída.

Apesar das dificuldades, ninguém tem tantos instrumentos para subsidiar uma decisão urgente sobre como modernizar tarifas quanto o regulador. Se ainda assim precisar de ajuda para modernizar a máquina das tarifas no nosso futuro 4.0, aí sim vale recorrer ao Legislativo e ao Executivo Federal.


Esta coluna foi publicada originalmente em 23/10/2023, segunda-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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