Macroeconomia

A tempestade perfeita será o “início do fim” na China?

22 set 2021

Virtual implosão da Evergrande deriva de mudanças regulatórias impostas pelo governo chinês, marcando grande diferença em relação ao choque imobiliário americano de 2008/09. Haverá impacto relevante no crescimento de curto prazo, mas não há necessária contaminação sistêmica.

Até um par de semanas atrás, a Evergrande Real Estate era uma ilustre desconhecida do grande público. Estudiosos da economia e da sociedade chinesa, no entanto, já conheciam a empresa: uma das maiores incorporadoras do país, com centenas de projetos em construção, milhões de empregos (diretos e indiretos) gerados e tentáculos que vão muito além do ramo imobiliário, em um conglomerado que se espalha por uma montadora de veículos elétricos, uma agência de produção de conteúdo de mídias digitais, um parque de diversões, empresas alimentícias, um time de futebol e um sem-fim de coligadas e controladas.

Muito mais do que essa diversidade de atividades, chamava a atenção que a empresa fosse fortemente endividada. Segundo seu balanço mais recente, a Evergrande possui passivo circulante (exigível a curto prazo) de aproximadamente US$ 125bi, dívida escriturada superando US$ 300bi e um valor desconhecido de obrigações fora do balanço. A disponibilidade de caixa não chega a US$ 15bi.

São números que indicam uma empresa em severas dificuldades financeiras, fato confirmado, na semana passada, pela declaração de que os seus pagamentos de curto prazo estariam sob risco. Com cifras tão elevadas e encadeamentos relevantes nos setores real e financeiro (dentro e fora da China), iniciou-se uma corrida contra a empresa, com colapso de suas cotações em bolsa e temores de contágio sistêmico. Para muitos, este seria um novo “evento Lehman”; estaríamos no limiar do desmonte do modelo econômico chinês e de uma nova crise financeira global.

É importante reconhecer que tais dívidas não surgiram da noite para o dia, e outros eventos de pressão patrimonial já foram registrados no passado, sem causar grande celeuma. Por que, então, a Evergrande está, agora, no limiar de um colapso?

Antes de responder essa pergunta, é necessário contextualizar. Ainda que superlativo, o caso da Evergrande está longe de ser uma exceção. Analistas do setor imobiliário chinês utilizam há anos uma mesma alegoria, definindo que as incorporadoras operam com três grandes locomotivas: elevado giro financeiro, elevado lucro bruto e elevada alavancagem. Em um script usual, as empresas emitem dívidas de curto prazo e rentabilidade elevada, oferecida fora do sistema bancário tradicional (através dos wealth management products, parte nevrálgica do shadow banking), usam os proventos para atuar de forma agressiva nos leilões de terras das municipalidades (não raro pagando preços mais elevados do que a média de mercado), vendem empreendimentos imobiliários ao grande público, utilizam essas receitas para pagar as dívidas anteriormente contraídas antes mesmo de entregar os imóveis, fazem novos investimentos e reiniciam a ciranda de endividamento para entrar em novos projetos, ainda sem concluir os anteriores.

Trata-se de uma dinâmica arriscada, mas, enquanto a roda permanece a girar, os atores envolvidos fingem não ver os riscos envolvidos: os poupadores (tipicamente pessoas físicas) conseguem rentabilidade mais elevada do que deixando o dinheiro nas contas de depósito nos bancos, as municipalidades conseguem receitas mais elevadas com os leilões de terras, os bancos lucram com a intermediação dos instrumentos de wealth, os fornecedores têm a demanda por seus produtos e insumos aquecida e a economia cresce na base de investimentos (públicos e privados), geração de riqueza e serviços de intermediação (financeira e imobiliária). Todos ficam felizes e a ciranda continua.

O efeito colateral deste aparente moto-contínuo é a geração de dívidas cada vez mais elevadas; não só as registradas nos balanços, mas também as não escrituradas. Sinais de corrupção e falhas na regulação temperam essa dinâmica nefasta, que é parte central do avanço do endividamento agregado da economia chinesa a aproximadamente 300% do PIB. De novo, a posição da Evergrande é superlativa: sua dívida registrada em balanço seria de aproximadamente 2% do PIB chinês.

O Politburo está ciente dos riscos envolvidos no endividamento excessivo, e tem implementado, há alguns anos, sucessivas rodadas de aperto regulatório que buscam conter a sua escalada. Não raro, tais medidas são direcionadas ao setor imobiliário, posto que as incorporadoras são notoriamente “superendividadas” e há retroalimentação entre os seus endividamentos, as finanças subnacionais (através dos leilões de terra) e a saúde dos mercados financeiros chineses (via compra direta de títulos ou intermediação dos instrumentos shadow lastreados em imóveis).

A rodada mais recente de aperto regulatório começou ao final do 3º trimestre de 2020, quando o governo estabeleceu critérios para limitar o endividamento adicional das incorporadoras. Foram definidos três marcadores de desempenho: (i) razão entre passivos e ativos, excluindo receitas de vendas “na planta”, inferior a 70%; (ii) razão entre dívida líquida e ativos inferior a 100%; e (iii) disponibilidade de caixa ao menos igual ao passivo de curto prazo. Empresas que não atingissem os três marcadores perderiam o direito ao endividamento adicional. No topo dessa lista, estava a Evergrande.

A esta medida seguiram-se inúmeros ajustes adicionais já em 2021, afetando tanto a demanda (limitação das carteiras imobiliárias nos empréstimos bancários) quanto a oferta imobiliária (mudando os colaterais elegíveis aos instrumentos de shadow banking e limitando severamente a captação de recursos fora do sistema bancário). As informações mais recentes mostram impactos severos nos volumes – novas construções e vendas registraram grandes contrações da ordem de 15% em agosto, e os indicadores antecedentes de setembro são bastante negativos – e crescente efeito nos preços, diminuindo o avanço dos preços imobiliários observado desde meados do ano passado.

Voltando às três locomotivas, limitou-se, ao mesmo tempo, o giro (construção e venda), o lucro (preços e volumes) e a alavancagem (endividamento). Esse é um ponto crucial: o colapso da Evergrande deriva de uma mudança regulatória. Essa é uma diferença relevante em relação ao “evento Lehman” original; o choque foi induzido pelo governo chinês, tem natureza prudencial e há outras incorporadoras relevantes (como Sunac China, Greenland Holding, Zhongliang, Country Garden Holdings e China Vanke) que também estão sofrendo.

Ao contrário do que alguns analistas defendem, não faz sentido que o Governo salve a Evergrande de um choque que ele mesmo iniciou. Colocam-se, assim, duas interpretações antagônicas. Na negativa, o governo fez uma avaliação desastrosa dos impactos econômicos da desalavancagem do setor imobiliário, um erro que implicará em crise financeira e recessão. Na positiva, o governo entendeu que os impactos negativos de curto prazo seriam compensados pelos efeitos, a médio prazo, da diminuição da desalavancagem e saneamento do setor imobiliário. As medidas, ainda que amargas, fariam parte do projeto de reforma e fortalecimentos das bases estruturais da economia.

Entendemos que a segunda interpretação é a correta, ou seja, o choque em curso deriva de uma avaliação de custo-benefício do governo chinês – que pode ser equivocada, mas, ao menos, é um processo com início, meio e fim. Apesar dessa leitura mais benigna, há riscos relevantes de trajetória e um cenário que se descortina como altamente desafiador. O timing, de fato, é muito infeliz: com a exaustão dos impulsos anticíclicos prévios, a desorganização das cadeias globais de valor, a ressurgência da Covid e a notória dificuldade em dinamizar o consumo doméstico, o avanço da agenda regulatória conspira para a criação de uma tempestade perfeita. O crescimento de curto prazo sofrerá: nossos números mais recentes são de expansão de +8,3% em 2021 e de +5,2% em 2022, e há evidente viés de baixa, especialmente para o ano que vem.

Em conclusão, em qual cenário a tempestade perfeita levaria ao “início do fim”, ou seja, ao grande colapso do modelo chinês? Ainda que crescentemente sofisticados, os instrumentos financeiros chineses são distintos de seus equivalentes americanos de 2008/2009. Os mortgage backed securities (MBS) permitiam uma pulverização, e ocultação, de risco que não tem paralelo com o que ocorre na China, onde o mercado imobiliário é caracterizado por elevado nível de pré-pagamento dos imóveis e baixa exposição das famílias a empréstimos imobiliários e hipotecas.

Nesse sentido, o espaço para contágio financeiro sistêmico parece relativamente contido, ainda que exista nos valores mobiliários (títulos e ações) das incorporadoras, na redução de receitas de corretagem que afete os balanços de certas instituições financeiras e na provável retração adicional das concessões de crédito amplo, com desestímulo aos instrumentos do shadow banking. Ainda que duro, o processo de implosão da Evergrande (e de outras, que devem se seguir) tem condição de ser minimamente controlado.

Há, no entanto, o risco de que seja abalada a confiança nos investimentos imobiliários, historicamente a principal escolha das famílias chinesas para reserva de valor e construção de patrimônio. As implicações desse tipo de mudança estrutural são difíceis de quantificar, mas certamente seriam devastadoras – seja para a China (a construção civil corresponde por algo entre 15% e 20% do PIB, e, computando os seus encadeamentos, chega-se a números entre 25%-30% do PIB), seja para o mundo (os efeitos do desmonte do mercado imobiliário chinês sobre a siderurgia e as commodities metálicas globais).

Parece claro, portanto, que a melhor estratégia de contenção de danos passa por preservar os investidores imobiliários, garantindo que as famílias recebam os imóveis já comprados, que o fluxo de pagamentos de fornecedores seja mantido, e que as dívidas bancárias sejam honradas após uma necessária reestruturação. Medidas dessa natureza devem ocorrer nas próximas semanas, ajudando a diluir a percepção de risco e mitigando a ameaça de que a implosão da Evergrande se torne um problema sistêmico global.


Este artigo foi publicado como DESTAQUE BRCG, set/21.

Uma versão resumida deste artigo está disponível neste link para o jornal Valor Econômico.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.        

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